Estão eles, de cabeça para dentro, metidos em furos feitos no fundo e nas encostas do compartimento. As plantas dos pés, que estão fora dos buracos, são queimadas por chamas. Dante quer saber quem era um danado que mais do que os outros agitava os pés. É o papa Nicolau III da Casa Orsini, o qual diz que estava à espera de ser rendido por outros papas simoníacos. O Poeta, indignado, rompe numa veemente invectiva contra a avareza e os escândalos dos papas romanos. Virgílio, depois, o leva novamente para a ponte.

O Simon mago, o miseri seguaci

che le cose di Dio, che di bontate

deon essere spose, e voi rapaci

Ó Simão Mago[1], ó míseros sequazes

Por quem de Deus os dons só prometidos

A virtude, em rapina contumazes,

per oro e per argento avolterate,

or convien che per voi suoni la tromba,

però che ne la terza bolgia state.

Por ouro e prata estão prostituídos!

Por vós tange ora a tuba sonorosa:

Jazeis na tércia cava subvertidos.

Già eravamo, a la seguente tomba,

montati de lo scoglio in quella parte

ch’a punto sovra mezzo ’l fosso piomba.

À outra tumba chegamos temerosa,

Da rocha nos subindo àquela parte,

Que, a prumo ao centro, eleva-se alterosa.

O somma sapïenza, quanta è l'arte

che mostri in cielo, in terra e nel mal mondo,

e quanto giusto tua virtù comparte!

Saber supremo! Que inefável arte

Mostras no céu, na terra e infernal mundo!

Oh! teu poder quão justo se reparte!

Io vidi per le coste e per lo fondo

piena la pietra livida di fóri,

d’un largo tutti e ciascun era tondo.

Por toda a cava, aos lados e no fundo

Furos na pedra lívida se abriam,

De igual largura e cada qual rotundo.

Non mi parean men ampi né maggiori

che que’ che son nel mio bel San Giovanni,

fatti per loco d’i battezzatori;

Semelhar na grandeza pareciam

Aos que em meu S. João[2] belo e esplendente

Para batismo ministrar serviam.

l’un de li quali, ancor non è molt’anni,

rupp’io per un che dentro v’annegava:

e questo sia suggel ch’ogn’omo sganni.

Quebrei um, não há muito, mas somente

Para infante salvar, que ali morria:

Fique a verdade a todos bem patente.

Fuor de la bocca a ciascun soperchiava

d’un peccator li piedi e de le gambe

infino al grosso, e l’altro dentro stava.

De cada um orifício eu sair via

Os pés, até das pernas a grossura,

De um pecador: o resto se sumia.

Le piante erano a tutti accese intrambe;

per che sì forte guizzavan le giunte,

che spezzate averien ritorte e strambe.

Stavam ardendo as plantas na tortura,

E tanto as juntas rijo se estorciam,

Que romperiam a prisão mais dura.

Qual suole il fiammeggiar de le cose unte

muoversi pur su per la strema buccia,

tal era lì dai calcagni a le punte.

Do calcanhar aos dedos percorriam

As chamas, como a superfície inteira.

Em corpo de óleo ungido morderiam.

“Chi è colui, maestro, che si cruccia

guizzando più che li altri suoi consorti”,

diss’io, “e cui più roggia fiamma succia?”.

— “Quem padece” — disse eu — “por tal maneira,

Que mais que os sócios estorcer-se vejo

Em mais rúbida flama e mais ligeira?

Ed elli a me: “Se tu vuo’ ch’i’ ti porti

là giù per quella ripa che più giace,

da lui saprai di sé e de’ suoi torti”.

— “Se ao fundo eu te levar, por teu desejo,

Por declive, que jaz mais inclinado,

De ouvir-lhe o nome e os crimes dou-te ensejo”. —

E io: “Tanto m'è bel, quanto a te piace:

tu se' segnore, e sai ch'i' non mi parto

dal tuo volere, e sai quel che si tace”.

— “Aceito o que te praz, muito a meu grado:

Senhor do meu querer, és quem conhece

Quanto hei mister e a mente há reservado”. —

Allor venimmo in su l’argine quarto;

volgemmo e discendemmo a mano stanca

là giù nel fondo foracchiato e arto.

Passando à quarta borda, ali se desce

Para a esquerda voltando, até chegar-se

Lá onde tanto furo se oferece.

Lo buon maestro ancor de la sua anca

non mi dipuose, sì mi giunse al rotto

di quel che si piangeva con la zanca.

De mim não quis o Mestre aligeirar-se

Senão quando daquele, que gemia

Pelos pés, conseguiu apropinquar-se.

“O qual che se’ che ’l di sù tien di sotto,

anima trista come pal commessa”,

comincia’ io a dir, “se puoi, fa motto”.

— “Tu, és assim voltada” — eu lhe dizia —

“Como estaca plantada, ó alma opressa,

Responder-me possível te seria?” —

Io stava come ’l frate che confessa

lo perfido assessin, che, poi ch’è fitto,

richiama lui per che la morte cessa.

Eu stava aí, qual monge, que confessa

Assassino, que em cova já fincado

O chama, pois, em tanto, a pena cessa.

Ed el gridò: “Se' tu già costì ritto,

se' tu già costì ritto, Bonifazio?

Di parecchi anni mi mentì lo scritto.

— “Já tens” — gritou: já tens aqui chegado?

Já, Bonifácio[3], como tens descido?

Em anos muitos tenho a conta errado.

Se’ tu sì tosto di quell’aver sazio

per lo qual non temesti tòrre a ’nganno

la bella donna, e poi di farne strazio?”.

“Tão depressa desse ouro te hás enchido,

Pelo qual bela esposa atraiçoando,

A tens por tantos crimes afligido?”

Tal mi fec’io, quai son color che stanno,

per non intender ciò ch’è lor risposto,

quasi scornati, e risponder non sanno.

Eu fiquei como quem, não penetrando

No sentido do que outro respondera,

Enleado e corrido fica olhando.

Allor Virgilio disse: “Dilli tosto:

“Non son colui, non son colui che credi”“;

e io rispuosi come a me fu imposto.

Mas Virgílio: — “Depressa lhe assevera:

Eu não sou, eu não sou quem tu cogitas” —

Respondi como o Vate prescrevera.

Per che lo spirto tutti storse i piedi;

poi, sospirando e con voce di pianto,

mi disse: “Dunque che a me richiedi?

Ouvindo, as plantas estorceu malditas;

Depois a suspirar, com voz de pranto

— “Por que” — disse — “a falar assim me excitas?

Se di saper ch’i’ sia ti cal cotanto,

che tu abbi però la ripa corsa,

sappi ch’i’ fui vestito del gran manto;

“Se conhecer quem sou anelas tanto,

Que assim baixaste ao vale tenebroso,

De Papa sabe que hei vestido o manto.

e veramente fui figliuol de l’orsa,

cupido sì per avanzar li orsatti,

che sù l’avere e qui me misi in borsa.

“Filho de Ursa, deveras, cobiçoso

Em bolsa tudo pus por meus Ursinhos,

Lá ouro, aqui o esp’rito criminoso.

Di sotto al capo mio son li altri tratti

che precedetter me simoneggiando,

per le fessure de la pietra piatti.

“Sob a cabeça minha estão vizinhos,

Em simonia os que me antecederam,

Sobrepondo-se um no outro esses mesquinhos.

Là giù cascherò io altresì quando

verrà colui ch’i’ credea che tu fossi,

allor ch’i’ feci ’l sùbito dimando.

“Hei de ao fundo descer, como desceram,

Logo em chegando aquele, que eu cuidara

Seres tu, quando as vozes me romperam.

Ma più è ’l tempo già che i piè mi cossi

e ch’i’ son stato così sottosopra,

ch’el non starà piantato coi piè rossi:

“Mas, ardendo-me os pés se me depara

Intervalo mais longo, assim voltado,

Do que em tormento igual se lhe prepara.

ché dopo lui verrà di più laida opra,

di ver’ ponente, un pastor sanza legge,

tal che convien che lui e me ricuopra.

“Virás de mores culpas outro inçado,

Pastor sem lei[4], das partes do ocidente

Que há de ser sobre nós depositado.

Nuovo Iasón sarà, di cui si legge

ne’ Maccabei; e come a quel fu molle

suo re, così fia lui chi Francia regge”.

“Jasã[5] o novo será: condescendente

Teve o outro seu Rei, diz a Escritura,

Da França este o senhor terá potente”.

