O mais humilde observador que vai às minas percebe e relata que a mineração é da categoria das loterias; o ouro assim obtido não é a mesma coisa que o salário da labuta honesta. Mas, na prática, esse observador esquece o que viu, pois viu apenas o fato, não o princípio, e se estabelece no comércio lá, isto é, compra um ingresso para o que geralmente acaba se revelando outra loteria, de aparência menos óbvia.
Depois de ler o relato de Howittc a respeito da mineração de ouro na Austrália, passei a noite toda com a mente povoada pelas imagens dos numerosos vales, com seus rios e córregos, todos retalhados por fossos fétidos, com entre três e trinta metros de profundidade e dois metros de largura, tão próximos uns dos outros quanto possível, e parcialmente cheios de água — o cenário para onde os homens acorrem furiosamente para tentar a sorte, indecisos quanto ao local onde devem começar a exploração, sabendo apenas que o ouro está embaixo de seu acampamento; às vezes cavando um buraco de quase cinquenta metros de profundidade antes de topar com o veio, ou passando ao largo dele por uma questão de trinta centímetros, convertidos eles próprios em demônios em sua sede de riquezas, sem levar em conta os direitos dos outros. Vales inteiros, num raio de cinquenta quilômetros, perfurados pelos poços dos mineradores, que morrem às centenas afogados neles; com as pernas dentro d’água, cobertos de lama, eles trabalham dia e noite, morrendo de doença e exposição às intempéries. Tendo lido isso, e em parte esquecido, fiquei pensando, casualmente, na minha própria vida insatisfatória, em que faço como os outros; e com aquela visão da mineração ainda diante dos meus olhos, perguntei-me por que não deveria, eu mesmo, estar garimpando algum ouro diariamente, ainda que fossem apenas as partículas mais finas — por que não mergulhar uma sonda em busca do outro dentro de mim, e explorar essa mina. Existe para você uma Ballarat, uma Bendigo,d e que importa que só tenha sobrado uma vala estreita? Seja como for, eu poderia seguir algum caminho, por mais solitário, estreito e tortuoso que fosse, no qual pudesse caminhar com amor e respeito. Onde quer que um homem se separe da multidão e siga seu próprio caminho com esse espírito, há de fato uma bifurcação na estrada, ainda que os viajantes comuns possam ver apenas uma falha na cerca. A trilha solitária terrenos adentro provar-se-á o caminho mais elevado dos dois possíveis.
Os homens acorrem à Califórnia e à Austrália como se o ouro verdadeiro se encontrasse nesses lugares; mas isso significa ir na direção exatamente contrária de onde ele está. Seguem prospectando cada vez mais longe do rumo verdadeiro, e quando se julgam mais bem-sucedidos é quando são mais infelizes. Não existe, por acaso, ouro em nosso solo nativo? Não desce das montanhas de ouro um rio que corre por nosso vale? Um rio que, ao longo de eras e eras geológicas, tem trazido as partículas cintilantes e formado as pepitas para nós? No entanto, por mais estranho que seja dizê-lo, se um explorador sair às escondidas prospectando esse verdadeiro ouro nos ermos inexplorados ao nosso redor, não há perigo algum de que outros sigam no seu encalço e tentem passá-lo para trás. Ele poderá reivindicar para si e escavar em paz o vale inteiro, tanto nas partes cultivadas como nas bravias, ao longo de toda a sua vida, pois ninguém jamais contestará seu direito. Não se importarão com suas bateias ou seus animais. Ele não estará confinado a um terreno de quatro metros quadrados, como em Ballarat, mas poderá escavar em qualquer lugar e lavar o mundo inteiro em sua bateia.
Howitt diz do homem que encontrou a grande pepita de treze quilos nas minas de Bendigo, na Austrália: “Ele logo começou a beber; arranjou um cavalo e passou a cavalgar por toda a região, geralmente a pleno galope; quando encontrava pessoas pela frente, perguntava-lhes se sabiam quem ele era, e em seguida informava-lhes educadamente que era ‘o desgraçado que tinha encontrado a pepita’. Por fim, ao cavalgar a toda velocidade, chocou-se com uma árvore e quase despedaçou o crânio”. Penso, no entanto, que ele não corria esse perigo, pois já tinha arrebentado o crânio contra a pepita. Howitt acrescenta: “É um homem irremediavelmente arruinado”. Mas ele é representativo de toda uma classe. São todos homens afoitos. Vejam só alguns nomes de lugares onde eles escavam: “Baixio do Asno”, “Vala da Cabeça de Carneiro”, “Banco de Areia do Assassino” etc. Não haverá uma sátira nesses nomes? Eles que carreguem sua riqueza ilícita para onde quiserem. Fico pensando se o lugar onde eles ainda moram não é, por acaso, o “Baixio do Asno”, se não for o “Banco de Areia do Assassino”.
O último uso dado à nossa energia tem sido a pilhagem de cemitérios no istmo de Darien, um empreendimento que parece estar apenas no começo; pois, de acordo com os últimos relatos, foi aprovado em segundo escrutínio pelo legislativo de Nova Granada um ato que regula esse tipo de mineração; e um correspondente do Tribune escreve: “Na estação seca, quando o clima permitir que o país seja devidamente prospectado, não há dúvida de que outras ricas guacas [isto é, jazigos] serão encontradas”. Para os imigrantes, ele diz: “Não venha antes de dezembro; tome a rota do istmo, de preferência à da Boca del Toro; não traga bagagem supérflua e não se estorve com uma barraca; mas um bom par de cobertores será necessário; uma picareta, uma pá e um machado de bom material serão praticamente tudo o que se precisa”, conselhos que poderiam ter sido tirados do Burker’s Guide. E ele conclui com esta frase em itálico e em maiúsculas: “Se você está se saindo bem na sua terra, permaneça nela”, o que pode muito bem ser interpretado como: “Se você está se dando bem ao saquear cemitérios na sua região, fique onde está”.
Mas por que ir até a Califórnia em busca de assunto? Ela é filha da Nova Inglaterra, nutrida em sua própria escola e sua própria igreja.
É digno de nota que, entre todos os sacerdotes, existam tão poucos mestres morais. Os profetas estão empenhados apenas em justificar a conduta dos homens. A maioria dos reverendos mais velhos, os illuminati de nossos tempos, aconselha-me, com um gracioso e nostálgico sorriso, entre um suspiro e um estremecimento, a não ser sensível demais quanto a essas coisas — a encará-las globalmente, isto é, a fazer delas um monte de ouro.e O mais elevado dos conselhos que ouvi sobre esses assuntos rastejava. O sentido geral era: “Não vale a pena empenhar-se para reformar o mundo nesse particular; não pergunte como passaram manteiga no seu pão se não quiser ficar nauseado”, e assim por diante. Mais vale a um homem passar fome de uma vez do que perder sua inocência no processo de obter seu pão. Se dentro do homem sofisticado não existe um homem puro e inocente, então ele não passa de um dos anjos do Diabo. À medida que envelhecemos, passamos a viver de modo mais rústico, relaxamos um pouco a nossa disciplina e, até certo ponto, deixamos de obedecer nossos melhores instintos. Mas devemos nos manter exigentes e obstinados até o limite da nossa sanidade, fazendo pouco caso do escárnio daqueles que são mais infelizes do que nós.
Em geral, nem mesmo em nossa ciência e em nossa filosofia há uma avaliação completa e verdadeira das coisas. O espírito de seita e o fanatismo meteram suas patas em meio às estrelas.
1 comment