No dia em que o espanhol viu descorada a fronte de Luciano, em que lhe viu vestígios de doença nas loucuras do amor represado, quis penetrar até o âmago desse coração de homem, sobre o qual assentara a sua vida.
Por um belo crepúsculo em que Luciano, sentado numa poltrona, contemplava maquinalmente o pôr do sol através das árvores do jardim, soprando a fumarada aromática do seu tabaco em bafos iguais e prolongados, como fazem os fumadores meditativos, arrancou-o ao seu devaneio um suspiro profundo. Voltou-se e viu o padre em pé, de braços cruzados.
— Estavas aí! — exclamou o poeta.
— Há que tempos! Os meus pensamentos seguiram a extensão dos teus...
Luciano compreendeu.
— Eu nunca tive uma natureza de bronze como a tua. A vida é para mim ora um paraíso, ora um inferno; mas, quando, por acaso, não é uma coisa nem outra, ela me enfastia, e eu me enfastio.
— Como é possível o enfado quando se tem em perspectiva tantas esperanças magníficas?
— Quando não se crê em tais esperanças ou quando elas andam demasiado encobertas...
— Tolice!... — observou o padre. — Mais digno de nós ambos seria que me franqueasses o teu coração. Há entre nós o que nunca devia haver: um segredo. Esse segredo dura há dezesseis meses. Tu amas uma mulher.
— E depois?..
— Uma mulher imunda conhecida pelo nome de Torpedo...
— E daí?
— Meu filho, eu te dera licença para tomares uma amante, mas uma mulher da Corte, nova, bonita, influente, condessa pelo menos. Tinha escolhido para ti a sra. d’Espard, para fazer dela sem escrúpulo um instrumento de fortuna; porque ela nunca te perverteria o coração, ela havia de te deixar livre... Amar uma meretriz da última classe quando não se tem, como os reis, poder para fazê-la fidalga é uma falta enorme.
— Serei eu o primeiro que renunciou à ambição para seguir a inclinação de um amor desenfreado?
— Bem — disse o padre apanhando o comprido tubo do narguilé que Luciano tinha deixado cair no chão e restituindo-lho —, percebo o teu epigrama. E, contudo, será impossível reunir a ambição e o amor? Criança, tu tens no velho Herrera uma mãe cuja dedicação é absoluta...
— Bem sei, meu velho — disse Luciano tomando-lhe a mão e sacudindo-a.
— Quiseste a riqueza, esse brinquedo, e a obtiveste. Queres brilhar, e eu dirijo-te no caminho do poder. Quantas mãos sórdidas eu beijo para te fazer avançar, e tu irás avançando! Mais algum tempo e nada te faltará daquilo que agrada aos homens e às mulheres. Apesar de efeminado pelos teus caprichos, és varonil pelo teu espírito; eu concebi tudo de ti, e tudo te perdoo. Basta que fales para satisfazer as tuas paixões de um dia. Engrandeci tua vida, acrescentando-lhe o que a faz adorar pela maioria, o sinete da política e da dominação. Serás tão grande quanto és pequeno; mas é preciso não quebrar o aparelho com o qual cunhamos moeda. Tudo te permito, menos as faltas que poderiam comprometer o teu futuro. Quando te abro as salas da alta aristocracia, proíbo-te que chafurdes na sarjeta. Luciano, para teu interesse eu serei de ferro, ainda que sofra tudo de ti ou por ti. Assim é que converti a tua falta de tato no jogo da vida em finura de jogador hábil... — Luciano levantou a cabeça num repente furioso, e o padre continuou: — Eu raptei a Torpedo!
— Tu! — gritou Luciano.
Num acesso de raiva animal, o poeta ergueu-se, atirou com o tubo de ouro e pedras preciosas à cara do padre, empurrando tão violentamente esse atleta que o atirou ao chão.
— Eu, sim! — respondeu o espanhol levantando-se, e sem perder sua gravidade terrível.
Caíra-lhe a peruca preta. O crânio, reluzente como uma caveira, restituiu àquele homem a sua verdadeira fisionomia, que era medonha. Luciano deixou-se ficar no seu divã, com os braços caídos, esmagado, contemplando o padre com um ar imbecil.
— Sim, eu raptei-a — repetiu o eclesiástico.
— E que lhe fizeste? Foi no dia seguinte ao do baile de máscaras...
— Foi, sim; foi no dia seguinte àquele em que vi uma criatura que te pertencia ser insultada por uns tolos que nem a pontapés eu quereria...
— Tolos — disse Luciano interrompendo-o —; dize antes monstros, bem piores que os que merecem guilhotina. Sabes que coisa a pobre rapariga fez por três deles? Um foi seu amante durante dois meses; ela era pobre e ganhava o pão pela ignomínia; ele não tinha um real, estava como eu quando me encontraste ao pé do rio; o rapaz levantava-se de noite, ia ao armário onde ficavam os restos do jantar da rapariga e os comia; ela por fim descobriu a manobra, compreendeu aquele pudor e tomou a precaução de deixar ficar muitos sobejos; sentia-se feliz; só a mim ela contou isso, no seu fiacre, quando voltávamos da Ópera. O outro tinha cometido um roubo; mas, antes que o descobrissem, ela emprestou-lhe o dinheiro para o ladrão repor e ele sempre se esqueceu de restituí-lo à pobrezinha. Quanto ao terceiro, proporcionou-lhe ela a fortuna representando uma comédia na qual resplandece o gênio de Fígaro; passou por mulher dele e fez-se amante de um homem onipotente que a julgava a mais cândida das burguesas. A um a vida, a outro a honra, a um terceiro a riqueza. E aí está a paga.
— Queres que eles morram? — perguntou Herrera, que tinha uma lágrima a bailar-lhe nos olhos.
— Vamos! És sempre o mesmo...
— Não.
1 comment