Io non so s’i’ mi fui qui troppo folle,

ch’i’ pur rispuosi lui a questo metro:

“Deh, or mi dì: quanto tesoro volle

Não sei se ousado fui e se foi dura

A resposta, que dei ao condenado.

— “Tesouros exigira porventura

Nostro Segnore in prima da san Pietro

ch’ei ponesse le chiavi in sua balìa?

Certo non chiese se non “Viemmi retro”.

“Nosso Senhor de Pedro, ao seu cuidado

E zelo quando as chaves cometia?

— Segue-me — apenas lhe há recomendado.

Né Pier né li altri tolsero a Matia

oro od argento, quando fu sortito

al loco che perdé l’anima ria.

“Dinheiro não tomaram de Matia

Pedro e os outros, por ser o preferido

Ao lugar, que o traidor perdido havia.

Però ti sta, ché tu se’ ben punito;

e guarda ben la mal tolta moneta

ch’esser ti fece contra Carlo ardito.

“Pena, pois: mereceste ser punido;

E guarda a que extorquiste, vil moeda

Que te fez contra Carlos atrevido.

E se non fosse ch’ancor lo mi vieta

la reverenza de le somme chiavi

che tu tenesti ne la vita lieta,

“Não fora a referência, que me veda,

Das santas chaves, que empunhaste outrora,

No tempo, em que fruíste a vida leda,

io userei parole ancor più gravi;

ché la vostra avarizia il mondo attrista,

calcando i buoni e sollevando i pravi.

“Voz mais severa eu levantava agora

Contra a avidez, que o mundo assaz contrista,

Que os bons oprime, o vício exalta e adora.

Di voi pastor s’accorse il Vangelista,

quando colei che siede sopra l’acque

puttaneggiar coi regi a lui fu vista;

“A vós vos figurava o Evangelista[6],

Quando a que é sobre as águas assentada

Prostituir-se aos Reis foi dele vista:

quella che con le sette teste nacque,

e da le diece corna ebbe argomento,

fin che virtute al suo marito piacque.

“Nascera de cabeças sete ornada,

E o valor nos dez cornos possuía,

Enquanto ao esposo seu virtude agrada.

Fatto v’avete dio d’oro e d’argento;

e che altro è da voi a l’idolatre,

se non ch’elli uno, e voi ne orate cento?

“De ouro a vossa cobiça um Deus fazia:

Por um dos que os gentios adoraram

Abrange cento a vossa idolatria.

Ahi, Costantin, di quanto mal fu matre,

non la tua conversion, ma quella dote

che da te prese il primo ricco patre!”.

“Constantino! Ah! que males derivaram,

Não do batismo teu, mas da riqueza

Que deste a um Papa e a quem outras se juntaram![7]

E mentr’io li cantava cotai note,

o ira o coscïenza che ’l mordesse,

forte spingava con ambo le piote.

Sentindo destas notas a aspereza,

Ele tomado de remorso ou de ira,

Agitava os dois pés com mor braveza.

I’ credo ben ch’al mio duca piacesse,

con sì contenta labbia sempre attese

lo suon de le parole vere espresse.

Virgílio, creio, com prazer me ouvira:

Aplaudir seu semblante revelava

Verdades que eu, sincero, proferira.

Però con ambo le braccia mi prese;

e poi che tutto su mi s’ebbe al petto,

rimontò per la via onde discese.

Jubiloso nos braços me levava,

E, depois que apertara-me ao seu peito,

Por onde descendera, se tornava.

Né si stancò d’avermi a sé distretto,

sì men portò sovra ’l colmo de l’arco

che dal quarto al quinto argine è tragetto.

Sempre cingido desse abraço estreito,

Do arco ao cimo transportou-me o Guia:

Caminho à quinta cava era direito.

Quivi soavemente spuose il carco,

soave per lo scoglio sconcio ed erto

che sarebbe a le capre duro varco.

Ali suavemente me descia

Em rochedo tão íngreme e empinado,

Que às cabras ínvio ser me parecia,

Indi un altro vallon mi fu scoperto.

De lá foi-me outro val descortinado.

Canto XX

Canto XX, dove si tratta de l’indovini e sortilegi e de l’incantatori, e de l’origine di Mantova, di che trattare diede cagione Manto incantatrice; e di loro pene e miseria e de la condizione loro misera, ne la quarta bolgia, in persona di Michele di Scozia e di più altri.

No quarto compartimento são punidos os impostores que se dedicaram à arte divinatória. Eles têm o rosto e o pescoço voltados para as costas, pelo que são obrigados a caminhar ao reverso. Virgílio mostra a Dante alguns entre os mais famosos, entre os quais a tebana Manto, da qual se origina Mântua, cidade natal de Virgílio.

Di nova pena mi conven far versi

e dar matera al ventesimo canto

de la prima canzon, ch’è d’i sommersi.

NOVA pena convém dizer em versos

E dar matéria ao meu vinteno canto,

Do cântico onde punem-se os perversos.

Io era già disposto tutto quanto

a riguardar ne lo scoperto fondo,

che si bagnava d’angoscioso pianto;

Eu era já disposto tanto, quanto

Fora preciso para ver o fundo

Da cava, que banhava amargo pranto.

e vidi gente per lo vallon tondo

venir, tacendo e lagrimando, al passo

che fanno le letane in questo mondo.

De almas vi turba, pelo val rotundo,

Que taciturna vinha e lacrimosa

Ao passo usado em procissões no mundo.

Come ’l viso mi scese in lor più basso,

mirabilmente apparve esser travolto

ciascun tra ’l mento e ’l principio del casso,

Mirei mais baixo e cada desditosa

Notei que fora o mento retorcido

Do colo ao começar: cousa espantosa!

ché da le reni era tornato ’l volto,

e in dietro venir li convenia,

perché ’l veder dinanzi era lor tolto.

Para o dorso era o rosto seu volvido:

Só recuando caminhar podia;

Que em frente olhar estava-lhe tolhido.

Forse per forza già di parlasia

si travolse così alcun del tutto;

ma io nol vidi, né credo che sia.

Talvez por força já de par’lisia

De alguém o corpo ao todo se torcesse;

Não vi: crê-lo difícil me seria.

Se Dio ti lasci, lettor, prender frutto

di tua lezione, or pensa per te stesso

com'io potea tener lo viso asciutto,

Que te seja, Leitor, a Deus prouvesse

Proveitosa a lição! Pensa, atilado,

Quanto em mim, vendo, a compaixão crescesse,

quando la nostra imagine di presso

vidi sì torta, che ’l pianto de li occhi

le natiche bagnava per lo fesso.

O parecer humano tão mudado,

Que o pranto, que dos olhos derivava

Banhava o tergo a cada condenado.

Certo io piangea, poggiato a un de’ rocchi

del duro scoglio, sì che la mia scorta

mi disse: “Ancor se' tu de li altri sciocchi?

Do rochedo eu a um ângulo chorava

Com tanta dor, que o Mestre de repente

— “Insensato és também?” — me interrogava.

Qui vive la pietà quand’è ben morta;

chi è più scellerato che colui

che al giudicio divin passion comporta?

“Aqui piedade é morte em toda mente:

Quando Deus condenou, quem mais malvado

Do que esse, que ternura por maus sente?

Drizza la testa, drizza, e vedi a cui

s’aperse a li occhi d’i Teban la terra;

per ch’ei gridavan tutti: “Dove rui,

“Alça a fronte, alça, atento ao condenado,

Que ante os Tebanos se abismou na terra.

Gritavam-lhe: — Como andas apressado,

Anfïarao? perché lasci la guerra?”.

E non restò di ruinare a valle

fino a Minòs che ciascheduno afferra.

“Anfiarau[1]? Como assim foges da guerra? —

Ele tombava entanto, ao val descendo,

Onde Minos os réprobos aferra.

Mira c' ha fatto petto de le spalle;

perché volse veder troppo davante,

di retro guarda e fa retroso calle.

“Pelo futuro penetrar querendo,

Tem o dorso adiante em vez do peito,

E a recuar caminha, atrás só vendo.

Vedi Tiresia, che mutò sembiante

quando di maschio femmina divenne,

cangiandosi le membra tutte quante;

“Eis Tirésias[2], o que mudara o aspeito,

Femíneas formas e feições tomara,

Sendo-lhe o que era varonil desfeito.

e prima, poi, ribatter li convenne

li duo serpenti avvolti, con la verga,

che rïavesse le maschili penne.

