Como Lousteau, como Vernou,[14] queria vir a ser um grande escritor, e apenas vinha a ser um impotente foliculário. Todas as honras pois são poucas para aqueles em que o caráter está à altura do talento, para os D’Arthez,[15] que sabem caminhar de pé firme através dos escolhos da vida literária. Luciano não soube dar resposta às amabilidades de Blondet, cujo espírito, de resto, exercia sobre ele irresistíveis seduções, que conservava o ascendente do corruptor sobre o discípulo, e que enfim estava bem colocado na alta-roda pela sua ligação com a condessa de Montcornet.

— Herdou de algum tio? — perguntou-lhe Finot em ar de troça.

— Nada. Fiz como o senhor, dei golpes nos tolos — respondeu-lhe Luciano no mesmo tom.

— Ah! Tem alguma revista, algum jornal? — tornou Andoche Finot com a jactância impertinente do explorador para com o explorado.

— Tenho melhor que isso — replicou Luciano, cuja vaidade, ofendida pela superioridade que o redator principal afetava, lhe restituiu o espírito da sua nova posição.

— E o que tem, meu caro...

— Um Partido.

— O partido, Luciano? — disse Vernou sorrindo.

— Finot, aí tens; este moço passou-te adiante, eu bem te dizia. Luciano tem talento, não o poupaste. Anda, arrepende-te, malandrão — disse Blondet.

Fino como um coral, Blondet viu mais de um segredo no tom, no gesto, na maneira de Luciano; e, amansando-o, soube ir apertando de novo com as suas palavras a barbela do freio. Queria conhecer as razões da volta de Luciano a Paris, os seus projetos, os seus meios de existência.

— De joelhos perante uma superioridade que tu nunca hás de ter, apesar de seres Finot[16] — volveu ele. — Admite este cavalheiro, sem mais delongas, no rol dos homens fortes a quem o futuro pertence, porque ele é dos nossos. Espirituoso e belo, não tem acaso direito a triunfar quibuscumque viis ?[17] Ei-lo na sua boa armadura de Milão, com a sua poderosa adaga meio desembainhada, o seu pendão tremulando ao vento. Ah, Luciano! Onde roubaste esse lindo colete? Não há como o amor para descobrir semelhantes estofos. Com que então, já se tem casa, hein? Eu estou precisando saber os endereços dos amigos, porque não tenho onde dormir. Finot esta noite deixa-me ao relento, a pretexto de uma aventura...

— Meu caro — respondeu Luciano —, eu pus em prática uma máxima com que se tem a certeza de viver descansado: fuge , late , tace .[18] Deixo-te.

— Mas não te deixo enquanto me não pagares uma dívida sagrada, aquela ceiazinha, hein? — disse Blondet, que gostava da boa mesa e que se encostava aos outros quando estava sem dinheiro.

— Que ceia? — tornou Luciano, meio impaciente.

— Não te lembras? Aí está por onde se conhece a prosperidade de um amigo; perde a memória.

— Ele sabe o que nos deve, eu sou fiador de seu coração — disse Finot, aproveitando o gracejo de Blondet.

— Rastignac — disse Blondet, tomando o moço elegante pelo braço no momento em que ele chegava ao extremo do foyer , junto da coluna onde estavam os supostos amigos —, trata-se de uma ceia, contamos com você. A menos que este cavalheiro — continuou ele muito sério, apontando para Luciano — persista em negar uma dívida de honra; o que é possível.

— O sr. de Rubempré é incapaz de semelhante coisa, garanto eu — disse Rastignac, longe de pensar que aquilo fosse uma mistificação.

— Lá vem Bixiou,[19] que também há de partilhar da ceia — disse Blondet. — Sem ele, nada é completo. Sem ele, o champanhe empasta-me a língua, e acho tudo insípido, até a pimenta dos epigramas.

— Vejo que estão reunidos em volta da maravilha do dia — disse Bixiou. — O nosso querido Luciano está a reeditar As metamorfoses de Ovídio. Assim como os deuses se transformavam em legumes singulares e outras coisas para seduzir mulheres, Luciano transformou o Chardon em fidalgo, para seduzir quem? Carlos x ![20] Meu querido Luciano — continuou ele segurando-o por um botão da casaca —, um jornalista que passa a fidalgo merece uma grande algazarra. No lugar destes — continuou o implacável trocista apontando para Finot e Vernou — desancava-te nas gazetas; rendias-lhes uns cem francos, dez colunas de boas facécias.

— Bixiou — disse Blondet —, um anfitrião é para nós sagrado vinte e quatro horas antes e doze depois da festa. O nosso ilustre amigo oferece-nos de cear.

— Como? Que diz? — exclamou Bixiou. — Mas que coisa mais necessária do que salvar do esquecimento um nome ilustre e dotar a indigente aristocracia com um homem de talento? Luciano, tens a estima do jornalismo de que eras o mais belo ornamento, e nós te apoiaremos. Finot, um artiguinho de primeira página! Blondet, um artigo, insidioso na quarta página do teu jornal! Anunciemos a aparição do mais belo livro da época, O arqueiro de Carlos ix ! Supliquemos a Dauriat que nos dê sem demora as Boninas , esses divinos sonetos do Petrarca[21] francês! Ergamos o nosso amigo sobre o pavê de papel timbrado que faz e desfaz as reputações!

— Se queres cear — disse Luciano a Blondet para se descartar daquele grupo que ameaçava crescer —, parece-me que não precisavas empregar a hipérbole e a parábola com um velho amigo, como se ele fosse um palerma. Até amanhã à noite, no Lointier![22] — disse ele vivamente, vendo aproximar-se uma mulher para a qual correu.

— Oh! Oh! Oh! — disse Bixiou em três tons e com ar de zombaria, parecendo reconhecer a mascarada a cujo encontro Luciano correra. — Isto merece confirmação.

iii −a torpedo

E seguiu o belo par, passou adiante dele, examinou-o com perspicácia e voltou atrás com grande júbilo de todos aqueles invejosos, interessados em saber de onde provinha a mudança de fortuna de Luciano.

— Meus amigos, vocês conhecem de longa data a conquista do sr. de Rubempré — disse-lhes Bixiou. — É a antiga ratinha de Des Lupeaulx.

Uma das perversidades agora esquecidas, mas em uso no começo deste século, era o luxo das ratinhas. Ratinha, termo já antiquado, aplicava-se a uma criança de dez ou onze anos, comparsa em qualquer teatro, principalmente na Ópera, que os libertinos iniciavam no vício e na infâmia. Uma ratinha era uma espécie de pajem infernal, um gaiato de saias, a quem se perdoavam as boas partidas. A ratinha podia furtar tudo; era preciso desconfiar dela como de um animal perigoso; introduzia na vida um elemento de riso, como antigamente os Scapin, os Sganarello e os Frontin[23] na velha comédia. Uma ratinha ficava cara; não dava honra nem proveito nem prazer; a moda passou de tal maneira que hoje poucas pessoas sabiam desse pormenor íntimo da vida elegante anterior à Restauração, enquanto alguns escritores não se apossaram da ratinha como de um assunto novo.

— O quê? Pois Luciano, depois de dar cabo de Corália, ainda nos havia de levar a Torpedo? — disse Blondet.

Ouvindo este nome, o máscara de formas atléticas deixou escapar um movimento que, apesar de concentrado, foi surpreendido pelo sr.