Assaz te seja esta certeza!”

Eis já começo da infernal geena
A ouvir os lamentos: sou chegado
27 Onde intenso carpir me aviva a pena.

Em lugar de luz mudo tenho entrado:
Rugia, como faz mar combatido
30 Dos ventos, pelo ímpeto encontrado.

Da tormenta o furor, nunca abatido,
Perpetuamente as almas torce, agita,
33 Molesta, em seus embates recrescido.

Quando à borda do abismo as precipita,
Ais, soluços, lamentos vão rompendo.
36 Blasfema a Deus a multidão maldita.

Ouvi que estão no padecer horrendo
Os que aos vícios da carne se entregavam,
39 Razão aos apetites submetendo.

Quais estorninhos, que a voar se travam
Em densos bandos na estação já fria,
42 Em rodopio as almas volteavam,

Ao capricho do vento, que as trazia.
De pausa não, de menos dor a esp’rança
45 Conforto lhes não dá nessa agonia.

Como nos ares longa série avança
De grous, que vão cantado o seu grasnido,
48 Assim no gemer seu, que não descansa,

Traz o tufão as sombras desabrido.
— “Mestre” — disse eu — “quais almas são aquelas
51 Que o vendaval fustiga denegrido?”

— “A primeira” — tornou Virgílio — “entre elas
De quem notícias ter desejarias,
54 Regeu nações, diversas nas loquelas.

“De luxúria fez tantas demasias
Que em lei dispôs ser lícito e agradável
57 Para desculpa às torpes fantasias.

“Semíramis chamou-se: o trono estável
Herdou de Nino e foi a sua esposa.
60 Do Soldão teve a terra memorável.

“A morte deu-se a outra, de amorosa,
Às cinzas de Siqueu traidora e infida;
63 Cleópatra após vem luxuriosa”.

Helena vi, a causa fementida
De tanto mal, e Aquiles celebrado
66 Que teve por amor a extrema lida.

Páris, Tristão e um bando assinalado
De sombras me indicou, nomes dizendo,
69 Que à sepultura amor tinha arrojado.

A compaixão me estava confrangendo,
Dessas damas e antigos cavaleiros
72 Nomes ouvindo e mágoas conhecendo.

Então disse eu: — “Poeta, aos companheiros
Dois, que ali vêm, falar muito desejo:
75 Ao vento ser parecem tão ligeiros!”

“Hás de ter” — me tornou — “asado ensejo,
Quando forem mais perto; então lhes pede
78 Pelo amor que os uniu: virão sem pejo”. —

Quando acercar-se o vento lhes concede
A voz alcei: — “Ó! vinde, almas aflitas,
81 Falar-nos, se alta lei não vo-lo impede”. —

Quais pombas, que saudosas de asas fitas,
Ao doce ninho, em voo despedido,
84 Vão pelo ar, aos desejos seus adstritas:

Tais saíram da turba, em que era Dido,
A nós as duas sombras se inclinando,
87 Tanto as moveu da voz o tom sentido!

— “Entre beni’no, compassivo e brando,
Que nos vem visitar por este ar perso,
90 Tendo nós dado o sangue ao mundo infando,

“Se amigo o Senhor fosse do universo,
Da paz aos rogos nossos, gozarias,
93 Pois te enternece o nosso mal perverso.

“Enquanto o vento é quedo, o que dirias
Havemos nós de ouvir atentamente;
96 Diremos quanto ouvir desejarias.

“Onde, a paz desejando, o Pado ingente
Com seus vassalos para o mar descende,
99 A terra, em que hei nascido, está jacente.

“Amor, que os corações súbito prende,
Este inflamou por minha formosura,
102 Que roubaram-me: o modo inda me ofende.

“Amor, em paga exige igual ternura,
Tomou por ele em tal prazer meu peito,
105 Que, bem o vês, eterno me perdura.

“Amor nos igualou da morte o efeito:
A quem no-la causou, Caína, esperas”.
108 Após tais vozes foi silêncio feito.

Daquelas almas as angústias feras
Em meditar amargo a fronte inclino
111 Té que o Mestre exclamou: “Que consideras?”

Quando pude, falei: “Cruel destino!
Que doce cogitar! Que meigo encanto,
114 Precederam do par o fim maligno!” —

Aos dois voltei-me e disse-lhes, entanto:
“Teus martírios, Francesca, me angustiam,
117 Movem-me o triste, compassivo pranto.

“Quando os doces suspiros só se ouviam,
Como, em que Amor mostrar-vos há querido
120 Os desejos, que ainda se escondiam?” —

— “Não há” — disse — “tormento mais dorido
Que recordar o tempo venturoso
123 Na desgraça. Teu Mestre o tem sentido.

