Ora, não é preciso muito esforço para isso. Essa lei não está à altura da cabeça ou da razão; seu habitat é a lama. Ela nasceu, cresceu e passa sua vida no pó e no barro, ao nível dos pés, e aquele que anda livremente e não evita, com misericórdia hindu, pisar nos mais reles répteis peçonhentos, inevitavelmente passará por cima dela, portanto a pisoteará — e junto com ela pisoteará também Webster,f seu criador, como se fossem o verme e a sujeira grudada nele.

Eventos recentes são valiosos como crítica à administração da justiça em nosso meio, ou, antes, como exposição dos verdadeiros recursos da justiça em uma comunidade qualquer. Chegamos a um ponto em que os amigos da liberdade, os amigos dos escravos, estremeceram ao compreender que a decisão sobre seu destino estava nas mãos dos tribunais legais do país. Homens livres não têm confiança alguma de que a justiça prevalecerá num caso assim; o juiz pode decidir desta ou daquela maneira; é uma espécie de acaso, na melhor das hipóteses. É evidente que ele não é uma autoridade competente num caso tão importante. Não é hora, então, de julgar de acordo com os precedentes, mas de estabelecer um precedente para o futuro. Prefiro antes confiar no sentimento do povo. Em seus votos encontraremos pelo menos alguma coisa de certo valor, ainda que pequeno; caso contrário, ficamos restritos apenas ao julgamento limitado de um indivíduo, sem significado algum.

É até certo ponto fatal para os tribunais quando as pessoas são compelidas a deixá-los para trás. Não quero crer que os tribunais tenham sido feitos apenas para tempos tranquilos e para causas triviais — mas imagine deixar a cargo de qualquer tribunal do mundo decidir se mais de 3 milhões de pessoas, no caso a sexta parte de uma nação, têm ou não o direito de ser homens livres! Entretanto, a questão foi entregue aos assim chamados tribunais de justiça — à Suprema Corte do país — e, como os senhores todos sabem, sem reconhecer autoridade alguma que não a da Constituição, foi decidido que os 3 milhões são, e devem continuar sendo, escravos. Juízes como esses são meramente os inspetores das ferramentas de um ladrão e assassino, empenhados em lhe dizer se elas estão em boas condições de funcionamento ou não, e julgam que aí termina sua responsabilidade. Havia nos autos um caso anterior, que eles, como juízes designados por Deus, não tinham o direito de omitir, e que, se tivesse sido decidido com justeza, tê-los-ia poupado desta humilhação. Era o caso do próprio assassino.

A lei nunca tornará livres os homens; são os homens que precisam tornar livre a lei. São amantes da lei e da ordem os que as observam quando o governo as viola.

Entre seres humanos, o juiz cujas palavras selam o destino de um homem pela eternidade afora não é somente aquele que pronuncia o veredicto da lei, mas também aquele, seja ele quem for, que por amor à verdade e isento de preconceitos ditados pelos costumes ou decretos dos homens, emite uma opinião verdadeira ou uma sentença a seu respeito. É ele que o sentencia. Quem quer que tenha discernido a verdade recebeu sua autoridade de uma fonte mais elevada do que a mais elevada justiça terrena, que só é capaz de discernir a lei. Ele se vê constituído em juiz do juiz. O estranho é que seja necessário afirmar verdades tão simples.

Estou cada vez mais convencido de que, com referência a qualquer questão pública, é mais importante saber o que o campo pensa dela do que o que pensa a cidade. A cidade não pensa muito. Em qualquer questão moral, mais me vale ouvir a opinião de Boxborog do que as de Boston e Nova York juntas. Quando é aquele vilarejo que fala, sinto que alguém falou de fato, como se ainda existisse uma humanidade, e que um ser razoável afirmou seus direitos — como se alguns homens isentos de preconceitos em meio às montanhas do interior tivessem enfim voltado sua atenção para o tema, e mediante umas poucas palavras sensatas redimissem a reputação de sua raça. Quando, em alguma obscura cidade do interior, os lavradores se reúnem num encontro especial de cidadãos para expressar sua opinião acerca de algum tema que aflige o país, isso, acho eu, é o verdadeiro Congresso, o mais respeitável que já se reuniu nos Estados Unidos.

É evidente que existem, pelo menos nos estados desta Comunidade, dois partidos, cada vez mais distintos — o partido da cidade e o partido do campo. Sei que o campo é bastante medíocre, mas acredito firmemente que haja uma ligeira diferença a seu favor. Porém, até agora ele dispõe de poucos órgãos, ou quase nenhum, através dos quais se possa expressar. Os editoriais que ele lê, assim como as notícias, vêm do litoral. É preciso que nós, habitantes do campo, cultivemos o autorrespeito. Não vamos encomendar à cidade grande nada mais que tecidos finos e mantimentos; se for para ler as opiniões da metrópole, pelo menos que tenhamos também nossas próprias opiniões.

Entre as medidas a serem adotadas, sugiro uma ofensiva séria e vigorosa contra a imprensa, tal como já foi empreendida, com bastante efeito, contra a Igreja. A Igreja progrediu muito em poucos anos; mas a imprensa é, quase sem exceção, corrupta. Acredito que, neste país, a imprensa exerce uma influência maior e mais perniciosa do que a exercida pela Igreja em seu pior período. Não somos um povo religioso, mas uma nação de políticos.