Fala-lhe também acerca dos incontinentes e dos usurários. Movem-se depois para o lugar de onde se desce para o precipício.
In su l’estremità d’un’alta ripa
che facevan gran pietre rotte in cerchio,
venimmo sopra più crudele stipa;
À BORDA de alta riba assim chegamos,
Que em círc’lo rotas penhas conformavam:
De lá mais crus tormentos divisamos.
e quivi, per l’orribile soperchio
del puzzo che ’l profondo abisso gitta,
ci raccostammo, in dietro, ad un coperchio
Do fundo abismo exalações brotavam,
Tão acres, que a fugir nos obrigaram
Para trás das muralhas elevadas
d’un grand’avello, ov’io vidi una scritta
che dicea: ’Anastasio papa guardo,
lo qual trasse Fotin de la via dritta’.
De um sepulcro, em que os olhos decifraram:
“Sou do papa Anastácio a sepultura,
Que de Fotino os erros transviaram”.[1]
“Lo nostro scender conviene esser tardo,
sì che s’ausi un poco in prima il senso
al tristo fiato; e poi no i fia riguardo”.
“Lentamente desçamos desta altura:
Assim, o olfato ao mau odor afeito,
Não hemos de sentir-lhe a ação impura”.
Così ’l maestro; e io “Alcun compenso”,
dissi lui, “trova che ’l tempo non passi
perduto”. Ed elli: “Vedi ch’a ciò penso”.
A Virgílio tornei: “Proceda a jeito,
Ó Mestre, por que o tempo consumido
Na demora, não corra sem proveito”. —
“Figliuol mio, dentro da cotesti sassi”,
cominciò poi a dir, “son tre cerchietti
di grado in grado, come que’ che lassi.
— “Já stava o meio, ó filho, apercebido.
Nestas penhas três círc’los há menores,
Por degraus, como os outros, que hás descido.
Tutti son pien di spirti maladetti;
ma perché poi ti basti pur la vista,
intendi come e perché son costretti.
“Plenos stão de malditos pecadores.
Por que, em vendo, os conheças logo, atende:
Direi seus crimes e da pena as dores.
D'ogne malizia, ch'odio in cielo acquista,
ingiuria è 'l fine, ed ogne fin cotale
o con forza o con frode altrui contrista.
“Todo mal, que no céu cólera acende,
Injustiça há por fim, que o dano alheio,
Usando fraude ou violência, tende.
Ma perché frode è de l’uom proprio male,
più spiace a Dio; e però stan di sotto
li frodolenti, e più dolor li assale.
“Próprio do homem por ser da fraude o meio
Mais descontenta a Deus; mores tormentos
Em lugar sofre de aflições mais cheio.
Di vïolenti il primo cerchio è tutto;
ma perché si fa forza a tre persone,
in tre gironi è distinto e costrutto.
“Dos círc’los o primeiro é dos violentos;
Mas, força a três pessoas se fazendo,
Foi construído em três repartimentos.
A Dio, a sé, al prossimo si pòne
far forza, dico in loro e in lor cose,
come udirai con aperta ragione.
“A Deus, a si, ao próximo ofendendo,
Nas pessoas, nos bens a força fere,
Como hás de convencer-te, me entendendo.
Morte per forza e ferute dogliose
nel prossimo si danno, e nel suo avere
ruine, incendi e tollette dannose;
“Morte ou dor força ao próximo confere.
Com ruína, com fogo os bens lhe invade.
Quando pela extorsão não se apodere.
onde omicide e ciascun che mal fiere,
guastatori e predon, tutti tormenta
lo giron primo per diverse schiere.
“Homicidas, os que usam feridade,
Ladrões, desvastadores, torturados
Stão no primeiro, em turmas, sem piedade.
Puote omo avere in sé man vïolenta
e ne’ suoi beni; e però nel secondo
giron convien che sanza pro si penta
“Homens há contra si cruéis, irados
Ou contra os próprios bens: pois no segundo
Recinto jazem sempre amargurados,
qualunque priva sé del vostro mondo,
biscazza e fonde la sua facultade,
e piange là dov’esser de’ giocondo.