“Mas porque de saber és desejoso,
Como nasceu a flor do nosso afeto,
126 Direi chorando o lance lastimoso.

“Por passatempo eu lia e o meu dileto
De Lanceloto extremos namorados;
129 Éramos sós, de coração quieto.

“Nossos olhos, por vezes encontrados,
Cessam de ler; ao gesto a cor mudara.
132 Um ponto só deu causa aos nossos fados.

“Ao lermos que nos lábios osculara
O desejado riso, o heroico amante,
135 Este, que mais de mim se não separa,

“A boca me beijou todo tremante,
De Galeotto fez o autor e o escrito.
138 Em ler não fomos nesse dia avante”.

Enquanto a história triste um tinha dito,
Tanto carpia o outro, que eu, absorto
Em piedade, senti letal conflito,

142 E tombei, como tomba corpo morto.

 

4. Minos, rei de Creta e que na mitologia pagã era juiz do Inferno. — 58. Semíramis, rainha de Babilônia, viúva do rei Nino. — 61. Dido, rainha de Cartago, que amou a Enéias. — 63. Cleópatra, rainha do Egito. — 64.Helena, mulher de Menelau, rei de Esparta que causou a guerra de Troia. — 67. Páris e Tristão, cavaleiros dos romances medievais. — 73. Companheiros dois, Francesca de Rimini e Paulo Malatesta, que foram mortos por Gianciotto Malatesta, marido de Francesca e irmão de Paulo, por eles terem ficado apaixonados um pelo outro.

 

 

[VI]

No terceiro círculo estão os gulosos, cuja pena consiste em ficarem prostrados debaixo de uma forte chuva de granizo, água e neve, e ser dilacerados pelas unhas e dentes de Cérbero. Entre os condenados Dante encontra Ciacco, florentino, que fala com Dante acerca das discórdias da pátria comum.

 

DO soçobro tornando a aflita mente,
Que da cópia infelice contristado
3 Havia tanto o padecer pungente,

Achei-me novamente circundado
De outros míseros, de outras amarguras,
6 Que via em toda parte, ao longe e ao lado.

Sou no terceiro círculo, onde escuras,
Eternas chuvas, gélidas caíam,
9 Pesadas, sempre as mesmas, sempre impuras.

Saraiva grossa, neve, água desciam
Desse ar pelas alturas tenebrosas:
12 No chão caindo infeto odor faziam.

Latia com três fauces temerosas,
Cérbero, o cão multíface e furente,
15 Contra as turbas submersas, criminosas.

Sanguíneos olhos tem, o ventre ingente,
Barba esquálida, as mãos de unhas armadas;
18 Rasga, esfola, atassalha a triste gente.

Uivam à chuva, quais lebréus, coitados!
Mudam de lado sem cessar, buscando
21 Defensa e alívio, as almas condenadas.

Cérbero, o grão réptil, nos divisando
Os dentes mostra, as bocas escancara,
24 De sanha os membros todos convulsando.

Meu Guia, as mãos abrindo, se prepara:
Enche-as de terra, e às guelas devorantes
27 Lança da fera essa iguaria amara.

Qual mastim, que em latidos retumbantes
Brada de fome, e, apenas a sacia
30 Devorando, aquieta as iras de antes:

Tal, aplacando a fúria, parecia
O demônio que as almas atordoa:
33 Surdez de ouvi-lo o mal lhes pouparia.

O solo, onde pisamos, se povoa
Das sombras, que essas chuvas derrubavam:
36 Forma e aparência tinham de pessoa.

Sobre a terra estendidas, a alastravam;
Mas uma surge, súbito sentada,
39 Aos passos que adiante nos levavam.

“Tu” — disse — “que és guiado pela estrada
Do inferno, vê se acaso me conheces:
42 Nasceste antes de eu ser nesta morada”.

Tornei-lhe: “A grande angústia em que padeces,
Tua feição lembrar-me não consente:
45 Inota face aos olhos me ofereces.

“Quem és que em tal lugar tão duramente
Pelos pecados teus stás dando a pena?
48 Se há maior, nenhuma é tão displicente”. —

— “Em tua pátria” — responde — “que tão plena
Já é de inveja, que transborda o saco,
51 Existência gozei leda e serena.

“Vós, Florentinos, me chamastes Ciacco:
Por ter da gula a intemperança amado,
54 À chuva peno enregelado e fraco.

“Mas sou nesta miséria acompanhado;
Pois quantos aqui estão de igual castigo
57 Punidos foram por igual pecado”. —

— “Com dor sincera” — lhe falei — “te digo
Que esse tormento o peito me enternece.
60 Saberás se os partidos a perigo

“Florença levarão, que já padece?
Algum justo ali vive? A que motivo
63 A cizânia se deve, que ali cresce?” —

— “Virão a sangue após ódio excessivo;
E o partido selvagem triunfante
66 O outro lançará feroz e esquivo.

