O pátio da casa era sombrio. Grandes e copadas árvores davam sombra ao jardim. O silêncio e a discrição se encontram nas habitações escolhidas pelos padres. O alojamento de Herrera fica descrito em duas palavras: uma cela. O d e Luciano, brilhante de luxo e munido dos requintes do conforto, reunia tudo quanto exige a vida elegante dum dândi, poeta, escritor, ambicioso, vicioso, ao mesmo tempo orgulhoso e vaidoso, cheio de negligência e desejoso da ordem, um desses gênios incompletos que têm alguma força para desejar, para conceber, o que é talvez a mesma coisa, mas que não têm força nenhuma para executar. Luciano e Herrera, juntos, formavam um político: era esse sem dúvida o segredo da sua união. Os velhos em quem a ação da vida se deslocou e transportou para a esfera dos interesses sentem frequentemente a necessidade de uma máquina bonita, de um ator moço e apaixonado para executar os seus projetos. Richelieu procurou demasiado tarde uma cara branca, simpática e de bigodes para atirá-la às mulheres que queria divertir. Incompreendido por uns doidivanas, teve de exilar a mãe de seu amo e de meter medo à rainha, depois de tentar fazer-se amar por uma e pela outra, sem ter bossa para agradar a rainhas.[58] Por mais que se faça, é sempre inevitável, numa vida ambiciosa, topar com uma mulher quando menos se espera um tal encontro. Por poderoso que seja um grande político, necessita uma mulher para opor a outra mulher assim como os holandeses limam diamante com diamante. Roma, no tempo do seu poderio, obedecia a essa necessidade. Vede também como a vida de Mazarin,[59] cardeal italiano, foi bem mais dominadora que a de Richelieu, cardeal francês. Richelieu encontra oposição na fidalguia, deita-lhe o machado e morre na flor do seu prestígio, extenuado por esse duelo em que o seu único auxiliar era um frade.[60] Mazarin é repelido pela burguesia e a nobreza reunidas, armadas, às vezes vitoriosas, e que põem em fuga a realeza; mas o servidor de Ana de Áustria, não corta a cabeça a ninguém, sabe vencer a França toda e forma Luís xiv , que concluiu a obra de Richelieu, estrangulando a fidalguia com laços dourados no grande serralho de Versalhes. Morta a Madame Pompadour, Choiseul[61] estava perdido. Acaso se havia Herrera compenetrado destas altas doutrinas? Fizera justiça a si mesmo antes que Richelieu? Teria escolhido em Luciano um Cinq-Mars, mas um Cinq-Mars[62] fiel? Ninguém podia responder a tais perguntas nem medir a ambição daquele espanhol como não se podia prever o seu fim. Estas perguntas formuladas por aqueles que tinham podido lançar um olhar àquela união, durante longo tempo secreta, tendiam a penetrar um mistério horrível, que Luciano só conhecia há pouco. Carlos Herrera era ambicioso por dois; eis o que o seu comportamento demonstrava às pessoas de suas relações, que pensavam todas que Luciano fosse filho natural do padre.

Um ano e três meses depois do seu aparecimento na Ópera, que o lançou prematuramente numa roda em que o padre só quisera vê-lo depois de armá-lo bem contra as suas seduções, Luciano tinha três belos cavalos na sua cavalariça, um coupé para a tarde, um cabriolé e um tílburi para durante o dia. Comia fora. As previsões de Herrera tinham-se realizado; a dissipação havia-se apoderado de seu pupilo, mas ele achara conveniente distrair o moço do seu amor insensato por Ester. Depois de ter gastado uns quarenta mil francos, cada loucura tinha reconduzido Luciano com mais entusiasmo à Torpedo, a quem ele procurava com obstinação; e, como não a encontrasse, Ester ia-se tornando para ele o que é a caça para o caçador. Poderia Herrera conhecer a natureza do amor de um poeta? Uma vez que esse sentimento tinha invadido a cabeça de um desses grandes homúnculos, depois de lhe abrasar o coração e penetrar os sentidos, o poeta torna-se tão superior à humanidade pelo amor quanto o é pelo poder da fantasia. Devendo a um capricho da geração intelectual a faculdade rara de exprimir a natureza por imagens nas quais grava ao mesmo tempo o sentimento e a ideia, dá ao seu amor as asas do seu espírito; sente e pinta, age e medita, multiplica suas sensações pelo pensamento, triplica a felicidade presente pela aspiração do futuro e pelas recordações do passado, ajuntando-lhe os delicadíssimos gozos de alma que o tornam o príncipe dos artistas. A paixão de um poeta torna-se então um grande poema em que não raro as proporções humanas são excedidas. O poeta coloca então sua amante num ponto mais elevado do que aquele a que as mulheres aspiram. Ele faz, como o sublime Dom Quixote, de uma campônia uma princesa. Usa para si mesmo a varinha de condão com a qual toca tudo para transformar tudo em maravilha, e assim engrandece as volúpias mediante o adorável mundo do ideal. Esse amor é pois um modelo de paixão; é excessivo em tudo, nas esperanças, nos desesperos, nas cóleras, nas melancolias, nos júbilos; voa, salta, rasteja, não se parece com nenhuma das agitações que o comum da humanidade sente; está para o amor burguês assim como para os riachos das planícies está a eterna torrente dos Alpes. Esses belos gênios são tão raramente compreendidos que chegam a gastar-se em falsas esperanças; consomem-se na busca de suas amantes ideais, morrem quase sempre como belos insetos adornados a capricho para as festas do amor pela mais poética das naturezas, e que são esmagados virgens pelos pés da primeira pessoa que passa; mas — outro perigo! — quando encontram a forma que corresponde ao seu espírito — muitas vezes uma padeira — fazem como Rafael, fazem como o inseto bonito: morrem ao pé da Fornarina.[63] Era nessa situação que Luciano se encontrava. Sua natureza poética, naturalmente excessiva em tudo, no bem como no mal, tinha adivinhado o anjo na mundana, antes contagiada de corrupção do que corrompida; via-a sempre alva, alada, pura e misteriosa, tal como Ester para ele se fizera, adivinhando que era assim que Luciano a queria.

Em fins de maio de 1825, Luciano tinha perdido toda a sua vivacidade; não saía, jantava com o padre, ficava pensativo, trabalhava, lia a coleção dos tratados diplomáticos, sentava-se à turca num divã e fumava três ou quatro narguilés por dia. O seu groom tinha mais que fazer em limpar os cachimbos e perfumá-los do que em almofaçar os cavalos e enfeitá-los de rosas para as corridas no Bois de Boulogne.