“Ao sexo seu tornou, quando encontrara,

Inda uma vez, travadas serpes duas

E outra vez com bordão as separara.

Aronta è quel ch’al ventre li s’atterga,

che ne’ monti di Luni, dove ronca

lo Carrarese che di sotto alberga,

“Volta-lhe Arons[3] ao ventre as costas nuas:

De Luni em monte, aos agros iminentes,

Onde o Carrara ergueu moradas suas,

ebbe tra ’ bianchi marmi la spelonca

per sua dimora; onde a guardar le stelle

e ’l mar non li era la veduta tronca.

“Teve em gruta marmórea permanente

Estância, donde contemplar podia

As estrelas, as ondas livremente.

E quella che ricuopre le mammelle,

che tu non vedi, con le trecce sciolte,

e ha di là ogne pilosa pelle,

“Essa mulher” — continuou meu Guia —

“Que o seio oculta em traça flutuante

E de velos a pele tem sombria,

Manto fu, che cercò per terre molte;

poscia si puose là dove nacqu’ io;

onde un poco mi piace che m’ascolte.

“Foi Manto[4], que vagara incerta e errante

Até pousar na terra, em que hei nascido.

No que ora digo irei um pouco avante.

Poscia che ’l padre suo di vita uscìo

e venne serva la città di Baco,

questa gran tempo per lo mondo gio.

“Vendo o pai já da vida despedido

E a cidade de Baco em jugo triste,

O mundo largo tempo há percorrido.

Suso in Italia bella giace un laco,

a piè de l’Alpe che serra Lamagna

sovra Tiralli, c’ ha nome Benaco.

“Junto ao Alpes na bela Itália existe,

Além Tirol, já perto da Alemanha,

Um lago, que chamar Benaco[5] ouviste.

Per mille fonti, credo, e più si bagna

tra Garda e Val Camonica e Pennino

de l’acqua che nel detto laco stagna.

“Veia de fontes mil, que a plaga banha

Entre Garda, Camônica e Apenino,

De águas conduz ao lago cópia manha.

Loco è nel mezzo là dove ’l trentino

pastore e quel di Brescia e ’l veronese

segnar poria, s’e’ fesse quel cammino.

“Ilha há no meio, em que o Pastor trentino,

E com ele os de Bréscia e de Verona,

Possuem de benzer juro divino.

Siede Peschiera, bello e forte arnese

da fronteggiar Bresciani e Bergamaschi,

ove la riva ’ntorno più discese.

“Onde é mais baixa do Benaco a zona,

A Bérgamo fazendo e a Bréscia frente,

Pesqueira, forte em bastiões, se entona.

Ivi convien che tutto quanto caschi

ciò che ’n grembo a Benaco star non può,

e fassi fiume giù per verdi paschi.

“É dali que das águas o excedente,

Que ter em si não pode o lago, brota

Em rio e cobre os prados largamente.

Tosto che l’acqua a correr mette co,

non più Benaco, ma Mencio si chiama

fino a Governol, dove cade in Po.

“Quando prossegue, outro apelido adota,

Chama-se Míncio, perde o nome antigo:

No Pó junto a Governol, há fim sua rota.

Non molto ha corso, ch’el trova una lama,

ne la qual si distende e la ’mpaluda;

e suol di state talor esser grama.

“No verão à saúde traz perigo;

Em vasto plaino o álveo dilatando,

Forma paul, das infeções amigo.

Quindi passando la vergine cruda

vide terra, nel mezzo del pantano,

sanza coltura e d’abitanti nuda.

“Manto, a virgem selvage ali passando,

Terreno viu desabitado, inculto

Naquele pantanal, que o está cercando

Lì, per fuggire ogne consorzio umano,

ristette con suoi servi a far sue arti,

e visse, e vi lasciò suo corpo vano.

“Esquiva a humano trato e estranho vulto,

Fez ali de suas artes oficina

E viveu té sofrer da morte o insulto.

Li uomini poi che ’ntorno erano sparti

s’accolsero a quel loco, ch’era forte

per lo pantan ch’avea da tutte parti.

“Povo, ao diante, para ali se inclina,

Em torno esparso, e abrigo, o julga forte:

De águas cercado com pauis confina.

Fer la città sovra quell’ossa morte;

e per colei che ’l loco prima elesse,

Mantüa l’appellar sanz’altra sorte.

“Onde aqui o elegeu colhera a morte,

A cidade erigiram, que chamaram

Mântua, do nome seu sem tirar sorte.

Già fuor le genti sue dentro più spesse,

prima che la mattia da Casalodi

da Pinamonte inganno ricevesse.

“Os habitantes lá mais avultaram,

Quando ainda os ardis de Pinamonte

De Casalodis[6] a insânia não fraudaram.

Però t’assenno che, se tu mai odi

originar la mia terra altrimenti,

la verità nulla menzogna frodi”.

“Ciente fica, pois: se de outra fonte

A pátria minha originar quiserem,

A mentira à verdade nunca afronte”. —

E io: “Maestro, i tuoi ragionamenti

mi son sì certi e prendon sì mia fede,

che li altri mi sarien carboni spenti.

— “As cousas, que tuas vozes me referem,

Tão certas são” — disse eu — “que me parece

Carvão extinto o que outros me disserem.

Ma dimmi, de la gente che procede,

se tu ne vedi alcun degno di nota;

ché solo a ciò la mia mente rifiede”.

“Mais dize, ó Mestre: acaso não merece

Dos que avançam nenhum reparo ou nota?

Na mente de o saber desejo cresce”. —

Allor mi disse: “Quel che da la gota

porge la barba in su le spalle brune,

fu - quando Grecia fu di maschi vòta,

— “Aquele, a quem do mento ao dorso brota

Barba esquálida, um áugur se dizia,

Quando de homens a Grécia tal derrota

sì ch’a pena rimaser per le cune -

augure, e diede ’l punto con Calcanta

in Aulide a tagliar la prima fune.

Teve, que infantes só no berço havia.

Em Áulide com Calcas[7] indicara

Tempo, em que a frota desferrar devia.

Euripilo ebbe nome, e così ’l canta

l’alta mia tragedìa in alcun loco:

ben lo sai tu che la sai tutta quanta.

“Eurípilo[8] chamou-se: assim narrara

Num dos seus cantos, a tragédia minha,

Bem sabes, pois tua mente a arrecadara.

Quell’altro che ne’ fianchi è così poco,

Michele Scotto fu, che veramente

de le magiche frode seppe ’l gioco.

“Esse, que, tão delgado, se avizinha,

Miguel Escotto[9] foi, que, certamente,

Perícia em fraudes da magia tinha.

Vedi Guido Bonatti; vedi Asdente,

ch’avere inteso al cuoio e a lo spago

ora vorrebbe, ma tardi si pente.

“Olha Guido Bonati[10], encara Asdente[11]

Que cuidar só devera da sovela:

Arrepende-se agora inutilmente.

Vedi le triste che lasciaron l’ago,

la spuola e ’l fuso, e fecersi ’ndivine;

fecer malie con erbe e con imago.

“Das tristes ora a turba se revela,

Que, desdenhando a agulha, a horrível arte

De encantos infernais acharam bela.

Ma vienne omai, ché già tiene ’l confine

d’amendue li emisperi e tocca l’onda

sotto Sobilia Caino e le spine;

“Mas no limite, que hemisférios parte,

É Caim com seu fardo, o mar tocando,

Lá de Sevilha além do baluarte.

e già iernotte fu la luna tonda:

ben ten de’ ricordar, ché non ti nocque

alcuna volta per la selva fonda”.

“A lua, a face plena já mostrando

(Te lembras?) ontem viste na sombria

Selva, em que te ajudou seu fulgor brando”. —

Sì mi parlava, e andavamo introcque.

Assim falando, a passo igual seguia.

Canto XXI

Canto XXI, il quale tratta de le pene ne le quali sono puniti coloro che commisero baratteria, nel quale vizio abbomina li lucchesi; e qui tratta di dieci demoni, ministri a l’offizio di questo luogo; e cogliesi qui il tempo che fue compilata per Dante questa opera.

No quinto compartimento são punidos os trapaceiros que negociaram os cargos públicos ou roubaram aos seus amos. Eles estão mergulhados em piche fervendo. Os dois Poetas presenciam a tortura de um trapaceiro luquense por obra de um demônio. Virgílio domina os demônios que queriam avançar contra eles. Virgílio e Dante, escoltados por um bando de demônios, tomam o caminho ao longo do aterro.

