O homem que toma a liberdade de viver é superior a todas as leis, graças à sua relação com o legislador-mor. “O dever ativo”, diz o Vishnu Purana, “não é o que nos escraviza; o conhecimento é o que nos liberta: todos os demais deveres são bons apenas para nos aborrecer; todos os demais conhecimentos não passam da esperteza de um artista.”
É digna de nota a escassez de eventos ou crises em nossas histórias; como fomos pouco exigidos em nossa capacidade mental; como são poucas as experiências que tivemos. Eu gostaria de ter certeza de estar me desenvolvendo a passos rápidos e firmes, ainda que meu próprio desenvolvimento viesse a perturbar essa monótona serenidade — ainda que representasse uma árdua luta para vencer longas, escuras e opressivas noites ou temporadas inteiras de trevas. Seria bom se todas as nossas vidas fossem uma divina tragédia, em vez desta trivial comédia ou farsa. Dante, Bunyan e outros parecem ter exigido mais da sua mente do que nós: submeteram-se a um tipo de cultura que nossas escolas e colégios municipais não contemplam. Até mesmo Maomé, embora muitos possam vociferar ao ouvir seu nome, teve muito mais motivação para viver, e para morrer, do que a maioria costuma ter.
Quando, com raras pausas, um pensamento assedia uma pessoa, ela talvez nem ouça o barulho de um trem chegando, enquanto caminha pelos trilhos. Mas logo, por alguma lei inexorável, nossa vida se esvai, e voltamos a ouvir a locomotiva e seus vagões.
Brisa suave, que vagueias sem ser vista,
E vergas o cardo ao sabor das tempestades,
Viajante dos desfiladeiros borrascosos,
Por que abandonaste tão cedo meus ouvidos?
Enquanto quase todos os homens sentem uma atração que os arrasta para a sociedade, muito poucos são atraídos fortemente pela Natureza. Em sua relação com a Natureza os homens me parecem, em sua maioria, e não obstante suas habilidades, inferiores aos animais. Como é escassa entre nós a apreciação da beleza da paisagem! É preciso que nos digam que os gregos chamavam o mundo de Kósmos — Beleza, ou Ordem —, mas não vemos com clareza por que eles faziam isso, e reduzimos o assunto a um curioso fato filológico.
De minha parte, sinto que, no que tange à Natureza, vivo uma espécie de vida de fronteira, nos confins de um mundo ao qual faço apenas incursões ocasionais e transitórias, e meu patriotismo e minha lealdade a um Estado em cujos territórios pareço me refugiar são como os de um saqueador de fronteira. Para uma vida que chamo de natural eu seguiria de bom grado até mesmo um fogo-fátuo através de pântanos e lamaçais inimagináveis, mas nenhuma lua ou vaga-lume me mostrou o caminho até ela. A Natureza é uma entidade tão vasta e universal que nunca teremos visto direito sequer um de seus aspectos. O caminhante nos campos familiares que se estendem em torno da minha cidade natal encontra-se às vezes numa terra diversa daquela que é descrita nas escrituras de seus proprietários, como se estivesse num campo distante, além dos confins da Concord real, onde cessa a jurisdição do município e a própria ideia que a palavra Concord sugere deixa de fazer sentido.n Essas fazendas das quais eu mesmo fiz o levantamento topográfico, essas linhas divisórias que eu mesmo demarquei, tudo parece ficar indistinto como se estivesse sob uma névoa; mas não existe nenhuma química capaz de fixar essa paisagem; dissipa-se na superfície das lentes; e a pintura feita pelo artista mal emerge à superfície da tela. Não resta vestígio algum do mundo a que estamos habituados, e ele não será celebrado.
Fiz, uma tarde dessas, uma caminhada pela fazenda de Spaulding. Vi o sol do crepúsculo banhar o outro lado de um imponente bosque de pinheiros. Os raios dourados penetravam pelas fileiras de árvores como se adentrassem um salão nobre. Aquilo me impressionou como se uma antiga família, sumamente admirável e ilustre, tivesse ocupado aquela parte desconhecida para mim da terra chamada Concord — uma família de quem o sol era servidor, uma família que não ingressara na sociedade do vilarejo e que não recebia visitas. Vi o jardim deles, seu parque infantil, do outro lado do bosque, no prado de mirtilos de Spaulding. Os pinheiros, ao crescer, forneciam-lhes arestas para a construção. A casa deles não era muito visível, pois as árvores cresciam por todo lado. Não tenho certeza se ouvi sons de risos reprimidos. Eles pareciam repousar ao sol. Têm filhos e filhas. Estão muito bem. A estradinha da fazenda, que passa diretamente pela sala da casa deles, não os perturba nem um pouco — é como o fundo lodoso de um charco que às vezes é visto através dos céus refletidos na superfície. Nunca ouviram falar de Spaulding, e nem sabem que ele é seu vizinho — apesar de eu tê-lo ouvido assobiar enquanto atravessava a casa conduzindo sua junta. Nada se iguala à serenidade da vida deles. Seu brasão é um singelo líquen. Eu o vi pintado nos pinheiros e carvalhos. Seus sótãos ficam nos topos das árvores. Eles são alheios à política.
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