Frequentemente, sem dúvida acossado pela necessidade, estraga... Mas, apesar de tudo, e como Hugo, quantos motivos nos dá para admirá-lo! Como não compreender que os próprios defeitos fazem igualmente parte de sua grandeza; que, mais perfeito, não seria tão gigantesco”.
Em
Uma leitura de Balzac
Maurice Bardèche responde àqueles que apontam inverossimilhanças no romance. “Em
Esplendores e misérias
são apenas os pormenores que são falsos. Falsos por várias razões, mas sobretudo porque envelheceram. Se nos dissessem que Vautrin trafica com heroína, que o sr. de Grandlieu preside alguns conselhos de administração e que De Rubempré é um elegante que frequenta os ambientes do cinema, em tudo isso não veríamos inverossimilhança alguma. Os gostos de Vautrin, aliás, já não escandalizam ninguém.”
Das personagens do romance, Luciano é o mais admirado. George Moore achava-o tão grande como Hamlet; Oscar Wilde exemplificava com ele a sua teoria de arte pura, em
The Decay of Lying
:
“A leitura constante de Balzac reduz nossos amigos vivos a sombras e nossos conhecidos a fantasmas de sombras. Seus caracteres possuem uma espécie de existência fervente, cor de chama. Eles nos dominam e desafiam o ceticismo. Uma das maiores tragédias da minha vida é a morte de Luciano de Rubempré. E uma mágoa da qual nunca me pude livrar completamente. Ela me ocorre nos meus momentos de prazer. Lembro-me dela quando rio... A literatura sempre antecipa a vida. Não a copia, porém molda-a segundo os seus intentos. O século
xix
, como o conhecemos, é em grande parte uma invenção de Balzac. Nossos Lucianos de Rubempré, nossos Rastignacs e De Marsays fizeram a sua primeira aparição no palco de
A comédia humana
. Estamos apenas pondo em prática, com notas de pé de página e acréscimos supérfluos, o capricho ou a fantasia ou a visão criadora de um grande romancista”.
A tese de Oscar Wilde tem uma ilustração que parece quase intencional num estranho conto de Pierre Louys, “A falsa Ester”, no volume
Sanguines
. O autor pretende ter encontrado na loja de um antiquário um fragmento de diário íntimo da autoria de uma srta. Ester Gobseck, filósofa holandesa, nascida em 1812 e que em 28 de março de 1839 vem a Paris para protestar junto a Balzac contra o uso que este faz do nome de Ester van Gobseck, atribuindo-o a uma prostituta, com quem ela em nada se assemelha. Quando, depois de longos esforços, consegue penetrar na casa de Balzac, este a fulmina com a pergunta indignada: “Quem a autorizou, senhorita, a adotar o nome de Ester Gobseck?”. A moça sucumbe à sugestão do romancista a ponto de confundir a própria personalidade com a da Torpedo, chegando a prostituir-se como esta e a envenenar-se.
Com tudo o que pode ter de exageradamente romântico, a figura de Ester, a cortesã angélica, com a sua personalidade cindida entre o desprezo de seu antigo eu e “a saudade do lodo”, é uma das mais fortes e comovedoras da grande galeria balzaquiana.
A personagem Vautrin perturbou aos leitores como à crítica. A seu respeito as opiniões são bastante divergentes. Alguns chegam até a negar-lhe a “existência”. “De todos os retratos de
A comédia humana
, só talvez o de Vautrin é desprovido de interesse [...]. Contrariamente ao seu costume, Balzac, longe de partir dos fatos, pôs em cena uma abstração: raciocinou sobre ela à maneira dos metafísicos. Esta parte de sua obra constitui uma espécie de literatura
a priori
[...] Vautrin não existe” (Fernand Roux). Outros o acham a maior criação de Balzac, mas assim mesmo lhe reconhecem um caráter abstrato, simbólico: “Sua criação mais gloriosa, a que o classifica sem par entre os modernos e de fato um rival não igualado de Shakespeare, Vautrin pertence a essa categoria de personagens nas quais os criadores de excepcional gênio tentaram encarnar os poderes cegos que conduzem o mundo. [...] Em última análise é um artista e um poeta, guiado por irresistível necessidade de criação.
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