Così di ponte in ponte, altro parlando

che la mia comedìa cantar non cura,

venimmo; e tenavamo ’l colmo, quando

Assim, de ponte em ponte, discursando

Do que nesta comédia se não cura,

De outro arco acima nos subimos, quando

restammo per veder l’altra fessura

di Malebolge e li altri pianti vani;

e vidila mirabilmente oscura.

Detemo-nos por ver a cava escura,

Por ouvir de outros prantos vão sonido;

Com pasmo olhei a hórrida negrura.

Quale ne l’arzanà de’ Viniziani

bolle l’inverno la tenace pece

a rimpalmare i legni lor non sani,

No arsenal de Veneza, derretido

Como referve o pez na estação fria

Para reparo ao lenho combalido,

ché navicar non ponno - in quella vece

chi fa suo legno novo e chi ristoppa

le coste a quel che più vïaggi fece;

Incapaz de vogar: qual com mestria

Baixel novo constrói; qual alcatroa

O que teve em viagens avaria;

chi ribatte da proda e chi da poppa;

altri fa remi e altri volge sarte;

chi terzeruolo e artimon rintoppa -:

Qual pregos bate à popa qual à proa;

Qual remos faz, qual linho torce ou parte;

Qual mezena e artemão aperfeiçoa:

tal, non per foco ma per divin’arte,

bollia là giuso una pegola spessa,

che ’nviscava la ripa d’ogne parte.

Assim, por fogo não, por divina arte

Betume espesso, ao fundo refervia,

As bordas enviscando em toda parte.

I’ vedea lei, ma non vedëa in essa

mai che le bolle che ’l bollor levava,

e gonfiar tutta, e riseder compressa.

Mas no pez só na tona eu distinguia

Borbulhão, que a fervura levantava,

Que ora inchava, ora rápido abatia.

Mentr’io là giù fisamente mirava,

lo duca mio, dicendo “Guarda, guarda!”,

mi trasse a sé del loco dov’io stava.

No fundo enquanto os olhos eu fitava,

Exclamando Virgílio: — Eia! Cuidado! —

Para si donde eu era me tirava.

Allor mi volsi come l’uom cui tarda

di veder quel che li convien fuggire

e cui paura sùbita sgagliarda,

Voltei-me então como homem, que apressado

É por saber o que fugir convenha,

De súbito pavor sendo atalhado,

che, per veder, non indugia ’l partire:

e vidi dietro a noi un diavol nero

correndo su per lo scoglio venire.

Olha sem que por isso se detenha,

E logo atrás de nós eu vi correndo

Negro demônio sobre aquela penha.

Ahi quant’elli era ne l’aspetto fero!

e quanto mi parea ne l’atto acerbo,

con l’ali aperte e sovra i piè leggero!

Ah! que aspecto feroz! Ah! quanto horrendo

Nos meneios parece e temeroso,

Veloz nos pés e as asas estendendo!

L’omero suo, ch’era aguto e superbo,

carcava un peccator con ambo l’anche,

e quei tenea de’ piè ghermito ’l nerbo.

No dorso agudo e enorme um criminoso,

Escarranchado, em peso, carregava:

Dos pés prendia o nervo ao desditoso.

Del nostro ponte disse: “O Malebranche,

ecco un de li anzïan di Santa Zita!

Mettetel sotto, ch'i' torno per anche

— “Malebranche!” já perto ele bradava —

— “Eis um dos anciões de S. Zita[1]!

Mergulhai-o, pois torna à gente prava,

a quella terra, che n’è ben fornita:

ogn’uom v’è barattier, fuor che Bonturo;

del no, per li denar, vi si fa ita”.

“Que nessa terra em grande soma habita.

Venais todos lá são menos Bonturo[2].

O no, por ouro, lá se muda em ita“[3].

Là giù ’l buttò, e per lo scoglio duro

si volse; e mai non fu mastino sciolto

con tanta fretta a seguitar lo furo.

Ao pez o arroja, e pelo escolho duro

Se torna: após ladrão tanto apressado

Não vai mastim, que estava antes seguro:

Quel s’attuffò, e tornò sù convolto;

ma i demon che del ponte avean coperchio,

gridar: “Qui non ha loco il Santo Volto!

O maldito afundou; surdiu curvado.

Sob a ponte os demônios lhe gritaram:

— “Não acharás aqui Vulto Sagrado,

qui si nuota altrimenti che nel Serchio!

Però, se tu non vuo’ di nostri graffi,

non far sopra la pegola soverchio”.

“Nem banhos, quais no Serchio se deparam.

Se não queres no pez star imergido.

A te espetar as fisgas se preparam”. —

Poi l’addentar con più di cento raffi,

disser: “Coverto convien che qui balli,

sì che, se puoi, nascosamente accaffi”.

Com croques cem mordendo esse descrido

— “Bailar” — disseram — “deves bem coberto;

Se puderes furtar, furta escondido”. —

Non altrimenti i cuoci a’ lor vassalli

fanno attuffare in mezzo la caldaia

la carne con li uncin, perché non galli.

Tal ordem em cozinha o mestre esperto

Aos ajudantes seus que na caldeira

Mergulhem naco à tona descoberto.

Lo buon maestro “Acciò che non si paia

che tu ci sia”, mi disse, “giù t’acquatta

dopo uno scheggio, ch’alcun schermo t’aia;

— “Por que” — falou-me o Guia — “alguém não queira

Molestar-te em te vendo, busca abrigo:

Num recanto o acharás desta pedreira.

e per nulla offension che mi sia fatta,

non temer tu, ch’i’ ho le cose conte,

perch’altra volta fui a tal baratta”.

“Não temas que me ofenda o bando imigo;

Muito bem sei como o furor lhe afronte;

Já venci de outra vez igual perigo”. —

Poscia passò di là dal co del ponte;

e com’el giunse in su la ripa sesta,

mestier li fu d’aver sicura fronte.

Até o extremo então passou da ponte;

Mas, quando a sexta borda já subia,

Mister lhe foi mostrar serena fronte.

Con quel furore e con quella tempesta

ch’escono i cani a dosso al poverello

che di sùbito chiede ove s’arresta,

Qual fremente matilha, que se envia

Ao pobre, quando pára esbaforido

E pede alívio à fome que o crucia:

usciron quei di sotto al ponticello,

e volser contra lui tutt’i runcigli;

ma el gridò: “Nessun di voi sia fello!

De baixo arremeteu-lhe o bando infido,

Aceso em ira, os croques seus brandindo.

Mas gritou-lhes: — “Nenhum seja atrevido!

Innanzi che l’uncin vostro mi pigli,

traggasi avante l’un di voi che m’oda,

e poi d’arruncigliarmi si consigli”.

“Os croques suspendi: até mim vindo

Me preste algum de vós atenção toda.

Fere, se ousais porém antes me ouvindo”.

Tutti gridaron: “Vada Malacoda!”;

per ch’un si mosse - e li altri stetter fermi -

e venne a lui dicendo: “Che li approda?”.

Clamaram todos: — “Ouça — o Malacoda!”

Enquanto os mais ficavam no seu posto,

— “Que queres?” — disse alguém que sai da roda;

“Credi tu, Malacoda, qui vedermi

esser venuto”, disse ’l mio maestro,

“sicuro già da tutti vostri schermi,

E o Mestre: — “És, Malacoda, a crer disposto

Que as ameaças vossas superasse

Para aqui vir, se por celeste gosto

sanza voler divino e fato destro?

Lascian’andar, ché nel cielo è voluto

ch’i’ mostri altrui questo cammin silvestro”.

E supremo querer não caminhasse?

Deixa-me ir; pois a lei divina ordena.

Que eu nesta agra jornada outrem guiasse”.

Allor li fu l’orgoglio sì caduto,

ch’e’ si lasciò cascar l’uncino a’ piedi,

e disse a li altri: “Omai non sia feruto”.

De Malacoda o orgulho já serena;

Aos pés lhe cai o croque; aos ais voltado

Lhes disse: — “Este não pode sofrer pena”.

E ’l duca mio a me: “O tu che siedi

tra li scheggion del ponte quatto quatto,

sicuramente omai a me ti riedi”.

E o Mestre me falou: — “Tu, que abrigado

Estás entre os penedos cauteloso,

Volve a mim, do temor descativado”.

