Devo ter mudado de quarto exatamente porque aquele se havia transformado em cemitério de minhas boas intenções e já não achava possível formular outras naquele mesmo lugar.
Creio que o cigarro, quando se trata do último, revela muito mais sabor. Os outros têm, sem dúvida, seu gosto especial, porém menos intenso. O último deriva seu sabor do sentimento de vitória sobre nós mesmos e da esperança de um futuro de força e de saúde. Os outros têm a sua importância porque, acendendo-os, afirmamos a nossa liberdade e o futuro de força e de saúde permanece, embora um pouco mais distanciado.
As datas inscritas nas paredes de meu quarto eram de cores variadas e algumas até a óleo. O propósito, refeito com a fé mais ingênua, encontrava expressão adequada no vigor do colorido que devia fazer esmaecer o da intenção precedente. Algumas delas gozavam de minha preferência pela concordância dos algarismos. Recordo uma data do século passado que me pareceu a lápide capaz de selar para sempre o túmulo de meu vicio: "Nono dia do nono mês de 1899." Significativa, não é mesmo? O novo século trouxe-me datas igualmente musicais: Primeiro dia do primeiro mês de 1901." Ainda hoje sinto que se fosse possível repetir a data eu saberia como iniciar nova vida.
Mas outras datas viriam, e, com um pouco de imaginação, qualquer uma delas poderia adaptar-se a uma boa intenção. Recordo, pelo fato de que me pareceu conter um imperativo supremamente categórico, a seguinte data: "Terceiro dia do sexto mês de 1912 às 24 horas." Soa como se cada número dobrasse a parada do antecedente.
O ano de 1913 deu-me um momento de hesitação. Faltava o décimo-terceiro mês para fazê-lo corresponder ao ano. Mas não se pense que seja necessário tamanho acordo numa data para dar ensejo a um último cigarro. Muitas datas, que encontro consignadas em livros ou quadros preferidos, despertam a atenção pela sua inconseqüência. Por exemplo, o terceiro dia do segundo mês de 1905, às seis horas! Nesta há também um ritmo, quando se observa que cada uma das cifras é como uma negação da precedente. Muitos acontecimentos, quase todos, desde a morte de Pio IX ao nascimento de meu filho, pareceram-me dignos de ser festejados com o férreo propósito de sempre. Todos na família se admiram de minha memória para os aniversários alegres ou tristes e atribuem isso à minha bondade!
Para atenuar-lhe a aparência ridícula, tentei dar um conteúdo filosófico à enfermidade do último cigarro. Assume-se uma atitude altiva e diz-se: "Nunca mais!" Porém, o que é feito da atitude se mantemos a promessa? Só podemos reassumi-la se renovamos o propósito. Além disso, o tempo para mim não é essa coisa insensata que nunca pára. Para mim, só para mim, ele retorna. A doença é uma convicção, e eu nasci com essa convicção. Não me lembraria da que contraí aos vinte anos se não a tivesse naquela época relatado a um médico. Curioso como recordamos melhor as palavras ditas que os sentimentos que não chegaram a repercutir no ar.
Fora ver esse médico que me disseram curar doenças nervosas com emprego da eletricidade. Pensei poder extrair da eletricidade a força que me faltava para deixar o fumo. O doutor tinha uma barriga enorme e sua respiração asmática acompanhava as batidas da máquina elétrica, posta em funcionamento desde a primeira consulta; isso me desiludiu, porque esperava que o doutor, examinando-me, descobrisse o veneno que me inquinava o sangue. Em vez disso, declarou que me achava em perfeita saúde e, já que me queixava de má digestão e de insônia, admitiu que eu tivesse carência de ácidos no estômago e um movimento peristáltico preguiçoso (disse tal palavra tantas vezes que nunca mais a esqueci). Chegou a prescrever certo ácido que me arruinou o estômago de tal forma que até hoje sofro de excesso de acidez.
Quando compreendi que por si mesmo ele jamais chegaria a descobrir que a nicotina me contaminava o sangue quis ajudá-lo, aventando-lhe a hipótese de que minha indisposição pudesse ser atribuída a isso. Ergueu os grandes ombros com enfado:
— Movimento peristáltico... ácido... a nicotina nada tem a ver com isso!
Submeti-me a setenta aplicações elétricas e elas teriam continuado se eu não resolvesse que já eram o bastante. Mais do que à espera de um milagre, corria ao consultório na esperança de convencer o médico a me proibir de fumar. Quem sabe as coisas tomariam outro rumo se meus propósitos fossem fortificados por uma tal proibição?
Mas vamos à descrição de minha doença, tal como a relatei ao médico: "Não consigo estudar e, nas raras vezes em que me deito cedo, permaneço insone até os primeiros toques de sinos. É por isso que hesito entre a química e o direito, pois ambas as ciências exigem um trabalho que começa em hora fixa, ao passo que não sei quando conseguiria levantar-me."
— A eletricidade cura qualquer insônia — sentenciou o esculápio, olhos sempre voltados para o mostrador do aparelho em vez de tê-los fixos no doente.
Cheguei a conversar com ele como se o homem fosse capaz de compreender a psicanálise em que eu, timidamente, me iniciava.
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