“Quem se privara do terreno mundo,
Os que seus cabedais malbarataram,
Quem chora onde pudera estar jucundo.
Puossi far forza ne la deïtade,
col cor negando e bestemmiando quella,
e spregiando natura e sua bontade;
“Contra Deus violências homens preparam,
Se o negam, se o blasfemam, desdenhando
Natura e os dons, que nela se deparam.
e però lo minor giron suggella
del segno suo e Soddoma e Caorsa
e chi, spregiando Dio col cor, favella.
“No recinto menor sinal nefando
Caors marca igualmente com Sodoma,
E os que pecaram contra Deus falando.
La frode, ond'ogne coscïenza è morsa,
può l'omo usare in colui che 'n lui fida
e in quel che fidanza non imborsa.
“A fraude em que o remorso tanto assoma,
Ou trai a confiança ou premedita
Danos a quem desprevenido toma.
Questo modo di retro par ch’incida
pur lo vinco d’amor che fa natura;
onde nel cerchio secondo s’annida
“A fraude desta espécie se exercita
Contra os laços de amor, que faz natura:
Portanto no segundo círc’lo habita
ipocresia, lusinghe e chi affattura,
falsità, ladroneccio e simonia,
ruffian, baratti e simile lordura.
“Adulação com simonia impura,
Hipócritas, falsários, feiticeiros,
Rufiães e outros dessa laia escura.
Per l’altro modo quell’amor s’oblia
che fa natura, e quel ch’è poi aggiunto,
di che la fede spezïal si cria;
“Transtorna a outra afetos verdadeiros,
Que inspira a natureza e os que origina
A mútua fé nos ânimos inteiros.
onde nel cerchio minore, ov’è ’l punto
de l’universo in su che Dite siede,
qualunque trade in etterno è consunto”.
“E, pois, no círc’lo extremo, que domina
Da terra o centro e onde Dite pesa,
Eterna pena aos tredos se destina”. —
E io: “Maestro, assai chiara procede
la tua ragione, e assai ben distingue
questo baràtro e ’l popol ch’e’ possiede.
“Tem, Mestre” — eu disse — “o cunho da clareza
O que expões, distinguindo exatamente
A geena do inferno e a gente presa.
Ma dimmi: quei de la palude pingue,
che mena il vento, e che batte la pioggia,
e che s’incontran con sì aspre lingue,
“Diz-me: os que jazem na lagoa ingente,
Os que flagela o vento ou chuva imiga,
Os que se encontram em frêmito insolente,
perché non dentro da la città roggia
sono ei puniti, se Dio li ha in ira?
e se non li ha, perché sono a tal foggia?”.
“Por que Deus lá em Dite os não castiga,
Se a ira a Deus seus feitos acenderam?
Se não, por que a aflição tanto os fustiga?” —
Ed elli a me “Perché tanto delira”,
disse, “lo ’ngegno tuo da quel che sòle?
o ver la mente dove altrove mira?
“Deliras? Da tua mente se varreram
Princípios sãos” — tornou — “a que és afeito?
A que rumo as idéias se volveram?
Non ti rimembra di quelle parole
con le quai la tua Etica pertratta
le tre disposizion che ’l ciel non vole,
“Olvidas, porventura, esse preceito,
De que houveste na Ética a ciência,[2]
Das três disposições, que em mau conceito
incontenenza, malizia e la matta
bestialitade? e come incontenenza
men Dio offende e men biasimo accatta?
“Estão do céu, — malícia, incontinência
E furor bestial? — como a segunda
Importa a Deus menor irreverência?
Se tu riguardi ben questa sentenza,
e rechiti a la mente chi son quelli
che sù di fuor sostegnon penitenza,
“Se atentas em verdade tão profunda,
Se lembras quais são esses que padecem
Acima da mansão, que o fogo inunda,
tu vedrai ben perché da questi felli
sien dipartiti, e perché men crucciata
la divina vendetta li martelli”.
