Estranha e grandiosa figura que se ergue no pensamento do seu criador e deve ficar no nosso com o caráter de um símbolo mais que de uma personagem viva” (Paul Flat).
No entanto, como já sabemos, Vautrin teve o seu modelo vivo na pessoa de Eugène-François Vidocq (1775-1857), cuja carreira apresenta mais de uma similitude com a do herói de Balzac. Este ex-galé, depois de oferecer os seus serviços à polícia, passou algum tempo na prisão de la Force, onde estudou o caráter dos presos. Chefe da brigada de segurança durante vários anos, pediu demissão em 1827, quando foi substituído pelo seu lugar-tenente, Coco-Latour. Depois de malograr-se na profissão de fabricante de papel, voltou a trabalhar por conta da polícia política. O próprio Luís Felipe teve uma entrevista com ele. Para reaver a direção da brigada de segurança, Vidocq organizou um roubo audacioso, oferecendo seus serviços para esclarecê-lo quando a polícia se mostrou incapaz de desvendar o mistério. Mas a trama foi descoberta e Vidocq teve de deixar a polícia para sempre. O antigo galé e policial lembrou-se então de organizar uma agência de informações para uso de particulares, que dirigiu durante alguns anos. Em 1828 saíram as pretensas
Memórias de Vidocq
, seguidas de outras obras de caráter autobiográfico, a ele atribuídas sem muita autenticidade.
Sabemos que Balzac conheceu Vidocq pessoalmente; Léon Gozlan conta, numa reportagem fantástica e espirituosa, um de seus encontros.
Com todas essas coincidências, Vautrin não é apenas um simples decalque de Vidocq. O autor insistiu muito em ressaltar-lhe a grandeza simbólica, chamando-o, numa imagem muito de seu estilo, “Cromwell da grilheta”, considerando-o como um Napoleão, um Maomé, um Moisés malogrado, e definindo-o, com auxílio da imaginação poética de Luciano, como “um gigantesco instrumento que Deus deixa enferrujar no fundo do oceano de uma geração”. Mas, também, procurou ligá-lo à humanidade com outros laços, entre os quais o mais forte é a complexa e equívoca atração que o une a Luciano, “seu belo eu sobre quem é preciso que não recaia nenhuma suspeita”, “sua vingança”, “o drama de que ele é o autor”. Ao nos lembrarmos da persistência com que Vautrin procura alter egos jovens e bonitos: Rastignac primeiro, o galé Calvi depois, e finalmente Luciano (sem falar de Raul de Frescas, personagem da peça
Vautrin
, não incluída em
A comédia humana
), admitimos a veracidade de todas essas interpretações dadas por ele mesmo, mas acrescentamos a de uma anormal atração física, insinuada uma única vez pelo próprio Balzac (em relação a Calvi). Se essa anomalia mantém Vautrin numa condição dolorosamente humana, ao mesmo tempo explica-lhe a força de super-homem capaz de prescindir do seu complemento feminino.
Não acabaria essa rápida análise se quisesse passar em revista todas as personagens de algum destaque. Basta apontar o juiz Camusot, o meio-termo feito magistrado, nem corrupto nem íntegro, com lances de honestidade e de baixeza, vigoroso desmentido aos que acusam Balzac de só pintar extremos e tipos abstratos.
A concepção romântica do assunto não impediu Balzac de procurar,
como sempre, uma documentação sólida; sabemos, por exemplo, por uma carta à Condessa Hanska, que foi assistir a interrogatórios na Conciergerie para dar aos de Luciano e de Vautrin a maior verossimilhança possível.
Num romance cuja redação envolveu um lapso de tempo tão demorado, as ideias e as concepções do próprio autor passaram por transformações. Em
Balzac’s Comédie Humaine
, Herbert J. Hunt nota como suas críticas relativas ao sistema penitenciário foram-se enfraquecendo e suas propostas para melhorar o regime dos condenados se tornaram menos enérgicas: o estudo intenso do mundo do crime ter-lhe-ia sugerido mais cautela.
