O rapaz interessava: quanto mais andava, mais curiosidade despertava. Tudo, enfim, denunciava nele os hábitos de um viver elegante. Segundo uma lei fatal da nossa época, pouca diferença havia, quer física, quer moral, entre o mais distinto, o mais bem-educado filho de um duque e par e aquele belo rapaz que ainda há pouco a miséria esganara com suas mãos de ferro no meio de Paris. A beleza, a mocidade podiam encobrir nele profundos abismos, como sucede a muitos rapazes que querem fazer figura em Paris sem possuírem o capital necessário às suas pretensões e que cada dia jogam tudo numa cartada, sacrificando ao deus mais cortejado nesta régia cidade, o Acaso. Mas o seu traje e as suas maneiras eram irrepreensíveis; pisava o clássico soalho do salão como um frequentador da Ópera. Quem não terá reparado que ali, como em todas as zonas de Paris, há um modo de ser que revela o que somos, o que fazemos, de onde vimos, o que queremos?

— Bonito moço! Aqui ao menos pode a gente voltar-se para o ver — disse uma mascarada em quem os frequentadores do baile reconheciam uma senhora da alta-roda.

— Não se lembra dele? — respondeu-lhe o seu par. — Entretanto, a sra. du Châtelet[3] o apresentou à senhora...

— Como! É então o boticariozinho por quem ela se apaixonou e que se fez jornalista, o amante da srta. Corália?

— Eu julgava-o caído a ponto de se não poder mais levantar, e não compreendo como pode tornar a aparecer na sociedade parisiense — disse o conde Sisto du Châtelet.

— Tem ares de príncipe — disse a mascarada — e decerto quem lhos deu não foi essa atriz com a qual ele vivia;[4] minha prima[5] tinha-o adivinhado, mas não o soube desemburrar; gostaria de conhecer a amante desse Sargines;[6] diga-me alguma coisa da sua vida com que o possa embaraçar.

Este par que seguia o rapaz segredando foi então particularmente notado pelo mascarado de ombros largos.

— Meu caro sr. Chardon — disse o chefe de polícia da Charente tomando o dândi pelo braço —, apresento-lhe uma pessoa que deseja tornar a travar conhecimento com o senhor.

— Meu caro conde du Châtelet — respondeu o rapaz —, essa pessoa ensinou-me quanto era ridículo o nome que o senhor me está dando. Um decreto de sua majestade restituiu-me o nome dos meus antepassados maternos, os De Rubempré. Os jornais noticiaram esse fato; mas refere-se a uma personagem tão insignificante que me não envergonho de o lembrar aos meus amigos, aos meus inimigos e aos indiferentes; coloque-se na classe que mais lhe convier, mas estou certo de que não reprovará uma medida que me foi aconselhada por sua esposa ao tempo em que ainda era sra. de Bargeton. — Este fino epigrama, que fez sorrir a marquesa, causou um estremecimento nervoso no prefeito da Charente. — Diga-lhe — acrescentou Luciano — que atualmente eu uso de goles , com um touro furioso de prata numa campanha de sinople .

— Furioso de prata — repetiu Du Châtelet.

— A senhora marquesa que lhe explique, se o senhor o ignora, por que motivo esse velho brasão é um pouco melhor que a chave de camareiro e as abelhas de ouro do Império que estão no seu escudo, para castigo da sra. du Châtelet, antes Nègrepelisse d’Espard... disse vivamente Luciano.

— Uma vez que me reconheceu, já não o posso enganar e não tenho expressões para lhe significar quanto está espicaçando a minha curiosidade — disse-lhe em voz baixa a marquesa d’Espard, muito espantada com a impertinência e o aprumo adquirido pelo homem que ela outrora desprezara.

— Permita-me pois, minha senhora, conservar a única probabilidade que tenho de ocupar o seu pensamento, ficando nesta penumbra misteriosa — disse ele com o sorriso de um homem que não quer comprometer uma felicidade segura.

A marquesa não pôde reprimir um movimentozinho seco, ao sentir-se adivinhada pela precisão de Luciano.

— Cumprimento-o pela sua mudança de posição — disse o conde du Châtelet.

— E eu agradeço-lhe com a mesma cordialidade — tornou Luciano saudando a marquesa com infinita elegância.

— Enfatuado! — disse em voz baixa o conde à sra. d’Espard. — Acabou por conquistar seus antepassados.

— A fatuidade dos rapazes, quando cai sobre nós, anuncia quase sempre uma ventura muito superior; porque a de vocês anuncia desvarios. Desejava conhecer qual das nossas amigas tomou sob a sua proteção este lindo pássaro; talvez assim me fosse possível divertir-me esta noite. O bilhete anônimo que recebi é sem dúvida maldade de alguma rival, porque nele se trata deste rapaz; ditaram-lhe sua impertinência: espione-o. Eu vou tomar o braço do duque de Navarreins,[7] o senhor depois me encontrará.

No momento em que a sra. d’Espard ia alcançar o seu parente, o máscara misterioso colocou-se entre ela e o duque para lhe dizer ao ouvido:

— Luciano ama-a, e é o autor do bilhete; o chefe de polícia é o seu maior inimigo; como poderia Luciano explicar-se diante dele?

O desconhecido afastou-se deixando a sra. d’Espard abandonada a uma dupla surpresa. A marquesa não suspeitava de ninguém no mundo que pudesse desempenhar o papel daquele mascarado; teve medo de alguma armadilha, foi sentar-se e escondeu-se. O conde Sisto du Châtelet, a quem Luciano tinha suprimido o du ambicioso, com uma afetação que tresandava a vingança demoradamente sonhada, seguiu a distância o miraculoso dândi e encontrou-se com um rapaz a quem julgou poder falar claro.

— Ó Rastignac, já viu Luciano? Ele criou pele nova.

— Se eu fosse tão bonito rapaz como ele, havia de ser ainda mais rico — respondeu o jovem elegante num tom ligeiro mas fino, que exprimia uma zombaria ática.

— Não! — disse-lhe ao ouvido o mascarado gordo, pagando-lhe mil zombarias por uma só na maneira como acentuou o monossílabo.

Rastignac, que não era homem para engolir um insulto, ficou como que fulminado por um raio, e deixou-se levar para um vão de janela, por uma mão de ferro que não pôde arredar.

— Seu franguinho saído do galinheiro da tia Vauquer,[8] você, a quem faltou coragem para apanhar os milhões de papá Taillefer quando o mais difícil estava feito, saiba, para sua segurança pessoal, que, se não proceder com Luciano como com um irmão amado, está nas nossas mãos sem nós estarmos nas suas. Silêncio e dedicação, ou meto-me no seu jogo para lhe empatar as vazas. Luciano de Rubempré é protegido pelo maior poder de hoje, a Igreja. Escolha entre a vida e a morte. Que responde?

Rastignac teve uma vertigem, como quem adormece numa floresta e acorda ao lado de uma leoa faminta. Teve medo, mas sem testemunhas: os homens mais corajosos se abandonam então ao medo.

“Só ele pode saber...