Vestir a pele de homem honrado e continuar a vida de grilheta é uma proposição cujos dois termos são tão contraditórios que dificilmente deixam de ter um desenlace funesto, sobretudo em Paris; porque um condenado, implantando-se numa família, multiplica os perigos dessa substituição. Para garantir-se contra buscas, é preciso pôr-se bem a cavaleiro dos interesses ordinários da vida. Um homem que convive com a sociedade anda sujeito a casualidades que raras vezes incidem sobre as pessoas que não têm contato com o mundo. Por isso a batina é o disfarce mais seguro quando se torna completo por um viver solitário, exemplar e sem ação. “Então serei padre”, disse consigo esse morto civil, que queria absolutamente reviver sob uma forma social e satisfazer paixões tão singulares como ele próprio. A guerra civil que a Constituição de 1812 suscitou na Espanha, onde esse homem de energia se achava, havia-lhe ministrado os meios de matar secretamente o verdadeiro Carlos Herrera numa emboscada. Bastardo de um fidalgo e abandonado havia muito pelo pai, ignorando a que mulher devia a existência, esse padre estava encarregado de uma missão política na França por Fernando
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, a quem um bispo o tinha proposto. O bispo, único homem que podia interessar-se por Carlos Herrera, morreu durante a viagem que esse filho degenerado da Igreja fazia de Cádis a Madri e de Madri à França. Feliz por ter encontrado aquela individualidade tão desejada e nas condições em que a queria, Jacques Collin feriu suas próprias costas para apagar as letras fatais e mudou de fisionomia por meio de reagentes químicos. Metamorfoseando-se assim diante do cadáver do padre antes de o aniquilar, pôde obter uma certa parecença com o morto. Para concluir essa transmutação, quase tão maravilhosa como aquela de que se fala no conto árabe no qual o dervixe, que é velho, conquistou o poder de entrar num corpo juvenil, por meio de certas palavras mágicas, o forçado, que falava espanhol, aprendeu de latim tanto quanto um tonsurado andaluz devia saber. Banqueiro dos três galés, Collin estava rico com os depósitos confiados à sua probidade conhecida, e aliás forçada; entre sócios tais, um erro se salda a punhaladas. A esses fundos acrescentou ele o dinheiro dado pelo bispo a Carlos Herrera. Antes de deixar a Espanha, conseguiu apoderar-se do tesouro de uma devota de Barcelona a quem deu a absolvição, prometendo-lhe a restituição das quantias oriundas de um assassinato cometido por ela e de onde provinha a fortuna da penitente. Feito padre, encarregado de uma missão secreta que lhe devia valer as mais poderosas recomendações em Paris, Jacques Collin, decidido a não fazer coisa alguma que pudesse comprometer o caráter de que se havia revestido, entregava-se às sortes da sua nova existência quando encontrou Luciano na estrada de Angoulême a Paris. Esse moço afigurou-se ao falso padre um maravilhoso instrumento de poderio; ele salvou-o do suicídio, dizendo-lhe: “Dê-se a um homem de Deus como quem se dá ao diabo, e terá todas as probabilidades de um novo destino. Viverá como num sonho; e o pior que lhe pode acontecer ao despertar é essa morte para a qual corria...”. A aliança desses dois entes, destinados a formar um só, fundou-se neste raciocínio cheio de força, que Carlos Herrera cimentou por meio de uma cumplicidade habilmente arranjada. Dotado do gênio da corrupção, destruiu a honestidade de Luciano criando-lhe necessidades cruéis e salvando-o delas por meio de consentimentos tácitos a ações más ou infames, que o deixavam sempre puro, leal, nobre aos olhos do mundo. Luciano era o esplendor social à sombra do qual queria viver o falsário. “Eu sou o autor, tu serás o drama; se não triunfares, o pateado serei eu”, disse-lhe ele no dia em que lhe confessou o sacrilégio do seu disfarce. Carlos foi cautelosamente de confissão em confissão, medindo a infâmia das confidências pela força de seus progressos e pelas necessidades de Luciano. Assim é que o antigo grilheta só revelou o seu último segredo no momento em que o hábito dos prazeres parisienses, os triunfos, a vaidade satisfeita haviam subjugado em benefício dele o corpo e a alma daquele poeta tão pusilânime. Onde Rastignac, outrora tentado por esse demônio, tinha resistido, sucumbiu Luciano, mais bem manejado, mais sabiamente comprometido e vencido sobretudo pela alegria de ter conquistado uma posição eminente.
O Mal, cuja configuração poética se chama Diabo, usou para com aquele homem meio feminino as suas mais vivas seduções, e primeiro pediu-lhe pouco dando-lhe muito. O grande argumento de Carlos foi aquele eterno segredo prometido por Tartufo a Elmira.[93]
As provas reiteradas de uma dedicação absoluta, semelhante à de Seíd[94]
por Maomé, concluíram a obra horrível da conquista de Luciano por Jacques Collin. Naquele momento não somente Ester e Luciano tinham devorado todos os fundos confiados à probidade do banqueiro da calceta, que por eles se expunha a terríveis ajustes de contas, senão que até tinham dívidas o dândi, o falsário e a cortesã. No momento, pois, em que Luciano ia triunfar, uma simples pedrinha debaixo do pé de qualquer daquelas três criaturas podia fazer desabar o fantástico edifício de uma fortuna tão audazmente construída. No baile da Ópera, Rastignac havia reconhecido o Vautrin da Pensão Vauquer, mas sabia que havia de morrer à primeira indiscrição; por isso o amante da sra. de Nucingen e Luciano trocaram olhares nos quais o medo se escondia de parte a parte debaixo das aparências de amizade. No momento do perigo, era indubitável que Rastignac com a melhor vontade arranjaria a corda que devia enforcar Engana-a-Morte.
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