“Três sóis passados, chegará o instante
De ser pelos vencidos suplantado,
69 Que esforça alguém, que aos dois faz bom semblante.

“Por algum tempo o vencedor ousado
A cerviz calcará do outro partido
72 Que se aflige oprimido e envergonhado.

“Justos há dois: ninguém lhes presta ouvido.
Três brandões — Avareza, Orgulho, Inveja,
75 Incêndio têm nos peitos acendido”. —

Assim a flébil narração boqueja.
Eu lhe respondo: “A informação completa;
78 Favor farás a quem te ouvir almeja.

“Farinata e Tegghiaio, de alma reta,
Jacopo Rusticucci, Mosca, Arrigo,
81 E os mais que da virtude o amor inquieta,

“Onde estão? Diz e franco sê comigo!
Saber qual seja anelo a sorte sua:
84 Stão no céu, ou no inferno têm castigo?” —

“Entre os que sofrem punição mais crua
Estão, por seus maus feitos, lá no fundo:
87 Se lá desces, verão a face tua.

“Quando tomares ao saudoso mundo,
De mim aviva aos meus o pensamento...
90 Não mais: volto ao silêncio meu profundo” —

Os olhos que não tinham movimento,
Torcendo fita em mim; já curva a frente
93 E cai entre os mais cegos num momento.

E disse, o Vate: “Em sono permanente
Hão de aguardar a angélica chamada,
96 Quando os julgar severo o Onipotente.

“Cad’um, a triste sepultura achada,
Ressurgindo na carne e na figura,
99 Voz ouvirá pra sempre reboada”. —

A passo lento assim pela mistura
Das sombras e da chuva caminhando,
102 Falávamos da vida, que é futura.

— “Mestre” — lhe disse então — “irá medrando
Depois da grã sentença esse tormento?
105 Igual pungir terá? Será mais brando?” —

— “Do teu saber recorre ao documento:
Verás que ao ente quando mais se eleva
108 Do bem, da dor mais cresce o sentimento.

“Bem que esta raça condenada à treva
Jamais da perfeição se eleve à altura
111 Ressurgindo, há de ter pena mais seva”. —

Perlustramos do círculo a cintura,
De cousas praticando que não digo,
Té descer um degrau na estância escura.

115 Ali’stá Pluto, o nosso grande imigo.

 

14. Cérbero, monstro, meio cão, meio dragão, com três cabeças, que, segundo a mitologia antiga, estava à guarda do inferno. — 52. Ciacco, parasita florentino. — 65. O partido selvagem, os Brancos. — 80. Farinata etc., nomes de florentinos ilustres.

 

 

[VII]

Pluto, que está de guarda à entrada do quarto círculo, tenta amedrontar a Dante com palavras irosas. Mas Virgílio o faz calar-se, e conduz o discípulo a ver a pena dos pródigos e dos avarentos, que são condenados a rolar com os peitos grandes pesos e trocarem-se injúrias. Os Poetas discorrem sobre a Fortuna, e, depois, descem ao quinto círculo e vão margeando o Estiges, onde estão mergulhados os irascíveis e os acidiosos.

 

PAPE Satan, pape Satan, aleppe:
Pluto com rouca voz, ao ver-nos brada.
3 Para que eu do conforto não discrepe,

Virgílio, em tudo sábio: — “Da aterrada
Mente” — me diz — “se desvaneça o susto!
6 Poder Pluto não tem, que tolha a entrada”.

E, se volvendo ao vulto, de ira adusto,
Lhe grita: — “Cal’-te, ó lobo abominoso!
9 Em ti consome esse furor injusto!

“Se ao abismo descemos tenebroso,
A lei se cumpre do alto, onde, em castigo,
12 Suplantara Miguel bando orgulhoso”. —

Como o mastro, abatendo, traz consigo
Velas, que o vento de feição tendia,
15 Baqueou-se por terra o monstro imigo.

E, pois que o quarto círculo se abria,
Mais penetramos pela estância horrenda,
18 A que todo seu mal o mundo envia.

Ah! justiça de Deus! Que lei tremenda,
Dores, penas, quais vi, tanto amontoa?
21 Por que da culpa nos obceca a venda?

Como em Caribde a vaga que ressoa
Embate noutra, e quebram-se espumantes:
24 Assim turba com turba se abalroa.

Almas em cópia, nunca vista de antes,
Fardos de um lado e de outro, em grita ingente,
27 Rolavam com seus peitos ofegantes.

Batiam-se encontrando rijamente,
E gritavam depois, atrás voltando:
30 “Por que tens?” “Por que empurras loucamente?”

Assim no tetro círc’lo volteando
Iam de toda parte ao ponto oposto,
33 Por injúria o estribilho apregoando.

