Fica sabendo tudo, poeta exaltado — disse o padre. — A Torpedo já não existe...

Luciano atirou-se a Herrera com tamanha violência que outro qualquer seria derrubado; mas o braço do espanhol deteve o poeta.

— Escuta — disse ele friamente. — Eu fiz dela uma mulher casta, pura, bem-educada, religiosa, enfim uma mulher às direitas e que já se acha no caminho da instrução. Ela pode e deve vir a ser, sob o império do teu amor, uma Ninon, uma Marion Delorme, uma Du Barry, como aquele jornalista dizia na Ópera. Podes apresentá-la como tua amante ou ficar atrás da cortina da tua criação, o que seria mais sensato. Qualquer dos partidos te dará proveito e orgulho; mas, se és tão grande político como grande poeta, Ester não será para ti mais que uma cortesã, porque mais tarde talvez ela nos valha muito; aquilo vale quanto pesa. Bebe, mas não te embebedes. Se eu não tivesse tomado as rédeas à tua paixão, onde estarias agora? Terias resvalado com a Torpedo no atoleiro das misérias de onde te arranquei. Aí tens, lê — disse Herrera tão simplesmente quanto Talma no Mânlio ,[64] que ele nunca tinha visto representar.

Um papel caiu sobre os joelhos do poeta, arrancando-o da extática surpresa em que o mergulhara aquela resposta terrífica. Pegou nele e leu a primeira carta da srta. Ester:

Ao sr. padre Carlos Herrera

Meu caro protetor. Espero que em mim você veja que o reconhecimento anda adiante do amor, quando notar que emprego, pela primeira vez, em lhe dar graças, a faculdade de exprimir meus pensamentos, em vez de consagrá-la a exprimir um amor que Luciano talvez tenha esquecido. Mas digo ao padre, homem de Deus, o que não ousaria dizer a ele, que, para meu bem, pertence ainda à terra. A cerimônia de ontem derramou sobre mim os tesouros da graça; coloco pois nas suas mãos o meu destino. Ainda que tenha de morrer longe do meu bem-amado, morrerei purificada como a Madalena, e a minha alma será para ele a rival do seu anjo da guarda. Esquecerei algum dia a festa de ontem? Como querer abdicar o trono glorioso a que me elevei? Ontem lavei todas as minhas máculas nas águas do batismo e recebi o corpo sagrado de Nosso Senhor; tornei-me um de seus tabernáculos. Ouvi nesse momento os cânticos dos anjos; já não era uma mulher; nascia para uma vida de luz, em meio das aclamações da terra, admirada pelo mundo, numa nuvem de incenso e de preces que inebriava, e enfeitada como uma virgem para um esposo celeste. Achando-me digna de Luciano, coisa que jamais eu podia esperar, abjurei todo amor impuro, e não quero outro caminho que não seja o da virtude. Se o meu corpo for mais fraco que a minha alma, que morra. Seja o senhor o árbitro do meu destino; e, se eu morrer, diga a Luciano que morri para ele ao nascer para Deus.

Domingo de tarde.

Luciano ergueu para o padre os olhos arrasados de lágrimas.

— Tu conheces a casa de Carolina Bellefeuille, na Rue Taitbout — disse o espanhol. — A pobre rapariga, abandonada pelo seu magistrado,[65] estava necessitada em extremo e ameaçada de penhora; mandei comprar sua moradia, e lá foi ela com os seus trastes. Ester, esse anjo que queria subir ao céu, desceu a essa casa e lá te espera.

Neste momento, Luciano ouviu seus cavalos escavarem o chão no pátio; não teve ânimo para exprimir sua admiração diante de um devotamento que só ele sabia apreciar; lançou-se nos braços do homem que ultrajara, reparou tudo por um simples olhar e pela muda efusão dos seus sentimentos; desceu depois as escadas, disse o endereço de Ester ao seu groom , e os cavalos partiram como se a paixão de seu dono lhes animasse as pernas.

xii − onde se vem a saber que não havia um sacerdote no padre herrera

No dia seguinte, um homem, que pelo traje os transeuntes podiam tomar por um gendarme disfarçado, passeava na Rue Taitbout defronte de uma casa, como que aguardando a saída de alguma pessoa; o seu passo era de alguém que estava agitado. Muitas vezes encontrareis, em Paris, desses passeantes apaixonados, verdadeiros gendarmes à espreita de um guarda nacional refratário, beleguins tomando suas providências para alguma captura, credores meditando alguma pirraça ao seu devedor enclausurado, amantes ou maridos ciumentos e desconfiados, amigos de sentinela por conta de outros amigos; mas bem raro encontrareis uma cara iluminada pelos selvagens e rudes pensamentos que animavam a do sombrio atleta que passeava por baixo das janelas de Ester, com a precipitação sonhadora de um urso enjaulado. Ao meio-dia, abriu-se um caixilho para deixar passar a mão de uma criada, que empurrou as portadas da janela. Momentos depois, Ester, em trajes menores, veio tomar ar, apoiada em Luciano. Quem os visse havia de tomá-los pelo original de uma suave estatueta inglesa. Ester avistou logo os olhos de basilisco do padre espanhol, e a pobre criatura, como se recebesse um tiro, soltou um grito de terror.

— Lá está o padre — disse ela, mostrando-o a Luciano.

— O padre! — exclamou Luciano sorrindo. — Ele é tão padre como tu.

— Que é então? — indagou Ester aterrada.

— Um velho pândego que só acredita no diabo — disse Luciano, deixando escapar sobre os segredos do falso padre uma luz que, aproveitada por pessoa menos dedicada que Ester, podia arruinar para sempre Luciano.

Indo da janela do seu quarto de dormir para a sala de jantar, onde acabava de ser posto o almoço, os dois amantes encontraram Carlos Herrera.

— Que vens fazer aqui? — perguntou-lhe Luciano com maus modos.

— Abençoar-vos — respondeu a atrevida personagem obrigando-os a permanecerem na saleta do apartamento. — Escutai, meus queridos.