Essa constatação suscita um reparo curioso do balzacólogo Pierre Citron, responsável pela introdução ao nosso romance na nova edição da Pléiade. Ele acha inadequado o título devido ao plural da palavra cortesã, porque o livro se limita a relatar a ascensão e a queda de uma única prostituta de luxo, Ester van Gobseck, enquanto as demais heteras que nele aparecem desempenham apenas papéis secundários. A não ser que o qualificativo se aplique também a Luciano, cuja carreira lamentável, os meios de vida inconfessáveis e o fim trágico se assemelham em tudo aos da amante. Só assim o plural do título se tornaria natural.
Todos os grandes romances de Balzac são focos irradiadores de influências, assimiladores de tudo o que o passado produziu, fornecedores de germes para um sem-número de desenvolvimentos futuros. Já vimos algumas das sugestões que neles captaram contemporâneos ou sucessores, Hugo, Dumas, Louys. Frequentemente tais estímulos não se patenteiam à primeira vista e só se descobrem ao acaso da leitura. Assim, num trecho de
Esplendores e misérias das cortesãs
depara-se-me uma frase significativa, inspiradora provável do começo de
No caminho de Swann
, de Proust (o que não é surpreendente para quem conhece o culto votado por este a Balzac): “Existem em nós muitas memórias; o corpo tem a sua, o espírito também; a nostalgia, por exemplo, é uma doença da memória física”. Falta ainda o estudo de síntese para relacionar tudo o que a literatura e o pensamento de nossos dias devem em sugestões como esta ao generoso talento de Balzac.
“Este romance sombrio e rangente”, escreve Pierre Citron na introdução já citada, “talvez seja o mais realista e, ao mesmo tempo, o mais fantástico de quantos Balzac escreveu. O desprezo da verossimilhança, a força dos símbolos, a diversidade e o relevo das personagens, o questionamento da justiça e da polícia, a presença de criminosos e o emprego da gíria, a concentração da obra em redor de um galé o aparentam a outro grande romance popular cuja redação começava nesses anos de 1846 e 1847, em que Balzac acabava
Esplendores e misérias
, e cujo título era inicialmente uma das palavras do título de Balzac,
As misérias
: Victor Hugo havia de transformá-lo em
Os miseráveis
. Porém Hugo se mostrava nessa obra, como sempre, animado de otimismo no tocante à transformação da sociedade. No romance de Balzac, pelo contrário, o desespero vem à tona. O que não lhe diminui a grandeza e, talvez, lhe aumente a modernidade.”
paulo rónai
ESPLENDORES E MISÉRIAS DAS CORTESÃS
a
s
.
a
.
o príncipe alfonso serafino di porcia[1]
Permiti-me colocar-vos o nome no pórtico de uma obra essencialmente parisiense e meditada em vossa casa nestes últimos dias.
Não é natural oferecer-vos as flores de retórica brotadas em vosso jardim,
regadas de saudades que me fizeram conhecer a nostalgia e que mitigastes quando eu errava sob os boschetti
cujos olmeiros me lembravam os Champs-Élysées? Talvez resgate assim o crime de haver sonhado com Paris diante do Domo,
de haver aspirado às nossas ruas tão lamacentas nas lajes tão limpas e tão elegantes da Porta Renza.
Quando eu tiver alguns livros para publicar que possam ser dedicados a milaneses,
terei a felicidade de encontrar nomes queridos já de vossos velhos contistas italianos entre os das pessoas de que nós gostamos e a quem vos peço que lembreis
v
osso sinceramente afeiçoado
de balzac
Julho de 1838
primeira parte
como amam as cortesãs
i − uma vista do baile da ópera
Em 1824, no último baile da Ópera, muitos mascarados repararam na beleza de um rapaz que passeava pelos corredores e pelo salão, como quem anda em busca de uma mulher que, por circunstâncias imprevistas, ficasse retida em casa. O segredo desse modo de andar, ora indolente, ora estugado, só é conhecido das velhas senhoras e de alguns flanadores eméritos. Naquele imenso ponto de reunião, a turba pouco observa a turba, os interesses são exaltados, a própria ociosidade tem suas preocupações. O jovem dândi andava tão absorto na sua inquieta busca que não reparava no seu sucesso: as exclamações zombeteiramente admirativas de certos mascarados, os espantos sérios, os ditos mordentes, as mais doces palavras, nada ele via nem ouvia. Se bem que a sua beleza o classificasse entre essas personagens excepcionais que vão ao baile da Ópera para uma aventura, e que a esperam como no tempo do Frascati[2]
se esperava um número de sorte à roleta, ele parecia burguesmente fiado na sua noite: havia de ser o herói de um desses mistérios a três personagens que compõem todo o baile de máscaras da Ópera, e só conhecidos daqueles que desempenham seu papel; porque, para
as mulheres novas que lá vão a fim de poderem dizer “Eu vi”, para os provincianos, para os rapazes inexperientes, para os estrangeiros, a Ópera deve ser então o palácio da fadiga e do tédio. Para eles, essa multidão negra, lenta e pressurosa, que vai, vem, serpenteia, gira, redemoinha, sobe e desce, e que só pode ser comparada a um formigueiro sobre um monte de lenha, é tão incompreensível como a Bolsa para um campônio da Bretanha que ignore a existência do Grande-livro. Com raras exceções, em Paris os homens não se mascaram: um homem de dominó passa por ser ridículo. Nisto se mostra o gênio nacional. Aqueles que querem ocultar a sua felicidade podem ir ao baile da Ópera sem entrar, e os mascarados absolutamente forçados a lá entrar saem logo. Um espetáculo dos mais divertidos é o ajuntamento que se produz à porta desde que o baile começa, a onda de gente que sai, a braços com a gente que entra. Portanto, os homens mascarados são maridos ciumentos que vão espionar as mulheres ou maridos em falcatrua conjugal que não querem ser espionados por elas, duas situações igualmente dignas de troça. Ora aquele moço era seguido, sem o perceber, por um mascarado assassino, gordo e baixo, que se rebolava como um tonel. Para qualquer conhecedor da Ópera, esse dominó revelava um funcionário, um agente de câmbio, um banqueiro, um tabelião, um burguês qualquer, à cata da sua infiel. Com efeito, na alta-roda ninguém corre atrás de testemunhos humilhantes. Já muitos mascarados tinham apontado a dedo, rindo, esse monstruoso sujeito; outros tinham-no apostrofado; alguns rapazes tinham-no troçado; mas o seu ar e a sua presença revelavam um perfeito desdém por essas zombarias sem alcance; ia para onde o conduzia o tal rapaz, como um javali perseguido que não quer saber das balas que lhe assobiam aos ouvidos nem dos cães que lhe ladram no encalço. Se bem que, à primeira vista, o prazer e a inquietação hajam envergado a mesma libré, a ilustre túnica preta dos venezianos, e bem que tudo seja confuso no baile da Ópera, as diferentes rodas de que a sociedade parisiense se compõe encontram-se, reconhecem-se e observam-se. Há noções tão precisas para certos iniciados que essas garatujas de interesses são legíveis como um romance divertido. Para os frequentadores, portanto, aquele homem não podia estar (sendo feliz em seu amor), porque havia de trazer infalivelmente algum sinal convencionado, vermelho, branco ou verde, que indica as aventuras de antemão preparadas. Tratava-se de alguma vingança? Ao verem o mascarado seguir tão de perto um homem de sorte em seus amores, alguns ociosos voltavam-se para aquela bonita figura em que o prazer tinha posto a sua divina auréola.
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