“Verás então ser justo não sofressem
Daqueles maus a par, menos pesada
Punição culpas suas merecessem”. —
“O sol che sani ogne vista turbata,
tu mi contenti sì quando tu solvi,
che, non men che saver, dubbiar m'aggrata.
“Sol, que me aclara a vista perturbada,
Às lições tuas dou tamanho apreço,
Que o duvidar, como o saber, me agrada.
Ancora in dietro un poco ti rivolvi”,
diss’io, “là dove di’ ch’usura offende
la divina bontade, e ’l groppo solvi”.
“Tornando ao que disseste, expliques peço,
Por que motivo, Mestre, usura ofende
A divina bondade em tanto excesso”. —
“Filosofia”, mi disse, “a chi la ’ntende,
nota, non pure in una sola parte,
come natura lo suo corso prende
“Filosofia” — disse — “quem a atende
Tem demonstrado, quase em toda parte,
Que a natureza a sua origem prende
dal divino ’ntelletto e da sua arte;
e se tu ben la tua Fisica note,
tu troverai, non dopo molte carte,
“Do divino intelecto e da sua arte.
Da Física em princípio hás conhecido
Preceito, que hei mister recomendar-te:
che l’arte vostra quella, quanto pote,
segue, come ’l maestro fa ’l discente;
sì che vostr’arte a Dio quasi è nepote.
Que é da vossa arte ir sempre que há podido
Após natura — à mestra obediente; —
Neta de Deus chamá-la é permitido.
Da queste due, se tu ti rechi a mente
lo Genesì dal principio, convene
prender sua vita e avanzar la gente;
“Da natureza e da arte, se tua mente
O Gênese em começo lembra, colhe
O seu sustento e haver a humana gente.
e perché l’usuriere altra via tene,
per sé natura e per la sua seguace
dispregia, poi ch’in altro pon la spene.
“Usura bem diversa estrada escolhe
Natura e a aluna sua menospreza,
Esperança e cuidado e mal recolhe.
Ma seguimi oramai che ’l gir mi piace;
ché i Pesci guizzan su per l’orizzonta,
e ’l Carro tutto sovra ’l Coro giace,
Mas andemos; prossiga a nossa empresa.
Vão no horizonte os Peixes assomando;
Voltando sobre o coro o culto pesa
e ’l balzo via là oltra si dismonta”.
E, além, a rocha está passagem dando”. —
Canto XII
Canto XII, ove tratta del discendimento nel settimo cerchio d’inferno, e de le pene di quelli che fecero forza in persona de’ tiranni, e qui tratta di Minotauro e del fiume del sangue, e come per uno centauro furono scorti e guidati sicuri oltre il fiume.
O Minotauro está de guarda ao sétimo círculo. Vencida a ira dele, chegam os Poetas ao vale, em cujo primeiro compartimento vêem um rio de sangue fervendo, no qual são punidos os que praticaram violências contra a vida ou as coisas do próximo. Uma esquadra de Centauros anda em volta do paul vigiando os condenados, frechando-os se tentam sair do rio de sangue. Alguns desses Centauros pretendem deter os Poetas, porém Virgílio os domina, conseguindo que um deles os escolte e transporte na garupa a Dante. Na passagem o Centauro, que é Nesso, fala a respeito dos danados que sofrem a pena no rio de sangue.
Era lo loco ov’a scender la riva
venimmo, alpestro e, per quel che v’er’anco,
tal, ch’ogne vista ne sarebbe schiva.
DA descida era o passo tão fragoso
E tal por quem lá estava à guarda e atento,
Que se fazia à vista pavoroso.
Qual è quella ruina che nel fianco
di qua da Trento l’Adice percosse,
o per tremoto o per sostegno manco,
Como a ruína, que daquém de Trento,
O Ádige feriu, por terremoto
Ou por faltar de chofre o fundamento;
che da cima del monte, onde si mosse,
al piano è sì la roccia discoscesa,
ch’alcuna via darebbe a chi sù fosse:
Do viso ao val do monte, que foi roto,
Tão derrocada vê-se a penedia,
Que a descê-la o caminho é quase imoto.
cotal di quel burrato era la scesa;
e ’n su la punta de la rotta lacca
l’infamïa di Creti era distesa
A ribanceira assim nos parecia.
