e atrever-se...”, pensou consigo mesmo.
O mascarado apertou-lhe a mão, para não deixá-lo completar a frase.
— Faça de conta que é
ele
... — disse.
ii − outras máscaras
Rastignac portou-se então como um milionário na estrada ameaçado por um salteador: capitulou.
— Meu caro conde — disse a Du Châtelet, indo-o procurar —, se tem apego à sua posição, trate Luciano de Rubempré como homem a quem um dia verá em mais alta situação do que a sua hoje.
O mascarado deixou escapar um imperceptível gesto de satisfação e voltou a andar no rastro de Luciano.
— O meu amigo mudou de opinião bem depressa — respondeu o chefe de polícia, justamente espantado.
— Tão depressa como aqueles que estão no Centro e votam com a Direita — respondeu Rastignac ao prefeito-deputado, cujo voto faltava ultimamente ao Ministério.
— Quem é que hoje tem opiniões? Hoje não há senão interesses — replicou Des Lupeaulx,[9]
que os estava escutando. — De que se trata?
— Do sr. de Rubempré, que Rastignac me quer impingir por uma alta personagem — disse o deputado ao secretário-geral.
— Meu caro conde — respondeu-lhe Des Lupeaulx com modo grave —, o sr. de Rubempré é um moço do maior mérito e com tão boas proteções que eu me daria por feliz em renovar relações com ele.
— Ei-lo que vai cair no vespeiro dos
roués
da época — disse Rastignac.
Os três interlocutores voltaram-se para um canto onde estavam alguns espirituosos, homens mais ou menos célebres, e alguns elegantes. Punham todos em comum as suas observações, os seus bons ditos e a sua má-língua, divertindo-se ou fazendo horas para algum divertimento. Nesse grupo tão extravagantemente composto, havia gente com quem Luciano tivera relações entremeadas de atos ostensivamente bons e de maus serviços ocultos.
— Olá, Luciano! Meu filho, meu amor! Com que então, pele nova, hein? De onde vem? Com que então, tornamos a montar no animal com auxílio dos presentes enviados do toucador da Florina? Bravo, meu rapaz — exclamou Blondet largando o braço de Finot[10]
para tomar familiarmente Luciano pela cintura e apertá-lo ao coração.
Andoche Finot era proprietário de uma revista em que Luciano tinha trabalhado quase de graça e que Blondet enriquecia com a sua colaboração, com a prudência dos seus conselhos e com a profundeza das suas apreciações. Finot e Blondet personificavam Bertrand e Raton,[11]
com a diferença de que o gato de La Fontaine acaba por perceber que é comido, e Blondet, sabendo-se comido, não deixava de servir Finot. Esse brilhante
condottiere
da pena estava predestinado, com efeito, a ser longo tempo escravo. Finot ocultava uma vontade brutal sob as suas exterioridades pesadas, sob a sua toleima impertinente, com uns longes de espírito como o pão de um operário no qual se esfregou um pouco de alho. Sabia enceleirar o que colhia, ideias e dinheiro, através dos campos da vida dissipada que levam os homens de letras e os homens de negócios políticos. Blondet, por seu mal, tinha posto a sua força a soldo dos seus vícios e da sua preguiça. Sempre apanhado de surpresa pela necessidade, pertencia à pobre tribo dos homens eminentes que tudo podem fazer para a fortuna alheia sem nada poderem fazer pela sua, Aladins[12]
cuja lâmpada anda sempre emprestada. Esses admiráveis conselheiros têm o espírito perspicaz e justo, quando este não é violentamente disputado pelo interesse pessoal. Nele quem age é a cabeça e não o braço. Daí a incoerência dos seus costumes e a censura com que os fulminam os espíritos inferiores. Blondet repartia a sua bolsa com o camarada a quem ainda na véspera ferira; jantava, bebia, dormia com aquele que no dia seguinte havia de estrangular. Os seus cômicos paradoxos tudo justificavam. Aceitando o mundo inteiro como um gracejo, não queria ser tomado a sério. Novo, amado, quase célebre, feliz, não tratava, como Finot, de adquirir a fortuna necessária ao homem idoso. A coragem mais difícil é talvez aquela de que Luciano precisava naquele momento para desacatar Blondet, como desacatara a sra. d’Espard e Du Châtelet. Nele, infelizmente, os gozos da vaidade tolhiam o exercício do orgulho, que sem dúvida é o princípio de muitas coisas grandes. Sua vaidade tinha triunfado no encontro precedente: mostrara-se rico, feliz e desdenhoso, com duas pessoas que outrora o tinham desdenhado pobre e miserável; mas podia acaso um poeta, como qualquer diplomata encanecido, romper com dois supostos amigos que o haviam acolhido na sua miséria e em cuja casa dormira nos dias de penúria? Finot, Blondet e ele tinham-se aviltado juntos, haviam saracoteado em orgias que não devoravam senão o dinheiro dos seus credores. Como esses soldados que não sabem empregar a coragem a tempo e horas, Luciano fez então o que muita gente faz em Paris: comprometeu de novo o seu caráter, aceitando um aperto de mão de Finot, não se esquivando às festas de Blondet. Todo aquele que esteve ou está ainda no jornalismo tem a necessidade cruel de cumprimentar os homens que despreza, de sorrir ao seu maior inimigo, de pactuar com as mais fétidas baixezas, de sujar os dedos por querer pagar aos agressores na mesma moeda. Toma-se o hábito de ver fazer o mal, de o deixar passar; começa-se por aprová-lo, acaba-se por cometê-lo. Com o tempo, a alma, constantemente maculada por vergonhosas e contínuas transações, apouca-se, a mola dos pensamentos nobres enferruja-se, os gonzos da banalidade desgastam-se e giram sem ninguém lhes tocar. Os Alcestes tornam-se Filintos,[13]
os caracteres perdem a têmpera, os talentos se abastardam, a fé nas belas obras se dissipa. Aquele que desejara ter o orgulho das suas páginas gasta-se em tristes artigos que a consciência, mais cedo ou mais tarde, lhe assinala como outras tantas más ações.
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