Per ch’io mi mossi e a lui venni ratto;

e i diavoli si fecer tutti avanti,

sì ch’io temetti ch’ei tenesser patto;

Corri para Virgílio pressuroso.

Eis os demônios todos investiram:

Roto o concerto, pois, cria ansioso.

così vid’ïo già temer li fanti

ch’uscivan patteggiati di Caprona,

veggendo sé tra nemici cotanti.

De Caprona os soldados, que saíram

A partido assim vi que estremeciam,

Quando envoltos de imigos se sentiram.

I’ m’accostai con tutta la persona

lungo ’l mio duca, e non torceva li occhi

da la sembianza lor ch’era non buona.

Nos sevos gestos seus se me prendiam

Os olhos, e a Virgílio vinculado

Os braços o meu corpo todo haviam.

Ei chinavan li raffi e “Vuo’ che ’l tocchi”,

diceva l’un con l’altro, “in sul groppone?”.

E rispondien: “Sì, fa che gliel’accocchi”.

Os croques inclinados: — “No costado

Fisguemo-lo” — entre si dois prorromperam.

E os outros: — “Oh! pois não! seja espetado!”

Ma quel demonio che tenea sermone

col duca mio, si volse tutto presto

e disse: “Posa, posa, Scarmiglione!”.

Ao que o Mestre falava desprouveram

Palavra tais, e então bradou depressa:

“Sê quedo, Scarmiglione!” — Emudeceram.

Poi disse a noi: “Più oltre andar per questo

iscoglio non si può, però che giace

tutto spezzato al fondo l’arco sesto.

Depois assim nos disse: — “Andar por essa

Rocha não podereis; jaz destruído

Todo arco sexto sem restar-lhe peça.

E se l’andare avante pur vi piace,

andatevene su per questa grotta;

presso è un altro scoglio che via face.

Se avante quereis ir, seja seguido

Desta borda o caminho: não distante

Está rochedo ao passo apercebido.

Ier, più oltre cinqu’ ore che quest’otta,

mille dugento con sessanta sei

anni compié che qui la via fu rotta.

“Ontem, cinco horas mais do que este instante[4]

Mil e duzentos com sessenta e seis

Anos houve: é então a rocha hiante.

Io mando verso là di questi miei

a riguardar s’alcun se ne sciorina;

gite con lor, che non saranno rei”.

“Dos sócios meus na companhia ireis;

Vão ver se alguém ao banho quer furtar-se.

Ide em paz: molestados não sereis.

“Tra’ ti avante, Alichino, e Calcabrina”,

cominciò elli a dire, “e tu, Cagnazzo;

e Barbariccia guidi la decina.

“Calcabrina, Alichino vão juntar-se

Com Cagnazzo, a decúria comandando

Barbariccia! E não podem separar-se

Libicocco vegn’oltre e Draghignazzo,

Cirïatto sannuto e Graffiacane

e Farfarello e Rubicante pazzo.

“Droghinaz, Libicocco, deste bando!

Graffiacane, o dentudo Ciriatto,

Farfarel, Rubicante vão marchando!

Cercate ’ntorno le boglienti pane;

costor sian salvi infino a l’altro scheggio

che tutto intero va sovra le tane”.

“Na ronda cada qual se mostre exato!

Sejam a salvo os dois encaminhados

Da ponte ao arco até agora intato!”

“Omè, maestro, che è quel ch’i’ veggio?”,

diss’io, “deh, sanza scorta andianci soli,

se tu sa’ ir; ch’i’ per me non la cheggio.

“Que vejo, ó Mestre!” — eu disse — “Acompanhados!”

Se sabes ir só, vamos prontamente;

De guias tais dispensam-se os cuidados.

Se tu se’ sì accorto come suoli,

non vedi tu ch’e’ digrignan li denti

e con le ciglia ne minaccian duoli?”.

“Se tu és, como sóis, Mestre, prudente,

Não vês que os dentes seus estão rangendo,

Que nos encaram com furor crescente?”

Ed elli a me: “Non vo’ che tu paventi;

lasciali digrignar pur a lor senno,

ch’e’ fanno ciò per li lessi dolenti”.

“Não temas” — disse o Mestre, respondendo —

“Ranger os dentes deixa-os a seu gosto:

É contra os que ardem lá no pez horrendo”.

Per l’argine sinistro volta dienno;

ma prima avea ciascun la lingua stretta

coi denti, verso lor duca, per cenno;

À sestra os dez então fizeram rosto;

Nos dentes cada qual mostra primeiro,

Por mofa a língua ao cabo já disposto;

ed elli avea del cul fatto trombetta.

E ele trompa fazia do traseiro.

Canto XXII

Canto XXII, nel quale abomina quelli di Sardigna e tratta alcuna cosa de la sagacitade de’ barattieri in persona d’uno navarrese, e de’ barattieri medesimi questo canta.

Andando os dois Poetas pelo aterro à esquerda, vêem muitos trapaceiros, que, por aliviar-se, boiam acima do piche fervendo. Sobrevêem os diabos e um deles é lacerado. É este Ciampolo, de Navarra, que consegue, depois, livrar-se das garras dos diabos, o que dá motivo a uma briga entre os demônios.

Io vidi già cavalier muover campo,

e cominciare stormo e far lor mostra,

e talvolta partir per loro scampo;

Marchar vi cavaleiros à peleja,

Travar luta, enlear-se no combate

E até pedir à fuga que os proteja;

corridor vidi per la terra vostra,

o Aretini, e vidi gir gualdane,

fedir torneamenti e correr giostra;

Em vossa terra esquadras dar rebate

Vi, Aretinos; vi as cavalgadas,

Torneios, justas no mavórtico embate,

quando con trombe, e quando con campane,

con tamburi e con cenni di castella,

e con cose nostrali e con istrane;

De tubas ao clangor, às badaladas,

Com sinais de castelos, de tambores,

Com artes novas ou entre nós usadas:

né già con sì diversa cennamella

cavalier vidi muover né pedoni,

né nave a segno di terra o di stella.

Não vi mover peões, nem corredores,

Nem baixéis, que regula a terra ou estrela,

De igual clarim aos sons atroadores.

Noi andavam con li diece demoni.

Ahi fiera compagnia! ma ne la chiesa

coi santi, e in taverna coi ghiottoni.

Com dez demônios (que companha bela!)

Partimo-nos, porém rezar com santo,

Urrar com lobos discrição revela.

Pur a la pegola era la mia ’ntesa,

per veder de la bolgia ogne contegno

e de la gente ch’entro v’era incesa.

Minha atenção no pez se engolfa, entanto,

Por saber quanto encerra a negra cava,

Ali quem pena, quem derrama pranto.

Come i dalfini, quando fanno segno

a’ marinar con l’arco de la schiena

che s’argomentin di campar lor legno,

Como o delfim, que da tormenta brava

O nauta avisa, o dorso recurvando,

Presságio do mau tempo, que se agrava.

talor così, ad alleggiar la pena,

mostrav’alcun de’ peccatori ’l dosso

e nascondea in men che non balena.

Um lenitivo à pena, assim, buscando,

Mostrava o tergo algum dos condenados,

Qual relâmpago, logo se esquivando.

E come a l’orlo de l’acqua d’un fosso

stanno i ranocchi pur col muso fuori,

sì che celano i piedi e l’altro grosso,

Como à borda de charcos enlodados

A fronte deixa à rã ver da água fora,

Pernas e corpo tendo resguardados:

sì stavan d’ogne parte i peccatori;

ma come s’appressava Barbariccia,

così si ritraén sotto i bollori.

Assim no pez a gente pecadora.

Mas, Barbariccia próximo já sendo,

Na resina se esconde abrasadora.

I’ vidi, e anco il cor me n’accapriccia,

uno aspettar così, com’elli ’ncontra

ch’una rana rimane e l’altra spiccia;

Eu vi (e ainda agora estou tremendo!)

Em cima retardar-se um desditoso

Qual rã, que fica, as mais desparecendo.

e Graffiacan, che li era più di contra,

li arruncigliò le ’mpegolate chiome

e trassel sù, che mi parve una lontra.

Perto ali stava Grafiacane iroso:

Fisgou-o na enviscada cabeleira,

E alçou, qual lontra, ao ar o criminoso.

I’ sapea già di tutti quanti ’l nome,

sì li notai quando fuorono eletti,

e poi ch’e’ si chiamaro, attesi come.