E à borda do penedo fracassado
De Creta o monstro infame se estendia,
che fu concetta ne la falsa vacca;
e quando vide noi, sé stesso morse,
sì come quei cui l’ira dentro fiacca.
Da falsa vaca torpemente nado.[1]
Apenas viu-nos, se mordeu fremente,
Como quem pela raiva é devorado.
Lo savio mio inver’ lui gridò: “Forse
tu credi che qui sia ’l duca d’Atene,
che sù nel mondo la morte ti porse?
“Cuidas” — bradou-lhe o sábio incontinente —
“Ser de Atenas o príncipe, o que à morte
Lá sobre a terra te arrojou valente?
Pàrtiti, bestia, ché questi non vene
ammaestrato da la tua sorella,
ma vassi per veder le vostre pene”.
“Arreda, bruto! Que este é de outra sorte;
Da tua irmã não recebera ensino;
De vós outros vem ver a pena forte”.
Qual è quel toro che si slaccia in quella
c’ ha ricevuto già ’l colpo mortale,
che gir non sa, ma qua e là saltella,
Qual touro desprendido, quando o tino
Mortal golpe lhe rouba, que não pode
Correr, mas salta a vacilar mofino:
vid’io lo Minotauro far cotale;
e quello accorto gridò: “Corri al varco;
mentre ch’e’ ’nfuria, è buon che tu ti cale”.
Assim o Minotauro. O Mestre acode
Dizendo-me: “Demanda presto a entrada
E desce, enquanto em vascas se sacode”. —
Così prendemmo via giù per lo scarco
di quelle pietre, che spesso moviensi
sotto i miei piedi per lo novo carco.
A quebrada descíamos formada
De pedras soltas; cada qual, movida,
Cedia, em sendo por meus pés calcada.
Io gia pensando; e quei disse: “Tu pensi
forse a questa ruina, ch’è guardata
da quell’ira bestial ch’i’ ora spensi.
E eu cismava. Ele disse: — “Tens sorvida
A mente na ruína, que do horrendo
Monstro a ira defende já vencida.
Or vo’ che sappi che l’altra fïata
ch’i’ discesi qua giù nel basso inferno,
questa roccia non era ancor cascata.
“Deves saber que, de outra vez descendo
Até o extremo lá do baixo inferno,
Esta rocha não vi, como a estás vendo,
Ma certo poco pria, se ben discerno,
che venisse colui che la gran preda
levò a Dite del cerchio superno,
“Mas, pouco antes de vir se bem discerno,
Aquele que há tomado a grande presa,
A Dite, lá no círculo superno,
da tutte parti l’alta valle feda
tremò sì, ch’i’ pensai che l’universo
sentisse amor, per lo qual è chi creda
“Deste val tremeu tanto a profundeza,
Que sentisse pensei todo o universo
O amor, com que alguém diz ter certeza
più volte il mondo in caòsso converso;
e in quel punto questa vecchia roccia,
qui e altrove, tal fece riverso.
“De que ao caos muita vez será converso.
Foi aqui, noutras partes, nesse instante,
Roto o velho penhasco em treva imerso.
Ma ficca li occhi a valle, ché s’approccia
la riviera del sangue in la qual bolle
qual che per vïolenza in altrui noccia”.
“Mas olha o vale: o rio é não distante
De sangue, onde verás fervendo aquele,
Que violência exerceu no semelhante.
Oh cieca cupidigia e ira folle,
che sì ci sproni ne la vita corta,
e ne l’etterna poi sì mal c’immolle!
