É fácil, pois, adivinhar o sombrio júbilo que se apoderou de Carlos ao saber da paixão do barão de Nucingen, e abrangendo num só pensamento todo o partido que um homem da sua têmpera podia tirar da pobre Ester.
— Vai — disse ele a Luciano. — O diabo protege o seu capelão.
— Olha que estás fumando em cima de um paiol de pólvora.
—
Incedo per ignes![95]
—
respondeu Carlos sorrindo. — É o meu ofício.
xviii − o palácio de grandlieu
Em meados do século xviii
, a família de Grandlieu dividiu-se em dois ramos: primeiro, a casa ducal condenada à extinção porquanto o atual duque só teve filhas; depois, os viscondes de Grandlieu, que devem herdar o título e o brasão do ramo mais velho. O ramo ducal usa de goles
, com três cutelos ou achas d’armas de ouro
, postos em faixa
, com a famosa divisa caveo non timeo[96]
que resume toda a história da família.
O escudo dos viscondes se esquartela com o de Navarreins que é
de goles
,
com uma faixa ameiada de ouro
,
tendo por timbre o elmo de cavaleiro e por divisa
grands faits, grand lieu
.[97]
A atual viscondessa, viúva, desde 1813, tem um filho e uma filha. Apesar de ter regressado da emigração quase arruinada, recuperou, por obra da dedicação do procurador Derville,[98]
uma fortuna considerável.
Tornando em 1804, o duque e a duquesa de Grandlieu foram alvo das gentilezas do imperador; e assim Napoleão, que os atraiu para a Corte, restituiu à casa de Grandlieu tudo o que dela se achava na casa imperial, uns quarenta mil francos de rendimento. De todos os grandes senhores do
f
aubourg Saint-Germain que se deixaram seduzir por Napoleão, o duque e a duquesa (oriunda do ramo primogênito dos D’Ajuda,[99]
aliados dos Bragança) foram os únicos que não renegaram o imperador nem os seus benefícios. Luís
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respeitou essa fidelidade quando a alta aristocracia a lançou em rosto aos Grandlieu; mas nisso, provavelmente, Luís
xviii
só queria contrariar o irmão.[100]
Considerava-se provável o casamento do jovem visconde de Grandlieu com Maria-Athénaïs, última filha do duque, a qual contava então nove anos de idade. Sabina, a penúltima, casou com o barão du Guénic depois da Revolução de Julho.[101]
Josefina, a terceira, casou com o marquês d’Ajuda Pinto, viúvo de sua primeira mulher, a srta. de Rochefide. A mais velha tinha tomado o véu em 1822. A segunda, Clotilde Frederica, de vinte e sete anos, andava profundamente apaixonada por Luciano de Rubempré.
É escusado perguntar se o palácio do duque de Grandlieu, um dos mais belos da Rue Saint-Dominique, exercia mil prestígios sobre o espírito de Luciano; de cada vez que o imenso portão girava nos gonzos para deixar entrar o seu cabriolé, ele sentia essa satisfação de vaidade de que falava Mirabeau. “Apesar de meu pai ter sido um simples boticário no Houmeau,[102]
eu entro aqui”... Tal era o seu pensamento. Por isso seria capaz de cometer crimes ainda maiores que os da sua aliança com um falsário para conservar o direito de subir os poucos degraus da escadaria e ouvir anunciar “o sr. de Rubempré”, na grande sala à Luís
xiv
, feita no tempo de Luís
xiv
pelo modelo das de Versalhes, onde se encontrava a fina flor da sociedade de Paris.
A fidalga portuguesa, uma das senhoras que menos gostavam de sair de casa, estava quase sempre rodeada de seus vizinhos, os Chaulieu, os Navarreins, os Lenoncourt.[103]
Muitas vezes a formosa baronesa de Macumer,[104]
(Chaulieu, antes de casar-se), a duquesa de Maufrigneuse, a sra. d’Espard, a sra. de Camps,[105]
a srta. des Touches, aparentada com os Grandlieu que são da Bretanha, apareciam de visita, indo para o baile ou de volta da Ópera. O visconde de Grandlieu, o duque de Rhétoré, o marquês de Chaulieu, que havia de ser um dia duque de Lenoncourt-Chaulieu, sua esposa Madalena de Mortsauf, neta do duque de Lenoncourt, o marquês d’Ajuda Pinto, o príncipe de Blamont-Chauvry, o marquês de Beauséant, o vidama de Pamiers, os Vandenesse, o velho príncipe de Cadignan e seu filho, o duque de Maufrigneuse,[106]
eram os frequentadores habituais daquela sala grandiosa onde se respirava o ar da Corte, onde as maneiras, o tom, o espírito se harmonizavam com a fidalguia dos donos da casa, cujo
viver altamente aristocrático acabara por fazer esquecer a sua servidão napoleônica.
A velha duquesa d’Uxelles, mãe da duquesa de Maufrigneuse, era o oráculo desse salão, onde a sra. de Sérisy nunca lograra fazer-se admitir, apesar de descender dos Ronquerolle.
Trazido pela sra. de Maufrigneuse, que fizera trabalhar nisso sua mãe em favor de Luciano, por quem ela andara apaixonada durante dois anos, o sedutor poeta se aguentava aí por influência do capelão-mor do paço e com a ajuda do arcebispo de Paris. E, ainda assim,
não foi admitido senão depois de haver obtido o decreto que lhe restituiu o nome e as armas da casa de Rubempré. O duque de Rhétoré, o cavaleiro d’Espard e ainda alguns outros, com inveja de Luciano, indispunham periodicamente contra ele o duque de Grandlieu contando-lhe coisas do passado de Luciano; mas a devota duquesa, já rodeada pelas sumidades da Igreja, e Clotilde de Grandlieu o protegeram. Luciano explicou, de resto, suas inimizades narrando sua aventura com a prima da sra. d’Espard, a sra. de Bargeton, agora condessa du Châtelet. Depois, sentindo a necessidade de se fazer adotar por uma família tão poderosa, e induzido por seu conselheiro íntimo a ganhar as boas graças de Clotilde, Luciano teve a coragem dos aventureiros: apareceu no palácio cinco vezes por semana, sofreu com boa cara todos os vexames da inveja, suportou os olhares impertinentes, respondeu com espírito às zombarias. Sua assiduidade, o encanto de suas maneiras, sua complacência acabaram por neutralizar os escrúpulos e diminuir os obstáculos. Continuando a ser recebido em casa da duquesa de Maufrigneuse, cujas cartas ardentes, escritas no decurso de sua paixão, eram guardadas por Carlos Herrera, ídolo da sra. de Sérisy, bem-visto em casa da srta.
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