Era uma visão mais detida de minha cidade natal. Eu estava bem no fundo dela. Nunca antes enxergara suas instituições. Aquela era uma de suas instituições peculiares, pois a cidade era sede do condado.25 Comecei a compreender o que interessava a seus habitantes.
Pela manhã, nosso desjejum foi enfiado cela adentro por um buraco na porta, em pequenas vasilhas retangulares de lata, feitas sob medida para a fresta, que continham meio litro de chocolate, pão de centeio e uma colher de ferro. Quando pediram as vasilhas de volta, fui ingênuo o suficiente para devolver todo o pão que não havia comido, mas meu companheiro o apanhou e disse que eu deveria guardá-lo para o almoço ou o jantar. Logo depois, deixaram-no sair para trabalhar num campo de feno nas vizinhanças, para onde ele ia todos os dias, e não voltava antes do meio-dia. Então ele se despediu de mim, dizendo duvidar que ainda voltaria a me ver.
Quando saí da prisão — pois alguém interveio e pagou o imposto —, não percebi grandes mudanças nas coisas cotidianas, tais como as que observa alguém que entra ali jovem e sai já velho, grisalho e cambaleante. No entanto, apresentou-se diante dos meus olhos uma mudança no cenário — a cidade, o estado e o país —, uma mudança maior do que a que poderia ter produzido aquela passagem de tempo tão exígua. Vi com nitidez ainda maior o estado em que vivia. Vi até que ponto poderia confiar, como concidadãos e amigos, nas pessoas entre as quais eu vivia. Constatei que sua amizade era só para os bons momentos; que eles não se dedicavam muito a praticar o bem; que eram uma raça tão distinta da minha, por seus preconceitos e superstições, quanto são os chineses e os malaios; que, em seus sacrifícios pela humanidade, não arriscavam coisa alguma, nem mesmo suas propriedades; que, afinal de contas, eles não eram nada nobres, pois tratavam o ladrão da mesma forma que este os tratara, e esperavam salvar suas almas ao cumprir certos ritos exteriores e proferir algumas orações, e ao trilhar de quando em quando um determinado caminho reto, embora inútil. Este talvez seja um julgamento demasiado severo de meus concidadãos, pois acredito que muitos deles não estejam cientes de que têm uma instituição como o cárcere em seu povoado.
Antigamente, quando um devedor pobre saía da prisão, era costume em nossa aldeia que seus conhecidos o cumprimentassem olhando através dos dedos, cruzados de maneira a representar as grades de uma cela, e dissessem “Como vai?”. Meus concidadãos não me saudavam dessa maneira, mas olhavam primeiro para mim, depois uns para os outros, como se eu houvesse retornado de uma longa viagem. Fui preso quando ia ao sapateiro buscar um sapato que estava no conserto. Quando fui solto, na manhã seguinte, resolvi completar minha pequena tarefa e, tendo calçado meu sapato consertado, fui me juntar a um grupo empenhado em colher mirtilos e que esperava impaciente que eu lhes servisse de guia. Em meia hora — pois o cavalo foi arreado prontamente — eu estava no centro de um campo de mirtilos, em uma das colinas mais altas, a quatro quilômetros de distância, e dali o Estado não podia ser visto em parte alguma.
Essa é toda a história das “Minhas prisões”.26
Nunca deixei de pagar o imposto das estradas, porque tenho tanto desejo de ser um bom concidadão quanto de ser um mau súdito; e no que diz respeito à sustentação das escolas, estou fazendo minha parte pela educação de meus compatriotas. Não é por nenhum item particular da relação de impostos que me recuso a pagá-los. Eu simplesmente desejo recusar a sujeição ao Estado, afastar-me dele e ficar fora de seu alcance. Não me interessaria rastrear o percurso do meu dólar, mesmo que pudesse, para ver se ele compra um homem ou um mosquete para matar um — o dólar é inocente —, mas me preocupo em rastrear os efeitos de minha sujeição. Na verdade, declaro silenciosamente guerra ao Estado, à minha maneira, embora eu ainda siga fazendo uso dele e obtendo as vantagens que ele pode me dar, como é comum nesses casos.
Se outros, por solidariedade ao Estado, pagam o imposto que é exigido de mim, não fazem mais do que já fizeram em seus próprios casos, ou melhor, encorajam a injustiça num grau maior do que o requerido pelo Estado. Se eles pagam o imposto por conta de um interesse equivocado pelo indivíduo tributado, para salvar seu patrimônio ou evitar que ele vá para a cadeia, isso ocorre porque eles não avaliaram devidamente até que ponto deixam que seus sentimentos particulares interfiram no bem público.
Esta é, portanto, minha posição no momento. Mas não se pode ficar demasiado em guarda num caso assim, sob pena de que sua ação seja rotulada de teimosia, ou de excessiva preocupação com as opiniões alheias. Que cada um trate de fazer apenas o que lhe cabe, e no tempo certo.
Penso que às vezes, afinal, essas pessoas têm boas intenções, só que são ignorantes. Agiriam melhor se soubessem como fazê-lo: por que dar a meus semelhantes o trabalho de me tratar de um modo que foge à sua inclinação? Mas, pensando melhor, isso não é razão para que eu devesse fazer como eles fazem, ou permitir que outros sofram um tormento muito maior de outra espécie. E digo ainda algumas vezes a mim mesmo: quando milhões de homens, sem ardor, sem malevolência, sem qualquer tipo de ressentimento pessoal, exigem de você apenas alguns xelins, sem a possibilidade — pois assim é a constituição deles — de retirar ou alterar sua demanda atual, e você, por sua vez, não tem a possibilidade de apelar a outros milhões, por que se expor a essa esmagadora força bruta? Você não resiste com a mesma obstinação ao frio e à fome, aos ventos e marés, mas se submete pacificamente a mil injunções semelhantes. Você não mete a cabeça na fogueira. Mas, na mesma medida em que não considero esta força inteiramente bruta, mas sim parcialmente humana, e mantenho relações com esses milhões de homens e com outros tantos milhões, e não simplesmente com coisas brutas ou inanimadas, vejo que lhes é possível apelar, primeiro e de imediato, ao seu Criador e, em segundo lugar, a eles mesmos. Mas, se eu coloco deliberadamente minha cabeça no fogo, não há apelo possível ao fogo ou ao Criador do fogo, e só posso culpar a mim mesmo. Se eu pudesse me convencer de que tenho algum direito a estar satisfeito com os homens tais como são, e a tratá-los de modo correspondente, e não de acordo com as minhas exigências e expectativas de como eles e eu, em alguns aspectos, deveríamos ser, então, como um bom muçulmano27 e fatalista, eu teria de me empenhar para ficar satisfeito com as coisas tais como elas são, e dizer que assim é a vontade de Deus. E, acima de tudo, há uma diferença entre resistir a essa força e a outra puramente bruta ou natural, que é a que posso resistir com alguma eficácia, mas não posso ter a pretensão de, a exemplo de Orfeu,28 mudar a natureza das rochas, árvores e animais.
Não desejo brigar com nenhum homem ou nação.
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