“Ó ira louca, ó ambição, que impele
Na curta vida nossa, ao inferno arrasta
E para sempre nos submerge nele!” —
Io vidi un’ampia fossa in arco torta,
come quella che tutto ’l piano abbraccia,
secondo ch’avea detto la mia scorta;
Eis uma cava divisei mui vasta,
Que abrangia, arqueada, o plano inteiro,
Como dissera quem do mal me afasta.
e tra ’l piè de la ripa ed essa, in traccia
corrien centauri, armati di saette,
come solien nel mondo andare a caccia.
No espaço, a que o penhasco é sobranceiro,
Centauros correm, setas agitando,
Como soíam no viver primeiro.
Veggendoci calar, ciascun ristette,
e de la schiera tre si dipartiro
con archi e asticciuole prima elette;
Descer nos vendo, pára o ardido bando.
Três de entre eles então nos demandaram,
Os arcos e arremessos preparando.
e l’un gridò da lungi: “A qual martiro
venite voi che scendete la costa?
Ditel costinci; se non, l’arco tiro”.
Os brados de um de longe nos soaram:
— “Vós, que desceis, dizei a pena vossa;
De lá falai, ou tiros se disparam!” —
Lo mio maestro disse: “La risposta
farem noi a Chirón costà di presso:
mal fu la voglia tua sempre sì tosta”.
Virgílio respondeu: — “Resposta nossa
Terá Quiron de perto, sem demora.[2]
Sempre te dana a pressa que te apossa”. —
Poi mi tentò, e disse: “Quelli è Nesso,
che morì per la bella Deianira,
e fé di sé la vendetta elli stesso.
Tocou-me e disse: — “Quem nos fala agora
É Nesso, o que morreu por Dejanira;
Mas se vingou de quem fatal lhe fora.
E quel di mezzo, ch’al petto si mira,
è il gran Chirón, il qual nodrì Achille;
quell’altro è Folo, che fu sì pien d’ira.
“Esse do meio, que o seu peito mira,
Aio de Aquiles, é Quiron famoso;
Esse outro é Folo, sempre aceso em ira”. —
Dintorno al fosso vanno a mille a mille,
saettando qual anima si svelle
del sangue più che sua colpa sortille”.
Aos mil em volta ao rio sanguinoso
As almas seteavam, que excediam,
Mais do que é dado, o líquido horroroso.
Noi ci appressammo a quelle fiere isnelle:
Chirón prese uno strale, e con la cocca
fece la barba in dietro a le mascelle.
Àqueles monstros que ágeis se moviam,
Chegamo-nos. Quiron com seta ajeita
Os cabelos, que os lábios lhe encobriam.
Quando s’ebbe scoperta la gran bocca,
disse a’ compagni: “Siete voi accorti
che quel di retro move ciò ch’el tocca?
Quando desta arte a larga boca afeita,
Disse à companha: — “Haveis já reparado
Que move aquele tudo, em que os pés deita?
Così non soglion far li piè d’i morti”.
E ’l mio buon duca, che già li er’al petto,
dove le due nature son consorti,
“Nunca assim pés de morto hão caminhado”.
O Guia meu, que junto já lhe estava
Do peito, onde era um ser noutro enleado,
rispuose: “Ben è vivo, e sì soletto
mostrar li mi convien la valle buia;
necessità ’l ci ’nduce, e non diletto.
— “Vivo está, vem comigo” — lhe tornava —
“A visitar o val maldito, escuro
Para cumprir dever, que lho ordenava.
Tal si partì da cantare alleluia
che mi commise quest’officio novo:
non è ladron, né io anima fuia.
“Deixando de cantar o hosana puro
Alguém me há cometido o cargo novo.
Não é ladrão, nem eu esp’rito impuro:
Ma per quella virtù per cu’ io movo
li passi miei per sì selvaggia strada,
danne un de’ tuoi, a cui noi siamo a provo,
Em nome do poder, por quem eu movo
Os passos meus em tão medonha estrada,
Envia algum, que escolhas no teu povo,
e che ne mostri là dove si guada,
e che porti costui in su la groppa,
ché non è spirto che per l’aere vada”.
“Por nos mostrar a parte acomodada
Ao vau, e no seu dorso haver transporte
Quem não é sombra ao vôo aparelhada”.
