— Mas, se me amas, trata de imitar a dedicação deste homem, e obedece-lhe sob pena de morte.
— De morte?... — disse ela ainda mais assustada.
— De morte — confirmou Luciano. — Ai, filha! Não há morte comparável à que me espera, se...
Ouvindo aquelas palavras, Ester empalideceu e sentiu-se desfalecer.
— Então! — gritou-lhes o falsário sacrílego. — Vocês ainda não desfolharam todas as suas margaridas?
Ester e Luciano voltaram, e a pobre rapariga disse, sem se atrever a olhar para o homem misterioso:
— Pode estar certo, senhor, que será obedecido como se obedece a Deus.
— Bom — disse ele —, você poderá ser muito feliz durante algum tempo e... não terá de mandar fazer senão trajes caseiros, o que não deixa de ser econômico.
xiii − dois possantes cães de guarda
Os dois amantes se dirigiram para a sala de jantar; porém o protetor de Luciano os deteve com um gesto.
— Já que lhe falei nas suas criadas — disse ele a Ester —, devo apresentá-las.
O espanhol tocou duas vezes a campainha. As duas mulheres a quem ele chamara Europa e Ásia apareceram, e foi fácil ver a causa desses nomes.
Ásia, que parecia ser javanesa, espantava quem a visse com aquele rosto acobreado peculiar aos malaios, chato como uma tábua, e no qual o nariz parecia ter sido esborrachado por uma compressão violenta. A estranha disposição dos ossos malares dava à parte inferior do rosto uma certa semelhança com os grandes primatas. A testa, apesar de deprimida, não deixava de ter inteligência, produzida pelo hábito da velhacaria. Dois olhinhos ardentes tinham a calma dos olhos dos tigres, mas não olhavam de frente. Ásia parecia ter medo de assustar as pessoas com quem lidava. Os beiços, de um azul pálido, deixavam ver dentes de uma brancura deslumbrante, mas encavalados uns nos outros. A expressão geral dessa fisionomia animal era a covardia. Os cabelos, luzidios e gordurosos como a tez do rosto, deixavam duas orlas pretas por fora do rico lenço de seda. As orelhas, lindíssimas, tinham como ornamento duas grandes pérolas escuras. Baixinha, atarracada, Ásia parecia-se com essas criações absurdas que os chineses desenham nos seus leques, ou mais exatamente, com esses ídolos hindus cujo tipo parece não poder existir, mas que os viajantes acabam por encontrar. Vendo aquele monstro cingido de um avental branco, Ester teve um estremecimento.
— Ásia! — disse o espanhol, para quem aquela mulher levantou a cabeça com um movimento só comparável ao do cão que olha para o dono. — Aqui está a sua ama...
E apontou-lhe Ester, que estava de penhoar. Ásia olhou para a jovem fada com uma expressão quase dolorosa; mas ao mesmo tempo um lampejo abafado entre suas pestanas caiu como a fagulha de um incêndio sobre Luciano, que, vestido com um magnífico roupão aberto, camisa de linho da Holanda, calça encarnada, e tendo um barrete turco na cabeça de onde seus cabelos louros saíam em grossos anéis, apresentava uma imagem divina. O gênio italiano pode inventar a tradição oral de Otelo, o gênio inglês pode pô-la em cena; mas somente a natureza tem o direito de ser num só olhar mais magnífica e mais completa que a Inglaterra e a Itália na expressão do ciúme. Aquele olhar, surpreendido por Ester, fê-la agarrar-se ao braço do espanhol e cravar-lhe as unhas como poderia fazê-lo um gato que se segura para não cair num precipício de que não vê o fundo. O espanhol disse então àquele monstro asiático três ou quatro palavras
de uma língua desconhecida, e Ásia foi-se atirar de joelhos aos pés de
Ester, beijando-os.
— Isto — disse o espanhol a Ester — não é uma cozinheira, mas um cozinheiro capaz de meter inveja a Carême.[66]
Ásia sabe tudo quanto se refere à cozinha. Um simples prato de feijão, arranja-o como os próprios anjos. Vai todos os dias ao mercado, e há de bater-se como um demônio que é para obter as coisas pelo seu justo preço. Discreta como
um túmulo. Como você pode passar por ter estado nas Índias, Ásia a ajudará muito a tornar essa fábula possível; pois ela é uma dessas parisienses que nascem para ser do país que lhes apraz. Mas não sou de opinião que você seja estrangeira... Tu que dizes, Europa?
Europa formava um perfeito contraste com Ásia, porque era a
soubrette
mais gentil que Monrose[67]
podia desejar por adversária no teatro. Esbelta, com aparência de estouvada, nariz aguçado, Europa oferecia à observação uma fisionomia fatigada pelas corrupções parisienses, a fisionomia descorada de uma rapariga linfática e fibrosa que se alimenta de batata crua, de uma criatura mole e tenaz. Com o pé pequeno para a frente, as mãos nos bolsos do avental, mostrava-se irrequieta, ainda estando imóvel, tamanha era a sua animação. Ao mesmo tempo
grisette
e comparsa, já devia, apesar de tão nova, ter exercido muitos ofícios.
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