A pensionista tomou aversão aos jantares de seu protetor, cobrou uma repugnância religiosa pelo teatro e recaiu na sua melancolia...
“Ela fina-se de paixão por Luciano”, pensou Herrera, que quis sondar a profundeza daquela alma e saber o que se podia exigir dela. Chegou pois um momento em que a pobre rapariga apenas era amparada pela sua força moral e em que o corpo ia ceder. O padre calculou esse momento com a horrenda sagacidade prática outrora empregada pelos algozes na sua arte de fazer perguntas. Foi encontrar a pupila no jardim, sentada junto de uma parreira que o sol de abril acariciava; parecia ter frio e estar se aquecendo; suas companheiras olhavam com interesse aquela palidez de grama pisada, aqueles olhos de gazela moribunda, aquela atitude melancólica. Ester levantou-se e foi ao encontro do espanhol com um movimento que mostrou sua pouca vida e, diga-se também, seu fraco apego à vida. A pobre boêmia, ruiva andorinha magoada, excitou, pela segunda vez, a piedade de Carlos Herrera. O sombrio sacerdote, que Deus naturalmente só empregava na execução das suas vinganças, acolheu a enferma com um sorriso que exprimia tanto amargura como dor, tanto vingança como caridade. Instruída na meditação, nas contemplações introspectivas da sua vida quase monástica, Ester teve, pela segunda vez, um sentimento de desconfiança à vista do seu protetor; mas, como da primeira vez, tranquilizaram-na logo suas palavras.
— Então, minha querida filha, por que é que nunca me falou de Luciano? — disse ele.
— Eu tinha-lhe prometido — respondeu ela, estremecendo toda num movimento convulsivo —, tinha-lhe jurado não pronunciar tal nome.
— E, contudo, não tem cessado de pensar nele!
— É essa a minha única falta. Penso nele a toda hora, e ainda agora eu estava dizendo a mim mesma esse nome.
— Faz-lhe mal sua ausência?
Por única resposta, Ester inclinou a cabeça à maneira dos enfermos que já sentem as emanações da sepultura.
— E se o tornasse a ver? — perguntou o sacerdote.
— Seria a vida — respondeu Ester.
— Pensa nele somente de alma?
— Ah, senhor, o amor não se reparte!
— Filha de uma raça maldita! Fiz quanto era possível para te salvar. Restituo-te ao teu destino. Vais tornar a vê-lo!
— Para que insulta minha felicidade? Não poderei eu praticar a virtude e amar Luciano com igual amor? Não estou disposta a morrer aqui pela virtude como estava pronta a morrer por ele? Não vou expirar por estes dois fanatismos, pela virtude que me fazia digna dele e por ele que me arrojou nos braços da virtude? Oh, sim! Disposta a morrer sem tornar a vê-lo, disposta a viver se o tornar a ver. Deus que me julgue.
Tinham-lhe voltado as cores, sua palidez adquirira um tom de ouro. Ester havia recobrado sua graça.
— No dia seguinte ao do seu batismo, você tornará a ver Luciano; e, se julga poder viver virtuosa vivendo para ele, com ele viverá.
O padre teve de levantar Ester, cujos joelhos haviam vergado. A pobre moça tinha caído como se a terra lhe tivesse fugido de sob os pés; o padre sentou-a no banco, e, quando ela pôde falar, perguntou-lhe:
— E por que não hoje?
— Quer privar o arcebispo do triunfo do seu batismo e da sua conversão? Você acha-se muito próxima de Luciano para não deixar de estar longe de Deus.
— É verdade. Eu não pensava em mais nada!
— Você nunca terá religião — disse o padre com um modo profundamente irônico.
— Deus é bom — tornou ela — e lê no meu coração.
Vencido pela deliciosa ingenuidade que transparecia na voz, no olhar, nos gestos e na atitude de Ester, Herrera beijou-a na fronte pela primeira vez.
— Os devassos tinham-te acertado com o nome; és capaz de seduzir a Deus Padre. Mais alguns dias de espera e ambos estão livres.
— Ambos! — repetiu ela numa alegria extática.
Esta cena, vista a distância, impressionou as colegiais e as superioras, que julgaram ter assistido a alguma operação mágica, comparando Ester consigo próprias. A criança transfigurada vivia. Tornou a aparecer na sua verdadeira natureza de amor, gentil, garrida, sedutora, alegre; ressuscitara, enfim!
xi − muitas reflexões
Herrera morava na Rue Casette, junto de Saint-Sulpice, igreja a que estava adido. Essa igreja, de um estilo duro e seco, ficava bem àquele espanhol cuja religião tinha pontos de contato com a dos dominicanos. Enjeitado da política astuciosa de Fernando vii
, desservia a causa constitucional, sabendo que essa dedicação jamais poderia ser recompensada a não ser com a restauração del-Rey neto
.[57]
E Carlos Herrera dera-se de corpo e alma à camarilha no momento em que não parecia que as cortes seriam derrubadas. Para o mundo, semelhante proceder revelava uma alma superior. A expedição do duque de Angoulême havia-se realizado, reinava o rei Fernando vii
, e Carlos Herrera não ia reclamar a Madri o prêmio de seus serviços. Defendido da curiosidade por um silêncio diplomático, apresentou como motivo da sua estada em Paris a sua viva afeição por Luciano de Rubempré, à qual já o mancebo devia a carta régia relativa à mudança de seu nome. De resto, Herrera vivia como vivem tradicionalmente os padres empregados em missões secretas, de maneira muito
obscura. Cumpria seus deveres religiosos em Saint-Sulpice, e só saía para tratar de negócios, sempre à noite e de carruagem. O dia era por ele preenchido pela sesta espanhola, que põe o sono entre as duas refeições e assim toma todo o tempo em que Paris anda no tumulto dos negócios. O charuto espanhol desempenhava também o seu papel e consumia tanto tempo quanto tabaco. A preguiça é uma máscara assim como a gravidade, que também não deixa de ser preguiça. Herrera morava no segundo andar, em um dos lados, e Luciano ocupava o outro lado. Os dois compartimentos eram separados e simultaneamente reunidos por uma grande sala de recepção, cuja magnificência arcaica convinha igualmente ao grave eclesiástico e ao juvenil poeta.
1 comment