Chirón si volse in su la destra poppa,
e disse a Nesso: “Torna, e sì li guida,
e fa cansar s’altra schiera v’intoppa”.
Quiron volveu-se à destra e a Nesso forte
— “Torna atrás” — disse — “e serve-lhes de guia:
Que outro bando o caminho lhes não corte!” —
Or ci movemmo con la scorta fida
lungo la proda del bollor vermiglio,
dove i bolliti facieno alte strida.
Já partimos na fida companhia,
As ondas costeando rubras, quentes,
Donde agudo estridor ao ar subia.
Io vidi gente sotto infino al ciglio;
e ’l gran centauro disse: “E’ son tiranni
che dier nel sangue e ne l’aver di piglio.
Té os cílios no sangue os padecentes
Eu vi. Disse o Centauro: — “São tiranos
Truculentos e em roubo preminentes.
Quivi si piangon li spietati danni;
quivi è Alessandro, e Dïonisio fero
che fé Cicilia aver dolorosi anni.
“Chora-se aqui por feitos desumanos.
Alexandre aqui está, Dionísio antigo[3]
Que gemer fez Sicília tantos anos.
E quella fronte c’ ha ’l pel così nero,
è Azzolino; e quell’altro ch’è biondo,
è Opizzo da Esti, il qual per vero
“De negra coma, aqui sofre o castigo
Azzolino; e o que está, louro, ao seu lado[4]
Obizzio d’Este, ao qual (verdade eu digo)[5]
fu spento dal figliastro sù nel mondo”.
Allor mi volsi al poeta, e quei disse:
“Questi ti sia or primo, e io secondo”.
“Roubara a vida o pérfido enteado”. —
E o Vate, a quem voltei-me, assim dizia:
— “O segundo lugar me é reservado”. —
Poco più oltre il centauro s’affisse
sovr’una gente che ’nfino a la gola
parea che di quel bulicame uscisse.
Pouco além parou Nesso: olhar queria
Uma turba, que, estando submergida,
Toda a cabeça para fora erguia,
Mostrocci un’ombra da l’un canto sola,
dicendo: “Colui fesse in grembo a Dio
lo cor che ’n su Tamisi ancor si cola”.
Disse, indicando uma alma retraída:
“Perante Deus um coração ferira,
Que inda Londres venera estremecida”. —[6]
Poi vidi gente che di fuor del rio
tenean la testa e ancor tutto ’l casso;
e di costoro assai riconobb’io.
A cabeça vi de outros, que subira
Do rio à superfície e o inteiro busto,
Suas feições no mundo eu distinguira:
Così a più a più si facea basso
quel sangue, sì che cocea pur li piedi;
e quindi fu del fosso il nostro passo.
Ia baixando o sangue até que a custo
Os pés cobria a quem passar quisesse:
O fosso ali vencemos já sem custo.
“Sì come tu da questa parte vedi
lo bulicame che sempre si scema”,
disse ’l centauro, “voglio che tu credi
“Se desta parte o borbulhão parece
Do rio escassear, eu te asseguro”
— Disse Nesso — “que mais engrossa e desce
che da quest’altra a più a più giù prema
lo fondo suo, infin ch’el si raggiunge
ove la tirannia convien che gema.
“Na parte oposta até juntar-se ao escuro
Pego em que, como hás visto, a tirania
As penas dá no seu tormento duro.
La divina giustizia di qua punge
quell’Attila che fu flagello in terra,
e Pirro e Sesto; e in etterno munge
“A divina justiça lá crucia
Esse Átila, que açoite foi da terra,[7]
Pirro e Sexto; e redobrar-se a agonia[8]
le lagrime, che col bollor diserra,
a Rinier da Corneto, a Rinier Pazzo,
che fecero a le strade tanta guerra”.
“Dos dois Renatos, que tamanha guerra
Fizeram nas estradas, salteando,
— O Pazzo e o de Corneto”. — E a fala cerra.
Poi si rivolse e ripassossi ’l guazzo.
Voltou depois do rio o vau passando.
