Eu julgara que era a casa que estava pegando fogo, não a campina; mas, embora vários dos cidadãos de Massachusetts estejam neste momento na prisão por tentar salvar um escravo das garras do Estado, nenhum dos oradores daquele encontro expressou um lamento por isso, tampouco se referiu ao assunto. Era só o destino de algumas terras bravias a mais de 2 mil quilômetros de distância que parecia preocupá-los. Os habitantes de Concord não estão preparados para defender uma de suas próprias pontes, mas só falam em ocupar posições nas terras altas do outro lado do rio Yellowstone. Nossos Buttricks, Davises e Hosmers estão se refugiando naquelas bandas, e temo que não venham a ter nenhum pedaço de terra de Lexington entre eles e o inimigo. Não há um único escravo em Nebraska; há talvez 1 milhão de escravos em Massachusetts.

Aqueles que foram formados na escola da política fracassam agora e sempre ao encarar os fatos. Suas medidas são meramente meias-medidas paliativas. Elas adiam indefinidamente o dia do acerto de contas, e enquanto isso a dívida se acumula. Embora a Lei do Escravo Fugitivo não tenha sido objeto de discussão naquela ocasião, ela foi por fim vagamente analisada por meus concidadãos, numa reunião interrompida no meio, segundo me dizem, na qual o Compromisso de 1820a foi repudiado por um dos partidos e decidiu-se que “portanto… a Lei do Escravo Fugitivo deve ser repelida”. Mas não é essa a razão pela qual uma lei iníqua deva ser repelida. O fato que o político confronta é meramente que há menos honra entre ladrões do que se supunha, e não o fato de se tratar de ladrões.

Já que não tive oportunidade de expressar minhas ideias naquele encontro, os senhores permitem que eu o faça aqui?

Acontece mais uma vez que o Tribunal de Boston está cheio de homens armados, mantendo prisioneiro e submetendo a julgamento um homem, para descobrir se ele é ou não um escravo. Alguém acredita que a Justiça, ou Deus, está à espera do veredicto do sr. Loring? Ele simplesmente passa ridículo sentado ali, deliberando, quando a questão já está decidida desde sempre e para sempre, e o próprio escravo iletrado, bem como a multidão em volta, já ouviu há muito tempo a decisão e submeteu-se a ela. Somos tentados a perguntar de quem ele recebeu essa incumbência, e quem é ele para exercê-la; a que estatutos inauditos ele obedece, e em que precedentes baseia sua autoridade. A própria existência de tal árbitro é uma impertinência. Não lhe pedimos para fazer um julgamento, mas para fazer as malas e ir embora.

Apuro os ouvidos para escutar a voz de um governador, o comandante-chefe das forças de Massachusetts. Ouço apenas o estrilar dos grilos e o zumbido dos insetos que agora infestam o ar do verão. O grande feito do governador é passar a tropa em revista nos dias de inspeção. Já o vi a cavalo, sem chapéu, ouvindo as preces de um capelão. Talvez tenha sido só isso que vi um governador fazer. Creio que poderia passar muito bem sem um. Se ele não tem serventia alguma para me impedir de ser sequestrado, eu pergunto: que utilidade importante ele poderia ter para mim? Quando a liberdade está mais ameaçada, ele se deixa ficar na mais profunda obscuridade. Um clérigo muito ilustre me contou que escolheu a carreira eclesiástica porque lhe permitia o máximo de tempo livre para cultivar seus interesses literários. Eu lhe recomendaria a profissão de governador.

Três anos atrás, também, quando se desenrolou a tragédia de Simms,b eu disse a mim mesmo: existe um funcionário, para não dizer um homem, no cargo de governador de Massachusetts — o que ele esteve fazendo nos últimos quinze dias? Será que ele fez o possível para ficar em cima do muro durante aquele terremoto moral? Parece-me que não poderia haver sátira mais mordaz a esse homem, nem insulto mais incisivo, do que simplesmente o que aconteceu: a ausência de qualquer consulta ou indagação a ele durante a crise. O máximo que posso dizer sobre ele é que não aproveitou aquela oportunidade para se fazer conhecido e digno de mérito. Ele poderia pelo menos ter se resignado à fama. Ficou a impressão de que a própria existência de um homem assim, de um cargo assim, tinha caído no esquecimento. No entanto, não resta dúvida de que ele estava se empenhando o tempo todo para manter ocupada a cadeira governamental. Mas não era meu governador. A mim ele não governava.

Mas pelo menos, no caso atual, ouviu-se a fala do governador. Depois que ele e o governo dos Estados Unidos tiveram pleno êxito em roubar de um pobre negro inocente sua liberdade de viver e, tanto quanto lhes foi possível, sua semelhança de sentimentos com o Criador, o governador fez um discurso a seus cúmplices, num banquete de felicitações!

Li uma lei recente deste estado que torna punível “todo funcionário da Comunidade”c que “detenha, ou colabore para a… detenção”, em qualquer lugar dentro de suas fronteiras, “de qualquer pessoa, por motivo de ser considerada um escravo fugitivo”.