Sabia os nomes da caterva inteira;

Ouvindo-os, atentei nos escolhidos:

Distingui-los podia de carreira.

“O Rubicante, fa che tu li metti

li unghioni a dosso, sì che tu lo scuoi!”,

gridavan tutti insieme i maladetti.

“Eia! depressa os teus ferrões compridos

No costado lhe crava, ó Rubicante!”

Os demônios gritaram-lhe incendidos.

E io: “Maestro mio, fa, se tu puoi,

che tu sappi chi è lo sciagurato

venuto a man de li avversari suoi”.

“Ó Mestre” — disse — “inquire insinuante

Quem seja aquele mísero e mesquinho

Que em mãos caiu da turba petulante”.

Lo duca mio li s’accostò allato;

domandollo ond’ei fosse, e quei rispuose:

“I’ fui del regno di Navarra nato.

Moveu-se o Mestre e, à cava já vizinho,

Perguntou-lhe em que terra ele nascera.

— “Em Navarra[1]” — tornou-lhe — eu tive o ninho.

Mia madre a servo d’un segnor mi puose,

che m’avea generato d’un ribaldo,

distruggitor di sé e di sue cose.

“De um fidalgo ao serviço me pusera

Minha mãe, quando o pai meu devastara

Fazenda e a própria vida com mão fera.

Poi fui famiglia del buon re Tebaldo;

quivi mi misi a far baratteria,

di ch’io rendo ragione in questo caldo”.

“D’El-rei Tebaldo eu na privança entrara:

Vendia os seus favores fraudulento;

Sofro a pena do mal, que praticara”.

E Cirïatto, a cui di bocca uscia

d’ogne parte una sanna come a porco,

li fé sentir come l’una sdruscia.

Então os dentes lhe cravou cruento,

De javardo quais presas, Ciriatto:

Armam-lhe a boca, servem de instrumento:

Tra male gatte era venuto ’l sorco;

ma Barbariccia il chiuse con le braccia

e disse: “State in là, mentr’io lo ’nforco”.

Nas mãos de imigo seu caíra o rato:

Barbariccia, entre os braços o estreitando,

— “Alto!” — lhe diz — “A mim cabe seu trato”.

E al maestro mio volse la faccia;

“Domanda”, disse, “ancor, se più disii

saper da lui, prima ch’altri ’l disfaccia”.

E o rosto para o Mestre meu voltando,

Falou: — “Pergunta, se ainda mais desejas

Antes que o tenha lacerado o bando”.

Lo duca dunque: “Or dì: de li altri rii

conosci tu alcun che sia latino

sotto la pece?”. E quelli: “I’ mi partii,

“Algum dos pecadores, com quem stejas”

Virgílo interrogou — “Latino há sido?”

Tornou: — “Vou contentar-te no que almejas.

poco è, da un che fu di là vicino.

Così foss’io ancor con lui coperto,

ch’i’ non temerei unghia né uncino!”.

“No pez deixei alguém por tal havido...

Ah! não temera, estando lá coberto,

Ser de unhas e farpões ora ferido”.

E Libicocco “Troppo avem sofferto”,

disse; e preseli ’l braccio col runciglio,

sì che, stracciando, ne portò un lacerto.

— “É demais!” — Libicocco diz, que perto

Estava; e um braço ao triste dilacera,

Do croque ao golpe, aquele algoz esperto.

Draghignazzo anco i volle dar di piglio

giuso a le gambe; onde ’l decurio loro

si volse intorno intorno con mal piglio.

Às pernas Draghignaz também quisera

Do mísero investir; o cabo iroso

Acesos olhos volve e os dois modera.

Quand’elli un poco rappaciati fuoro,

a lui, ch’ancor mirava sua ferita,

domandò ’l duca mio sanza dimoro:

Cessa um pouco o rumor e pessuroso

Pergunta o Mestre àquela sombra aflita,

Que do golpe olha o efeito doloroso:

“Chi fu colui da cui mala partita

di’ che facesti per venire a proda?”.

Ed ei rispuose: “Fu frate Gomita,

“Quem foi essa alma, como tu prescita,

Que, por vires à tona, hás lá deixado?”

Responde o pecador: — “Foi Frei Gomita[2]

quel di Gallura, vasel d’ogne froda,

ch’ebbe i nemici di suo donno in mano,

e fé sì lor, che ciascun se ne loda.

De galura, nas fraudes consumado

Que do seu amo a imigos poupou dano,

E, traidor, foi por eles premiado.

Danar si tolse e lasciolli di piano,

sì com’e’ dice; e ne li altri offici anche

barattier fu non picciol, ma sovrano.

“Por ouro os deixou ir, como de plano

Confessa; e em tudo o mais provou ter foro

Nas tretas, ser nos dolos soberano.

Usa con esso donno Michel Zanche

di Logodoro; e a dir di Sardigna

le lingue lor non si sentono stanche.

“Miguel Zanche[3], o Juiz de Logodoro,

Com ele ostenta, em práticas freqüentes

De crimes, em Sardenha, o seu tesouro.

Omè, vedete l’altro che digrigna;

i’ direi anche, ma i’ temo ch’ello

non s’apparecchi a grattarmi la tigna”.

“Ai! vede como esse outro range os dentes!

Iria por diante; mas receio

Na pele a fúria dos ferrões pungentes”.

E ’l gran proposto, vòlto a Farfarello

che stralunava li occhi per fedire,

disse: “Fatti ’n costà, malvagio uccello!”.

Atenta o cabo de olhos no meneio

Com que a ferir se apresta Farfarello.

“Vai daí!” — lhe gritou — “pássaro feio!”

“Se voi volete vedere o udire”,

ricominciò lo spaürato appresso,

“Toschi o Lombardi, io ne farò venire;

— “Se Toscanos, Lombardos tens anelo

De ver e ouvir” — o triste prosseguia —

“Traça darei, com que satisfazê-lo.

ma stieno i Malebranche un poco in cesso,

sì ch’ei non teman de le lor vendette;

e io, seggendo in questo loco stesso,

Suspendam Malebranche essa porfia;

Não temam sócios meus dura vingança,

Que eu, sentado, um só não, muitos faria

per un ch’io son, ne farò venir sette

quand’io suffolerò, com’è nostro uso

di fare allor che fori alcun si mette”.

“De lá surdir, segundo a nossa usança,

Ao sinal de assovio, que de ausente

Perigo ao vir à tona dá fiança”.

Cagnazzo a cotal motto levò ’l muso,

crollando ’l capo, e disse: “Odi malizia

ch’elli ha pensata per gittarsi giuso!”.

Cagnazzo alça o focinho, de repente,

E, abanando a cabeça, diz — “Cuidado!

Astúcia é por lançar-se ao pez fervente”.

Ond’ei, ch’avea lacciuoli a gran divizia,

rispuose: “Malizioso son io troppo,

quand’io procuro a’ mia maggior trestizia”.

Ele, que em cópia ardis tinha guardado,

Tornou: — “Sutil astúcia, na verdade,

Causar aos meus tormento redobrado!”

Alichin non si tenne e, di rintoppo

a li altri, disse a lui: “Se tu ti cali,

io non ti verrò dietro di gualoppo,

Dos outros contra o aviso, por vaidade,

Alichino lhe disse: — “Se abalares,

Não provarei de pés agilidade,

ma batterò sovra la pece l’ali.

Lascisi ’l collo, e sia la ripa scudo,

a veder se tu sol più di noi vali”.

“Hei de, voando, te agarrar nos ares.

Vamos do cimo e à riba retiremos:

Maravilha, se a tantos enganares!“

O tu che leggi, udirai nuovo ludo:

ciascun da l’altra costa li occhi volse,

quel prima, ch’a ciò fare era più crudo.

Leitor, logração nova contemplemos.

Já todos volvem de outro lado a vista:

Quem mais avesso assim primeiro vemos.

Lo Navarrese ben suo tempo colse;

fermò le piante a terra, e in un punto

saltò e dal proposto lor si sciolse.

O Navarro estudara-o como invista;

E arrancando, de súbito, ao betume

Se arroja e a liberdade então conquista.

Di che ciascun di colpa fu compunto,

ma quei più che cagion fu del difetto;

però si mosse e gridò: “Tu se’ giunto!”.