Canto XIII
Canto XIII, ove tratta de l’esenzia del secondo girone ch’è nel settimo circulo, dove punisce coloro ch’ebbero contra sé medesimi violenta mano, ovvero non uccidendo sé ma guastando i loro beni.
Os dois Poetas entram no segundo compartimento, onde são punidos os violentos contra si mesmos e os dilapidadores dos próprios bens. Os primeiros são transformados em árvores, cujas negras folhas as Hárpias dilaceram; os outros são perseguidos por cães famintos que os despedaçam. Dante encontra Pedro des Vignes, de quem ouve os motivos pelos quais se suicidou e as leis divinas em relação aos suicidas. Vê depois o senense Lano e o paduano Jacob de Sant’Andréa. Ouve, enfim, de um suicida florentino, qual é a causa dos males da sua pátria.
Non era ancor di là Nesso arrivato,
quando noi ci mettemmo per un bosco
che da neun sentiero era segnato.
NÃO stava ainda Nesso do outro lado,
Quando nós por um bosque penetramos,
Dos vestígios de passos não marcado.
Non fronda verde, ma di color fosco;
non rami schietti, ma nodosi e ’nvolti;
non pomi v’eran, ma stecchi con tòsco.
Não fronde verde, mas escura, ramos
Não lisos, mas travados e nodosos,
Não pomos, puas com veneno achamos.
Non han sì aspri sterpi né sì folti
quelle fiere selvagge che ’n odio hanno
tra Cecina e Corneto i luoghi cólti.
Por silvados mais densos, mais umbrosos,
Do Cecina a Corneto, a besta brava,
Não foge, agros deixando deleitosos.
Quivi le brutte Arpie lor nidi fanno,
che cacciar de le Strofade i Troiani
con tristo annunzio di futuro danno.
Das Hárpias o bando aqui pousava.
Que expeliram de Strófade os Troianos,
Vaticinando o mal, que os aguardava.
Ali hanno late, e colli e visi umani,
piè con artigli, e pennuto ’l gran ventre;
fanno lamenti in su li alberi strani.
Asas têm largas, colo e rosto humanos,
Garras nos pés, plumoso e ventre enorme,
Soam na selva os uivos seus insanos.
E ’l buon maestro “Prima che più entre,
sappi che se’ nel secondo girone”,
mi cominciò a dire, “e sarai mentre
E disse o Mestre: “Convém já te informe
Que o recinto segundo vais entrando,
Onde verás spetáculo disforme,
che tu verrai ne l’orribil sabbione.
Però riguarda ben; sì vederai
cose che torrien fede al mio sermone”.
“Até que ao areal chegues infando.
Atenta! E darás fé à narrativa,
Que fiz, ainda lá no mundo estando”.
Io sentia d’ogne parte trarre guai
e non vedea persona che ’l facesse;
per ch’io tutto smarrito m’arrestai.
Em toda parte ouvi grita aflitiva:
Como não via quem assim gemesse,
Parei e a torvação se fez mais viva.
Cred’ïo ch’ei credette ch’io credesse
che tante voci uscisser, tra quei bronchi,
da gente che per noi si nascondesse.
Creio que o Mestre cria então que eu cresse
Que esses lamentos enviava aos ares
Uma turba, que aos olhos se escondesse;
Però disse ’l maestro: “Se tu tronchi
qualche fraschetta d’una d’este piante,
li pensier c’ hai si faran tutti monchi”.
Pois disse-me: “De um tronco se quebrares
Um só raminho, ficarás ciente
Desse erro em que se enleiam teus pensares”. —
Allor porsi la mano un poco avante
e colsi un ramicel da un gran pruno;
e ’l tronco suo gridò: “Perché mi schiante?”.
O braço estendo então e prontamente
Vergôntea quebro. O tronco, assim ferido
“Por que razão me arrancas?” diz fremente.
Da che fatto fu poi di sangue bruno,
ricominciò a dir: “Perché mi scerpi?
non hai tu spirto di pietade alcuno?