Nos semicírc’lo novamente rosto
Faziam, té o embate reiterarem.
36 Eu, me sentindo à compaixão disposto,

— “Quem são? Que razão há para aqui estarem?”
Ao Mestre disse — “À esquerda os colocados
39 Clérigos são para tonsura usarem?”

— “Da mente sendo vesgos, transviados”
— Tornou — “andaram na primeira vida,
42 Sempre os bens aplicando desregrados.

“Quem seus clamores ouve não duvida:
Levantam grita aos termos dois chegados,
45 Onde oposta os separa a culpa havida:

“Os que então de cabelos despojados
Clérigos, papas, cardeais hão sido,
48 Pela nímia avareza subjugados”. —

— “Entre eles” — respondi — “Mestre querido,
Muitos serão, por certo, que eu conheça,
51 Imundos desse mal aborrecido”. —

— “Te enganas, quando assim — diz — “te pareça:
Da sua ignóbil vida a oscuridade
54 Vestígio não deixou, que ora apareça:

“Eles se hão de embater na eternidade:
Ressurgindo, uns terão as mãos fechadas,
57 Os outros de cabelos pouquidade.

“Por dar mal, por mal ter, viram cerradas
Do céu as portas; penam nesta lida,
60 Com mágoas, que não podem ser contadas.

“Vês quanto é de vaidade iludida
A ambição, em que os homens a porfiam,
63 Da Fortuna anelando os bens na vida.

“Todo o ouro, que as entranhas conteriam
Da terra, não pudera dar repouso
66 A um dos que em fadiga se cruciam”. —

— “Quem é Mestre” — falei — “o portentoso
Ser, que chamas Fortuna, que à vontade
69 Bens distribui ao mundo cobiçoso?” —

Responde o Vate: — “Ó cega humanidade,
Quanta ignorância a mente vos ofende.
72 Do meu pensar direi toda a verdade.

“Quem pelo seu saber tudo transcende,
Os céus criando, guias elegeu-lhes;
75 E toda parte a toda parte esplende,

“Pela luz que igualmente concedeu-lhes.
Assim fez aos mundanos esplendores,
78 Geral ministra e diretora deu-lhes,

“Que em tempo os bens mudasse enganadores
De nação a nação, de raça a raça
81 Contra esforços de humanos sabedores.

“A pujança de um povo é grande ou escassa
Segundo o seu querer, que, se escondendo
84 Qual serpe em erva triunfante passa.

“Contra ela o saber vosso não valendo,
No seu reino ela tem poder e mando,
87 Como os outros o seu, estão regendo.

“Mudanças incessante efetuando,
Se apressa por fatal necessidade,
90 E assim tantas no mundo vai formando.

“Tal é Fortuna, a quem por má vontade
Insulta o que louvá-la deveria,
93 Censurando-a com dura iniquidade.

“Mas, feliz, não escuta a vozeria,
E entre iguais criaturas primitivas,
96 Volvendo a esfera, em paz goza alegria.

“Desçamos ora a dores mais esquivas;
Estrelas baixam, que ao partir surgiram;
99 Demoras são defesas, são nocivas”. —

Os nossos passos através seguiram
Do círculo até fonte, que, fervendo,
102 As águas brota, que torrente abriram,

A cor mais negra do que persa tendo.
Ao longo do seu curso nós baixamos,
105 Por caminho diverso nos movendo.

Lagoa, dita Stígia, deparamos,
Junto à encosta maligna produzida
108 Pelo triste ribeiro, que notamos.

Eu, que tinha a atenção toda embebida,
Vi sombras, nesse pântano, lodosas,
111 Desnudas, de face enfurecida.

Não só co’as mãos batiam-se raivosas;
Peitos, cabeças, pés armas lhes sendo,
114 Com dentes laceravam-se espantosas.

— “As almas, filho meu, que ora estás vendo
São dos que” — disse o mestre — “venceu ira.
117 Como certo também fica sabendo

“Que sob as águas multidão suspira,
E em borbulhões as águas entumece
120 Por toda essa extensão, que vista gira”. —

— “Nos doces ares, a que o sol aquece”
— No ceno imersas dizem — “tristes fomos:
123 Dentro em nós fumo túrbido recresce.

“Ora no lodo inda mais triste somos”. —
Com voz cortada assim gargarejavam,
126 De palavras somente havendo assomos.

“Os passos, em grande arco, nos levavam.
Do paul sobre a borda seca; o bando,
Tendo à vista, que assim lodo tragavam,

130 E junto de uma torre alfim chegando.

 

1. Pape Satan etc., verso obscuro. Muitos comentadores o entendem: “Como Satã, como Satã, príncipe do Inferno”... um mortal ousa penetrar aqui?” — 30. Por que etc.