Da afronta sentem todos o azedume,

Inda mais quem motivo dera ao feito,

Gritando: — “Preso estás!” — salta do cume,

Ma poco i valse: ché l’ali al sospetto

non potero avanzar; quelli andò sotto,

e quei drizzò volando suso il petto:

Porém do medo se avantaja o efeito

Ao das asas: um baixa ao fundo presto,

No ar sustém-se o outro, alçando o peito.

non altrimenti l’anitra di botto,

quando ’l falcon s’appressa, giù s’attuffa,

ed ei ritorna sù crucciato e rotto.

Assim mergulha o pato na água lesto,

Quando avista o falcão: perdida a presa,

Se torna o caçador cansado e mesto.

Irato Calcabrina de la buffa,

volando dietro li tenne, invaghito

che quei campasse per aver la zuffa;

Calcabrina, da raiva na braveza,

Após o sócio voa, por ter briga,

Se a alma como deseja, vence empresa.

e come ’l barattier fu disparito,

così volse li artigli al suo compagno,

e fu con lui sopra ’l fosso ghermito.

Vendo que ao fundo o malfeitor se abriga,

As garras volta contra o companheiro:

Furor à luta sobre o lago o instiga.

Ma l’altro fu bene sparvier grifagno

ad artigliar ben lui, e amendue

cadder nel mezzo del bogliente stagno.

As unhas o outro, gavião ligeiro,

Lhe crava e, entrelaçando-se espantosos,

Tombam ambos no pez, de corpo inteiro.

Lo caldo sghermitor sùbito fue;

ma però di levarsi era neente,

sì avieno inviscate l’ali sue.

Separa o grão fervor os dois raivosos;

Em vão, porém, subir-se pretenderam,

Que as asas prendem borbulhões viçosos.

Barbariccia, con li altri suoi dolente,

quattro ne fé volar da l’altra costa

con tutt’i raffi, e assai prestamente

Os outros vendo o caso, se doeram:

Envia quatro o cabo diligente;

E de croques armados acorreram.

di qua, di là discesero a la posta;

porser li uncini verso li ’mpaniati,

ch’eran già cotti dentro da la crosta.

De um lado e de outro chegam velozmente.

Tendem farpões aos sócios enviscados,

Cozidos já naquela crusta ardente,

E noi lasciammo lor così ’mpacciati.

E desta arte os deixamos atalhados.

Canto XXIII

Canto XXIII, nel quale tratta de la divina vendetta contra l’ipocriti; del quale peccato sotto il vocabulo di due cittadini di Bologna abomina l’auttore li bolognesi, e li giudei sotto il nome d’Anna e di Caifas; e qui è la sesta bolgia.

Prosseguem os dois Poetas o seu caminho, descartando-se dos diabos. Vendo-os, porém, voltar novamente, Virgílio abraça-se com Dante e deixam-se resvalar pelo declive do precipício. Encontram os hipócritas vestidos de pesadas capas de chumbo dourado. Falam com dois frades, Catalano e Loderigo, bolonheses. Um dos frades, inquirido por Vigílio, indica-lhe o modo de subir ao sétimo compartimento.

Taciti, soli, sanza compagnia

n’andavam l’un dinanzi e l’altro dopo,

come frati minor vanno per via.

EM silêncio, a companha má deixada,

Seguíamos, após um do outro andando,

Como frades menores em jornada.

Vòlt’era in su la favola d’Isopo

lo mio pensier per la presente rissa,

dov’el parlò de la rana e del topo;

Meu pensamento à rixa se voltando,

A fábula de Esopo relembrava,

Em que ao rato arma a rã laço nefando.

ché più non si pareggia ’mo’ e ’issa’

che l’un con l’altro fa, se ben s’accoppia

principio e fine con la mente fissa.

Se aqueles casos dois eu confrontava,

Como issa e mo[1], iguais me pareciam,

Quando o princípio e fim seus recordava.

E come l’un pensier de l’altro scoppia,

così nacque di quello un altro poi,

che la prima paura mi fé doppia.

E, como os pensamentos se associam,

Outros logo daquele me brotaram,

Que em dobrado temor a alma envolviam.

Io pensava così: ’Questi per noi

sono scherniti con danno e con beffa

sì fatta, ch’assai credo che lor nòi.

Pensava: — esses demônios que passaram,

Por causa nossa, tal vergonha e dano,

Do fato certamente se enojaram.

Se l’ira sovra ’l mal voler s’aggueffa,

ei ne verranno dietro più crudeli

che ’l cane a quella lievre ch’elli acceffa’.

Se a maldade agravar rancor insano,

Eles no encalço nos virão ferozes,

Qual cão, que a lebre aboca enfim no plano.

Già mi sentia tutti arricciar li peli

de la paura e stava in dietro intento,

quand’io dissi: “Maestro, se non celi

Aguardando os horríficos algozes,

Arrepiam-se as carnes e o cabelo.

— “Ó Mestre meu, as garras temo atrozes!”

te e me tostamente, i’ ho pavento

d’i Malebranche. Noi li avem già dietro;

io li ’magino sì, che già li sento”.

Exclamo: — “Ache depressa o teu desvelo

Para nós contra o bando amparo e abrigo.

Após os passos nossos cuido vê-lo”.

E quei: “S’i’ fossi di piombato vetro,

l’imagine di fuor tua non trarrei

più tosto a me, che quella dentro ’mpetro.

“Se espelho eu fora, a imagem tua, amigo,

Tanto não refletira claramente,

Quanto às idéias na tua alma sigo.

Pur mo venieno i tuo’ pensier tra ’ miei,

con simile atto e con simile faccia,

sì che d’intrambi un sol consiglio fei.

“Agora iguais me estão surgindo à mente,

Concordes tanto nas feições, em tudo,

Que um parecer entre ambos há somente.

S’elli è che sì la destra costa giaccia,

che noi possiam ne l’altra bolgia scendere,

noi fuggirem l’imaginata caccia”.

“À destra inclina a encosta, ou eu me iludo:

Por lá baixando à mais vizinha cava,

Teremos contra assaltos seus escudo”.

Già non compié di tal consiglio rendere,

ch’io li vidi venir con l’ali tese

non molto lungi, per volerne prendere.

Não acabava, quando a turba prava

Assoma: de asas pandas se enviando

Contra nós, não mui longe a divisava.

Lo duca mio di sùbito mi prese,

come la madre ch’al romore è desta

e vede presso a sé le fiamme accese,

De súbito nos braços me tomando,

Qual mãe, que ao despertar se vê cercada

De furiosas flamas, e, apertando

che prende il figlio e fugge e non s’arresta,

avendo più di lui che di sé cura,

tanto che solo una camiscia vesta;

Ao seio o filho, foge acelerada,

E ao pudor véus esquece angustiosa,

Só por salvar aquela prenda amada:

e giù dal collo de la ripa dura

supin si diede a la pendente roccia,

che l’un de’ lati a l’altra bolgia tura.

Lá do cimo da riba alta e fragosa

Resvala o Mestre pela penha dura,

Muralha de outra cava tenebrosa.

Non corse mai sì tosto acqua per doccia

a volger ruota di molin terragno,

quand’ella più verso le pale approccia,

Água não corre mais veloz da altura

Por canal a impulsar de engenho a roda,

Quando, vizinha aos cubos, se apressura,

come ’l maestro mio per quel vivagno,

portandosene me sovra ’l suo petto,

come suo figlio, non come compagno.

Do que a descer o Guia meu se açoda,

Como a filho estreitando-me ao seu peito,

Não como a companheiro a quem se engoda.

A pena fuoro i piè suoi giunti al letto

del fondo giù, ch’e’ furon in sul colle

sovresso noi; ma non lì era sospetto:

Da cava, apenas atingira o leito,

Quando ao cimo os demônios se mostraram:

Mas de iras suas malogrou-se o efeito.

ché l’alta provedenza che lor volle

porre ministri de la fossa quinta,

poder di partirs’indi a tutti tolle.

Por lei da Providência terminaram

Funções, que exercem na caverna quinta,

Toda vez que o recinto seu deixaram.

Là giù trovammo una gente dipinta

che giva intorno assai con lenti passi,

piangendo e nel sembiante stanca e vinta.

Gente, que de brilhante cor se pinta

Vemos, que a tardo passo em torno andava;

Chorava e em forças parecia extinta.

Elli avean cappe con cappucci bassi

dinanzi a li occhi, fatte de la taglia

che in Clugnì per li monaci fassi.