De sangue negro o ramo já tingido,
“Por que me rompes?” — prosseguiu gemendo —
Assomos de piedade nunca hás tido?” —
Uomini fummo, e or siam fatti sterpi:
ben dovrebb’esser la tua man più pia,
se state fossimo anime di serpi”.
“Fui homem, hoje o lenho, que estás vendo!
Mais compassiva a tua mão seria
Se alma aqui fosse de um dragão tremendo”.
Come d’un stizzo verde ch’arso sia
da l’un de’ capi, che da l’altro geme
e cigola per vento che va via,
Como acha verde, quando se incendia
Num extremo s’estorce, no outro estala,
Chiando e a umidade fora envia:
sì de la scheggia rotta usciva insieme
parole e sangue; ond’io lasciai la cima
cadere, e stetti come l’uom che teme.
Daquela arvora assim brotava a fala,
E o sangue; a minha mão já desprendera
O ramo, e, entanto, o horror no peito cala.
“S’elli avesse potuto creder prima”,
rispuose ’l savio mio, “anima lesa,
ciò c’ ha veduto pur con la mia rima,
“Se de antes ele acreditar pudera”
Lhe torna o sábio Mestre “alma agravada,
O que eu nos versos meus lhe descrevera,
non averebbe in te la man distesa;
ma la cosa incredibile mi fece
indurlo ad ovra ch’a me stesso pesa.
“Por te ferir sua mão não fora alçada.
Não crera eu mesmo, e tanto que o induzira
Ao feito, que me pesa e desagrada.
Ma dilli chi tu fosti, sì che ’n vece
d’alcun’ammenda tua fama rinfreschi
nel mondo sù, dove tornar li lece”.
“Diz-lhe quem foste e as dúvidas lhe tira.
O mal te compensando, a fama tua
Há de avivar no mundo, a que retira”. —
E ’l tronco: “Sì col dolce dir m’adeschi,
ch’i’ non posso tacere; e voi non gravi
perch’ïo un poco a ragionar m’inveschi.
E o tronco: “Alívio tanto à dor, que atua,
Causais, que de bom grado eu já explico:
Ao triste dai que a mágoa exprima sua.
Io son colui che tenni ambo le chiavi
del cor di Federigo, e che le volsi,
serrando e diserrando, sì soavi,
Fui quem do coração de Frederico[1]
As chaves tive e usei com tanto jeito,
Fechando e desfechando que era rico
che dal secreto suo quasi ogn’uom tolsi;
fede portai al glorïoso offizio,
tanto ch’i’ ne perde’ li sonni e ’ polsi.
“Da fé com que a mim só rendeu seu peito
No glorioso cargo fui constante,
Força, alento exauri por seu proveito.
La meretrice che mai da l’ospizio
di Cesare non torse li occhi putti,
morte comune e de le corti vizio,
“A torpe meretriz, que, a todo instante
Ao régio paço olhos venais volvendo,
Morte comum, das cortes mal flagrante,
infiammò contra me li animi tutti;
e li ’nfiammati infiammar sì Augusto,
che ’ lieti onor tornaro in tristi lutti.
“Contra mim ódio em todos acendendo,
Por eles acendeu iras de Augusto,
Que honras ledas tornou-me em luto horrendo.
L’animo mio, per disdegnoso gusto,
credendo col morir fuggir disdegno,
ingiusto fece me contra me giusto.
“Ressentindo-me então do mundo injusto,
Por fugir seus desdéns, buscando a morte,
Comigo iníquo fui eu, que era justo.
Per le nove radici d’esto legno
vi giuro che già mai non ruppi fede
al mio segnor, che fu d’onor sì degno.
“Pelo tronco em que peno desta sorte,
Que jamais infiel hei sido, juro,
Ao Rei meu, que houve a glória por seu norte,
E se di voi alcun nel mondo riede,
conforti la memoria mia, che giace
ancor del colpo che ’nvidia le diede”.
“De vós o que voltar à luz adjuro
Que a memória me salve ao nome honrado,
Que vulnerou da inveja o golpe duro”.
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