a mulher desconhecida, a mais formosa de todas! Tu a procurarás na capital onde o genro do duque de Grandlieu será ministro e representará o rei de França. E depois, ouve lá, meu criançola: achas que Ester morrerá por isso? Enfim, porventura o marido da sra. de Grandlieu pode conservar Ester? Mas deixa ficar; tu não tens o trabalho de pensar em tudo. Isso é comigo. Passarás sem a rapariga, uma semana ou duas, sem
por isso deixares de ir à Rue Taitbout. Anda, vai arrulhar sobre a sua tábua de salvação, e representa bem o teu papel. Passa a Clotilde a carta incendiária que escreveste hoje de manhã e traze-me de lá outra um tanto ardente. A menina se vinga de suas privações escrevendo. Gosto disso. Encontrarás Ester um pouco triste, mas dize-lhe que obedeça. Trata-se da nossa libré de virtude, dos nossos casacos de honestidade, do biombo por trás do qual os grandes encobrem suas infâmias... Trata-se do meu belo
eu
,
quero dizer, de ti, sobre quem é preciso que não recaia nenhuma suspeita. O acaso serviu-nos melhor do que o meu pensamento, que há dois meses anda trabalhando no vazio.
Lançando uma a uma estas terríveis frases, como quem dispara tiros, Carlos Herrera ia-se vestindo e dispunha-se a sair.
— Tua alegria é visível — exclamou Luciano. — Tu nunca foste amigo da pobre Ester, e vês aproximar-se com delícia o momento de deitá-la à margem.
— Nunca te cansaste de amá-la, não é? Pois bem. Eu nunca me cansei de odiá-la. E, contudo, não tenho procedido sempre como se fosse sinceramente afeiçoado a esta rapariga, eu que, por intermédio de Ásia, tinha sua vida nas minhas mãos? Uns maus cogumelos num guisado, e pronto!... No entanto, Ester vive, e vive feliz porque tu a amas! Não sejas criança. Há quatro anos que esperamos um acaso por nós ou contra nós. Pois é necessário ter mais que talento para descascar este legume que hoje a sorte nos atira; nesta parada de roleta há bom e há mau, como em tudo. Sabes em que estava eu pensando quando entraste?
— Não...
— Em me fazer, aqui como em Barcelona, herdeiro de uma beata velha, com a ajuda de Ásia...
— Um crime?
— Não me restava outro recurso para assegurar tua felicidade. Os credores se agitam. Acossado por meirinhos e expulso do palacete de Grandlieu, que seria de ti? Nessa ocasião o diabo exigiria o seu dinheiro.
Carlos Herrera pintou com um gesto o suicídio de um homem que se afoga[90]
e fitou em Luciano um desses olhares firmes e penetrantes que impõem à alma dos fracos a vontade dos fortes. Esse olhar fascinador, que teve como resultado afrouxar toda resistência, anunciava entre Luciano e seu conselheiro não somente segredos de vida e de morte mas ainda sentimentos tão superiores aos sentimentos ordinários quanto aquele homem era superior à baixeza da sua posição.
Constrangido a viver fora da sociedade, onde a lei lhe vedava tornar a entrar, extenuado pelo vício e por terríveis e furiosas resistências, mas dotado de uma força de alma que o corroía, essa personagem ignóbil e grandiosa, obscura e célebre, devorada principalmente por uma febre de vida, revivia no corpo elegante de Luciano, cuja alma se tornara a sua. Fazia-se representar na vida social por esse poeta a quem dava a sua consistência e a sua vontade de ferro. Para ele, Luciano era mais que um filho, mais que uma mulher amada, mais que uma família, mais que a própria vida: era a sua vingança. E, como as almas fortes têm mais apego a um sentimento que à existência, ligara-o a si por liames indissolúveis.
Depois de comprar a vida de Luciano num momento de desespero em que o poeta dava um passo para o suicídio, tinha-lhe proposto um desses pactos infernais que só nos romances se encontram, mas cuja terrível possibilidade muitas vezes tem sido demonstrada nas
cortes de justiça por célebres dramas judiciais. Proporcionando a Luciano todas as alegrias da vida parisiense, provando-lhe que ainda podia criar para si um belo futuro, fizera dele como que um objeto seu. De resto, nenhum sacrifício era custoso a esse homem estranho, desde que se tratasse do
seu alter ego
.[91]
Com toda a sua energia, era tão fraco contra as fantasias do seu pupilo que acabara por lhe confiar os seus segredos. Seria mais um laço entre eles essa cumplicidade puramente moral? Desde o dia em que a Torpedo fora raptada, Luciano sabia sobre que horrível base repousava a sua felicidade.
Aquela batina de padre espanhol escondia Jacques Collin, uma das celebridades das galés, e que, dez anos antes, vivia sob o nome burguês de Vautrin na Pensão Vauquer, onde moravam Rastignac e Bianchon. Jacques Collin, por alcunha
Engana-a-Morte
,
evadido de Rochefort pouco depois de haver sido aí reintegrado, aproveitou o exemplo dado pelo famoso conde de Santa Helena, modificando, porém, tudo quanto a ação ousada de Coignard[92]
teve de viciosa.
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