Capa e capuz trazia, que ocultava

Seus olhos, dessa forma de vestidos

De Colônia entre os monges mais se usava.

Di fuor dorate son, sì ch’elli abbaglia;

ma dentro tutte piombo, e gravi tanto,

che Federigo le mettea di paglia.

De ouro por fora, dentro guarnecidos

De chumbo: comparando a peso tanto,

De palha os de Frederico eram tecidos[2].

Oh in etterno faticoso manto!

Noi ci volgemmo ancor pur a man manca

con loro insieme, intenti al tristo pianto;

Por toda a eternidade, ó duro duro manto!

Com tais almas, à sestra, caminhamos,

Atentos escutando o triste pranto.

ma per lo peso quella gente stanca

venìa sì pian, che noi eravam nuovi

di compagnia ad ogne mover d’anca.

Tanto as oprime o peso, que as passamos

No lento caminhar; e a cada instante

De nova companhia ao lado estamos.

Per ch’io al duca mio: “Fa che tu trovi

alcun ch’al fatto o al nome si conosca,

e li occhi, sì andando, intorno movi”.

“Mostra-me — eu disse ao Guia, suplicante —

Algum por nome ou feitos afamado;

Busca, sem te deter, Mestre prestante!” —

E un che ’ntese la parola tosca,

di retro a noi gridò: “Tenete i piedi,

voi che correte sì per l’aura fosca!

Tendo vozes toscanas escutado,

Um atrás nos gritou: — “Cessai da pressa,

Com que ides a correr pelo ar cerrado!

Forse ch’avrai da me quel che tu chiedi”.

Onde ’l duca si volse e disse: “Aspetta,

e poi secondo il suo passo procedi”.

“Cousa talvez direi, que te interessa”.

Volta-se o Mestre e diz-me: — “Agora espera;

Para o passo igualar-lhes não te apressa”.

Ristetti, e vidi due mostrar gran fretta

de l’animo, col viso, d’esser meco;

ma tardavali ’l carco e la via stretta.

Cessando, vejo um par que se acelera;

Seus gestos dizem que acercar-se aspiram,

Malgrado a estrada e o peso, que os onera.

Quando fuor giunti, assai con l’occhio bieco

mi rimiraron sanza far parola;

poi si volsero in sé, e dicean seco:

Aqueles dois, já próximos, remiram

Com vesgos olhos, sem falar, meu rosto;

Depois entre eles vozes tais se ouviram:

“Costui par vivo a l’atto de la gola;

e s’e’ son morti, per qual privilegio

vanno scoperti de la grave stola?”.

“O que respira ainda em vida é o posto?

Se mortos ambos são, por que motivo

Da plúmbea capa evadem-se ao desgosto?”

Poi disser me: “O Tosco, ch’al collegio

de l’ipocriti tristi se’ venuto,

dir chi tu se’ non avere in dispregio”.

E disseram: — “Toscano, que, inda vivo,

Vens de hipócritas ver o grêmio triste,

Dizer quem sejas, não recusa esquivo”.

E io a loro: “I’ fui nato e cresciuto

sovra ’l bel fiume d’Arno a la gran villa,

e son col corpo ch’i’ ho sempre avuto.

— “Nasci na grã cidade, à qual assiste

Com suas belas margens o Arno ameno,

E o corpo, em que hei crescido, lá persiste.

Ma voi chi siete, a cui tanto distilla

quant’i’ veggio dolor giù per le guance?

e che pena è in voi che sì sfavilla?”.

“Quem sois que da aflição tanto veneno

Na face amargo pranto denuncia?

Qual penar tendes de esplendor tão pleno?”

E l’un rispuose a me: “Le cappe rance

son di piombo sì grosse, che li pesi

fan così cigolar le lor bilance.

“Tanto chumbo se encobre” — um me dizia —

Destas capas sob o ouro, que oscilamos,

Qual balança, que ao peso hesitaria.

Frati godenti fummo, e bolognesi;

io Catalano e questi Loderingo

nomati, e da tua terra insieme presi

“De Bolonha e Godente, nos chamamos

Um Loderigo e o outro Catalano[3]:

Juntos ambos Florença governamos,

come suole esser tolto un uom solingo,

per conservar sua pace; e fummo tali,

ch’ancor si pare intorno dal Gardingo”.

“Por que ficasse a paz livre de dano.

Em vez de um regedor; do que hemos sido

O Gardingo dá prova e desengano”.

Io cominciai: “O frati, i vostri mali...”;

ma più non dissi, ch’a l’occhio mi corse

un, crucifisso in terra con tre pali.

“Ó irmãos” — comecei — “o mal nascido...”

Atalhei-me: jazendo um condenado

Com puas três em cruz via estendido.

Quando mi vide, tutto si distorse,

soffiando ne la barba con sospiri;

e ’l frate Catalan, ch’a ciò s’accorse,

Em vendo-me estorceu-se angustiado.

Altos suspiros arrancou do peito.

Catalano acercou-se apressurado.

mi disse: “Quel confitto che tu miri,

consigliò i Farisei che convenia

porre un uom per lo popolo a’ martìri.

“Este[4]” — disse — “que geme em duro leito,

Que a um homem dessem morte, aconselhara

Aos Fariseus, do povo por proveito.

Attraversato è, nudo, ne la via,

come tu vedi, ed è mestier ch’el senta

qualunque passa, come pesa, pria.

“Através do caminho é nu, repara:

De quem passa, desta arte, ele conhece

O peso, quando por calcá-lo pára.

E a tal modo il socero si stenta

in questa fossa, e li altri dal concilio

che fu per li Giudei mala sementa”.

“Igual martírio o sogro seu[5] padece,

Assim como cada um desse concilio,

Semente pra os Judeus de horrenda messe”.

Allor vid’io maravigliar Virgilio

sovra colui ch’era disteso in croce

tanto vilmente ne l’etterno essilio.

Maravilhar-se então mostrou Virgílio,

Posto em cruz o prescito contemplando

Com tanto opróbrio lá no eterno exílio,

Poscia drizzò al frate cotal voce:

“Non vi dispiaccia, se vi lece, dirci

s’a la man destra giace alcuna foce

Voltou-se a Catalano assim falando:

“Dizei, se assim vos apraz e é permitido,

Se à direita há vereda, onde, passando,

onde noi amendue possiamo uscirci,

sanza costrigner de li angeli neri

che vegnan d’esto fondo a dipartirci”.

Deste recinto vamo-nos temido,

Sem que os anjos perversos obriguemos

Caminho a nos mostrar não conhecido”.

Rispuose adunque: “Più che tu non speri

s’appressa un sasso che da la gran cerchia

si move e varca tutt’i vallon feri,

Tornou: — “Mais perto do que julgas temos

Rochedo, que, do muro se estendendo,

Dá ponte a cada val, em que gememos.

salvo che ’n questo è rotto e nol coperchia;

montar potrete su per la ruina,

che giace in costa e nel fondo soperchia”.

“Este não cobre, outrora se rompendo;

Mas subir podereis pela ruína,

Que do declive ao fundo se está vendo”.

Lo duca stette un poco a testa china;

poi disse: “Mal contava la bisogna

colui che i peccator di qua uncina”.

Ouvindo, o Guia um pouco a fronte inclina

E diz: — “Bem más explicações nos dava

Quem tanto os pecadores amofina”.

E ’l frate: “Io udi’ già dire a Bologna

del diavol vizi assai, tra ’ quali udi’

ch’elli è bugiardo e padre di menzogna”.

Logo o frade: “Em Bolonha me constava

Que o demônio, entre os vícios com que stenta,

De ser pai da mentira se ufanava”.

Appresso il duca a gran passi sen gì,

turbato un poco d’ira nel sembiante;

ond’io da li ’ncarcati mi parti’

A passo largo o Mestre já se ausenta;

Ira ressumbra o rosto carregado.

Deixa a turba, que em capas se atormenta,

dietro a le poste de le care piante.

As pegadas seguindo-lhe apressado.

Canto XXIV

Canto XXIV, nel quale tratta de le pene che puniscono li furti, dove trattando de’ ladroni sgrida contro a’ Pistolesi sotto il vocabulo di Vanni Fucci, per la cui lingua antidice del tempo futuro; ed è la settima bolgia.

Encaminham-se os Poetas pelo rochedo e chegam ao sétimo compartimento no qual estão os ladrões, os quais, picados por serpentes horríveis, inflamam-se e, depois, ressurgem das cinzas.