A principal carência, em todos os estados em que estive, era um elevado e sincero propósito por parte de seus habitantes. Esse fato, por si só, exaure “os grandes recursos” da Natureza e acaba por exigi-la além de suas possibilidades; pois o homem naturalmente morre ao explorá-la demais. Quando queremos mais cultura do que batatas, e mais esclarecimento do que guloseimas, então os verdadeiros grandes recursos de um mundo são explorados e extraídos, e o resultado, ou produção essencial, não são escravos, nem operários, mas homens — aqueles frutos raros chamados heróis, santos, poetas, filósofos e redentores.

Em suma, assim como um monte de neve se forma quando há uma calmaria no vento, podemos dizer que, onde há uma calmaria da verdade, floresce uma instituição. Mas a verdade sopra diretamente sobre ela e acaba por derrubá-la.

O que se costuma chamar de política é, comparativamente, algo tão superficial e inumano que nunca reconheci inteiramente que ela tenha algo a ver comigo. Os jornais, pelo que percebo, dedicam algumas de suas colunas especialmente à política ou ao governo, sem cobrar por isso; e essa circunstância, alguém pode argumentar, é o que salva a atitude; mas, como amo a literatura, e também a verdade, de qualquer forma nunca leio essas colunas. Não quero embotar desse modo meu senso do que é direito. Não posso ser acusado de ter lido sequer uma mensagem do presidente. Estranha era do mundo esta nossa, em que impérios, reinos e repúblicas vêm bater na porta do homem particular e despejar sobre ele suas queixas! Não há um jornal que eu abra sem que encontre nele um ou outro governo ignóbil, sob forte pressão e à beira do colapso, apelando a mim, o leitor, para que o apoie. É mais importuno que um mendigo italiano. E se eu me der ao trabalho de examinar as credenciais de tal governo, escritas talvez por algum benevolente escrivão comercial, ou pelo capitão do navio que as trouxe, pois o governo em questão não é capaz de falar uma palavra de inglês, provavelmente lerei que a erupção de algum Vesúvio, ou o transbordamento de algum Pó, verdadeiros ou forjados, são a causa da atual situação. Num caso assim, não hesito em sugerir um trabalho, ou o asilo de pobres; ou então que o palácio do tal governo fique em silêncio, como faço na minha casa. O pobre presidente, pensando em preservar sua popularidade e cumprir suas obrigações, fica completamente desconcertado. Os jornais são a força dirigente. Qualquer outro governo fica reduzido a um punhado de fuzileiros no Fort Independence.k Se um homem deixa de ler o Daily Times, o governo se ajoelha a seus pés, pois essa é a única traição hoje em dia.

Essas coisas que hoje mais ocupam a atenção dos homens, a política e a rotina diária, são, admito, funções vitais da sociedade humana, mas deveriam ser desempenhadas de modo inconsciente, como as funções análogas do corpo físico. São infra-humanas, uma espécie de atividade vegetativa. Vez por outra me dou conta de uma semiconsciência dessas funções transcorrendo ao meu redor, como um homem pode se tornar consciente dos processos de digestão num estado doentio, e ter assim uma dispepsia, como é chamada. É como se um pensador se submetesse a ser limado pela grande moela da criação. A política é, por assim dizer, a moela da sociedade, cheia de grânulos e gravelas, e os dois partidos políticos são suas duas metades opostas — às vezes subdivididas em quartas partes — que se trituram mutuamente. Não apenas os indivíduos, mas também os estados têm assim uma dispepsia crônica, que se expressa por um tipo de eloquência que vocês podem imaginar. Assim, nossa vida não é um total esquecimento, mas também, infelizmente, uma lembrança daquilo de que nunca deveríamos ter consciência, ao menos em nossas horas de vigília. Por que, em vez de nos encontrarmos como dispépticos que ficam narrando uns aos outros seus pesadelos, não poderíamos às vezes nos encontrar como eupépticos e celebrar juntos a sempre gloriosa manhã? Por certo não estou fazendo uma exigência descabida.

 

 

 

 

a- Referência jocosa ao excêntrico empreendedor norte-americano “Lord” Timothy Dexter (1748-1806), que fez fortuna realizando negócios pouco ortodoxos, sobretudo durante a Guerra de Independência.

b- No original, a expressão muck-rake, literalmente “rastelo para revirar estrume ou lixo”, tem também o sentido figurado de “exposição de escândalos, sensacionalismo”.

c- Alfred William Howitt (1830-1908): antropólogo e naturalista australiano.

d- Ballarat e Bendigo são cidades do estado australiano de Victoria que foram grandes polos de mineração de ouro.

e- Há no original um jogo de palavras intraduzível com o termo lump, que como verbo pode ter o sentido de “considerar globalmente” e como substantivo significa “monte, massa informe, inchaço, protuberância”.

f- Dr. Kane: o explorador e médico da marinha norte-americana Elisha Kent Kane (1820-57). Participou de duas expedições ao Ártico para resgatar Sir John Franklin (1786-1847), oficial da marinha britânica e explorador que desapareceu em sua última expedição, quando tentava mapear e navegar por um trecho da Passagem Noroeste, no Ártico canadense.

g- Há no original um trocadilho intraduzível. Thoreau fala da aprovação dos D.D.s, Doctors of Divinity (Doutores em Divindade, ou Doutores em Teologia), às quais preferiria a dos chickadee-dees (chapins americanos), formando assim uma rima D.D.s/ dee-deesi.

h- Lajos Kossuth (1802-94): político patriota húngaro. Líder da resistência de seu país contra a dominação austríaca e russa, chefiou a insurreição de 1848 e foi nomeado presidente do comitê de defesa da República da Hungria, derrubada meses depois pelos russos. Viveu desde então no exílio. Passou-se a dar o nome de “chapéu Kossuth” a um tipo de chapéu de feltro ou tecido de abas largas voltadas para baixo, usado no século xix em uniformes militares da Europa, da América e da Oceania.

i- Lodin é um personagem cujo espírito é consultado, no ciclo de poemas de Ossian, supostamente traduzidos do gaélico antigo pelo poeta escocês James Macpherson (1736-96). A maioria dos estudiosos, porém, questiona a autenticidade dos poemas e a identidade de seu suposto criador, um mítico guerreiro irlandês chamado Ossian.

j- No original, Jonathan, nome bíblico tão comum entre os colonizadores da Nova Inglaterra que se tornou sinônimo de habitante da região.

k- Fort Independence: fortaleza que defendia a enseada de Boston.

Copyright da tradução © 2012
by Penguin — Companhia das Letras

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Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua
Portuguesa de 1990, que entrou em vigor no Brasil em 2009.

título original

Civil Disobedience

capa e projeto gráfico penguin-companhia

Raul Loureiro, Claudia Warrak

preparação

Fernanda Windholz

revisão

Huendel Viana

Márcia Moura

isbn 978-85-8086-365-9

Todos os direitos desta edição reservados à
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