Como em todas as obras escritas no fim da sua carreira, Balzac aparece aqui cada vez mais preocupado com o conjunto de seu edifício e cada vez mais convencido da importância deste. Sente-se nele o desejo de englobar toda a sociedade no seu imenso ciclo, de não esquecer nenhuma camada, nenhum recanto, por mais odiosos ou repugnantes que sejam, de completar a sua coleção de documentos humanos destinados não apenas ao leitor francês como ao público ledor de todas as nações da Europa. Os trechos em que descreve aspectos de Paris não para os parisienses que os conhecem, mas para os estrangeiros, mostram quanto ele era consciente do seu caráter de escritor europeu.
Nos prefácios das edições originais da maioria de seus livros, Balzac tecia frequentemente comentários instrutivos sobre a própria arte, as personagens, as diretrizes, os métodos e a moralidade de sua obra. Quase todos os editores modernos omitem esses prefácios pelo fato de as próprias obras, incessantemente modificadas pelo autor nas reedições sucessivas, não mais corresponderem àquelas a que se referiam os prefácios. Por esse motivo renunciou-se a incluí-los na presente edição, pois, em vez de facilitarem a orientação no mundo de
A comédia humana
, complicá-la-iam sobremaneira. Nem por isso deixamos, porém, de consultá-los sistematicamente e de extrair deles os conceitos que esclarecem as intenções do autor.
Assim, no Prefácio à edição de 1845 de
Esplendores
, Balzac faz ponderações relevantes acerca de duas personagens dessa obra. “Certamente”, escreve, “o barão de Nucingen é o Géronte moderno, o ancião de Molière, escarnecido, enganado, vilipendiado, nos trajes e pelos meios modernos.” Esta frase explica admiravelmente as ligações de Balzac com a literatura clássica. Os clássicos gregos, latinos e franceses apresentavam tipos universais da humanidade independentes da época e do meio: o Avarento, o Ancião Amoroso, a Moça Enclausurada, o Soldado Fanfarrão, a Sabichona e assim por diante, que muitas vezes nem nomes têm ou usam nomes simbólicos (como Géronte, palavra grega que significa “ancião”). Nas obras de Balzac, esses tipos eternos e universais, sem nada perderem de suas proporções, passam a ganhar um estado civil, a se chamar Grandet, Nucingen, Modesta Mignon, Felipe Bridau, Diná Piédefer, a se integrarem na sua época, a se explicarem respectivamente pelo ambiente e os hábitos de Saumur, da Bolsa de Paris, de Havre, do Palais-Royal, de Sancerre.
Se em relação a Nucingen Balzac se proclama um adepto dos clássicos, no tocante a Vautrin procura negar suas conivências com o romantismo. Desaprova os “que fazem do galé um ser interessante, desculpável, uma vítima da sociedade. Tais pinturas são perigosas e antipolíticas. É preciso apresentar tais seres como são, criaturas sempre postas fora da lei”. Não é difícil ver, porém, que Balzac, justamente no retrato de Vautrin, não conseguiu ficar isento daquilo que censura nos outros e ofereceu um protótipo aos romanceadores do crime.
Os leitores que vêm seguindo fielmente a ordem de leitura proposta por Balzac devem ter percebido que o caráter das personagens reaparecedoras não permanece rigorosamente idêntico de um romance para outro, mas sofre modificações que o tempo decorrido entre eles deve ter operado. Basta olhar para o Luciano de Rubempré de
Ilusões perdidas
e o de
Esplendores e misérias
. No primeiro desses livros ele ainda é o poeta, o romancista e o jornalista, que sonha com a glória adquirível com a pena; no segundo, corrompido pelos triunfos que lhe asseguram a sua beleza física e a equívoca proteção do falso padre Herrera, já se tornou refratário a toda espécie de trabalho e vive (aliás muito bem) de seus dotes de gigolô.
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