Eu vinia dormindo, vinia de xantar na quinta do meu amico...
— Estava só? — perguntou Du Tillet, interrompendo esse lobo-cerval.[88]
—
Estava —
disse o barão em tom dolente —;
apenas com um lacaio na traceira da carruachem e uma criata...
— Luciano parece que a está conhecendo — observou Rastignac, surpreendendo um sorriso do amante de Ester.
— Quem é que não conhece as mulheres capazes de ir à meia-noite ao encontro de Nucingen? — disse Luciano, rodando sobre os calcanhares.
— Mas enfim não é mulher que frequente a alta sociedade — aventou o cavaleiro d’Espard — porquanto o barão teria reconhecido o lacaio.
— Eu nunca a vi em parte alcuma —
respondeu o barão —
e há quarenta tias que a polícia procura ela por minia ortem, zem nenium resultato.
— Pois antes ela lhe custe uns centos de mil francos do que a vida; porque, na sua idade, uma paixão sem alimento é perigosa — disse Desplein. — Pode ser fatal.
— E vertate, é —
respondeu Nucingen a Desplein. —
O que eu como non me alimenta, até a ar me parece mortale. A minia vita é ir ao
p
ois de Vincennes ver o sítio onte ela estava. Non me pute ocupar do último empréstimo; confiei nos meus colecas e eles tiveram tó de mim... Ainta que me custasse um milhão, queria coniecer aquela mulher; eu ganiava tinieiro, pois nem tenio ito mais à Polsa... Tu Tillet que o tica.
— É verdade — respondeu Du Tillet. — Está outro, perdeu o gosto às especulações; isto é prenúncio de morte.
— Prenúncio de amor —
tornou o barão —;
para mi é tuto uma coisa zó
.
A ingenuidade daquele velho, que não era mais um lobo-cerval e que, pela primeira vez na vida, enxergava alguma coisa mais santa e mais sagrada que o ouro, impressionou aquela roda de gente farta de tudo: uns trocaram sorrisos, outros olharam para Nucingen exprimindo na fisionomia o espanto de verem um homem como ele chegar a tal estado. Depois voltou cada um para a sala comentando o caso que realmente despertava vivo interesse. A sra. de Nucingen pôs-se a rir quando Luciano lhe revelou o segredo do banqueiro; mas, ouvindo as troças de sua mulher, o barão travou-lhe do braço e levou-a para o vão de uma janela.
— Minia ziniora —
disse-lhe ele em voz baixa —,
alcum tia terei gracechado a propósito de zuas paixões
,
para que a ziniora zombe agora das minias? Uma poa mulher achudaria zeu marido a livrar-se de tificultates em vez de fazer troça como a ziniora faz.
Pela descrição do velho banqueiro, Luciano havia reconhecido a sua Ester. Já muito descontente por ver que tinham reparado no seu sorriso, aproveitou o momento da conversação geral enquanto era servido o café e desapareceu.
— Que é feito do sr. de Rubempré? — perguntou a baronesa de Nucingen.
— Ele é fiel à sua divisa:
Quid me continebit?[89]
—
respondeu Rastignac.
— Isso significa “Quem será capaz de me reter?” ou então “Sou indomável”, como quiser — disse De Marsay.
— Quando o senhor barão estava falando na sua desconhecida, Luciano deixou escapar um sorriso que me faria crer que a conhece — disse Horácio Bianchon sem perceber o perigo contido numa observação tão natural.
“
Pois teixa estar
”,
disse o financista com os seus botões. Como todos os doentes desesperados, ele aceitava tudo quanto parecia ser uma esperança, e logo fez tenção de mandar espionar Luciano por outra gente que não a de Louchard, o mais hábil guarda do comércio de Paris, a quem ele, havia quinze dias, se dirigira.
xvii − um abismo sob a felicidade de ester
Antes de ir a casa de Ester, Luciano tinha de ir ao palácio de Grandlieu passar as duas horas que faziam de Clotilde Frederica de Grandlieu a moça mais feliz do f
aubourg Saint-Germain. A prudência que caracterizava o comportamento do ambicioso jovem aconselhou-o a informar imediatamente Carlos Herrera do efeito produzido pelo sorriso que lhe tinha arrancado o retrato de Ester feito pelo barão de Nucingen. A paixão do barão por Ester e a ideia que ele tivera de pôr a polícia no encalço de sua desconhecida eram acontecimentos de bastante importância para comunicar ao homem que tinha procurado debaixo da sotaina o asilo que os criminosos outrora procuravam nas igrejas. Da Rue Saint-Lazare, onde naquele tempo morava o banqueiro, à Rue Saint-Dominique, onde fica o palácio de Grandlieu, o caminho de Luciano levava-o a sua própria casa, que era no Q
uai Malaquais. Luciano encontrou o padre a fumar o seu breviário, isto é, saboreando a sua cachimbada antes de se deitar. Aquele homem, mais estranho que estrangeiro, acabara pondo de lado os charutos espanhóis por achá-los demasiado fracos.
— Isso é sério — respondeu o padre depois de ouvir a narrativa de Luciano. — O barão, que se lembrou de Louchard para procurar a pequena, também se lembrará de te pôr no encalço um esbirro qualquer e ficava tudo descoberto. Não é muito esta noite e a primeira parte do dia de amanhã para preparar as cartas da partida que vou jogar contra o barão, a quem irei demonstrar, antes de mais nada, a impotência da polícia. Quando o nosso ricaço perder toda esperança de apanhar a sua dama, eu me encarrego de vender-lhe pelo preço que ela vale para ele...
— Vender Ester? — exclamou Luciano, cujo primeiro ímpeto era sempre bom.
— Esqueces a nossa posição? — inquiriu o padre.
Luciano baixou a cabeça.
— Dinheiro nenhum — tornou o fingido padre — e sessenta mil francos de dívidas por pagar! Se
queres desposar Clotilde de Grandlieu, tens de comprar uma propriedade de um milhão para assegurar o dote daquele camafeu. Ester é uma isca atrás da qual vou fazer correr o tal argentário até fazê-lo emagrecer de um milhão. Isso é comigo.
— Mas Ester não há de querer...
— Isso é comigo.
— Ela morrerá.
— Isso é com a empresa funerária. E depois?... — exclamou o selvagem sujeito, pondo termo às elegias de Luciano com a atitude que tomou. — Quantos generais morreram na flor dos anos pelo imperador Napoleão? — perguntou após uma pausa. — Mulheres há muitas! Em 1821, para ti Corália não tinha igual, e nem por isso deixou de aparecer Ester. Depois de Ester, virá... sabes quem?...
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