Bento, o grão mosteiro
102 Que dar a mil pudera asilo brando:
Assim desde um penhasco sobranceiro
Da água rubra troava alto estampido,
105 Que fora de surdez risco certeiro.
De uma corda eu me achava então cingido
Com que outrora prender quis a pantera,
108 De pelo em malhas várias repartido.
Que a tirasse Virgílio me dissera:
Eu descingi-me presto, lha entregando
111 Enrolada, como ele prescrevera.
Então ele à direita se voltando,
A distância da borda alcantilada
114 Lançou-a longe para o abismo infando.
— “Àquela ação não de antes praticada,”
— Pensei — “há de seguir-se estranho efeito,
117 Que do Mestre a atenção tem despertada”. —
Quanta cautela deve haver e jeito,
Tratando-se com quem vê não somente
120 Os atos, mas também o que há no peito!
— “Surgirá” — disse o Mestre — “brevemente
O que espero: o que tens no pensamento
123 Logo aos teus olhos ficará patente.”
Verdade, que pareça fingimento,
Evita proferir homem discreto:
126 Sofre desar, de culpa estando isento.
Nada posso omitir, leitor dileto:
Desta comédia pelos cantos juro
129 (Sejam assim de longo aplauso objeto!)
Que subir por aquele ar grosso, escuro
Nadando vi figura temerosa
129 Ao peito mais intrépido e seguro:
Tal quem desceu pela onda perigosa
A desprender de ocultos embaraços,
Lá no fundo, a fateixa vagarosa,
136 Subindo, encolhe as pernas, tende os braços.
38. Guido Guerra, florentino, combateu em Montaperti. — 40. Tegghiaio Atdobrandi, também patriota florentino. — 44. Jacopo Rusticucci, valoroso cavaleiro florentino que combateu também na batalha de Montaperti. — 70.Guilherme Borsiere, gentil-homem florentino. — 135. Fateixa, pequena âncora.
[XVII]
Enquanto Virgílio fala com Gerion, para convencer essa horrível fera a levá-los ao fundo do abismo, Dante se aproxima das almas dos violentos contra a arte. Dante reconhece alguns deles. A cada um pende do peito uma bolsa na qual são desenhadas as armas da sua família. Volta depois o Poeta para o lugar onde está Virgílio, que assentado já sobre o dorso de Gerion, põe-no diante de si, e assim descem ao oitavo círculo.
“EIS a fera, que a horrenda cauda enresta,
Que arneses, montes, muros atravessa
3 E com seu bafo impuro o mundo empesta!”
Assim Virgílio a me falar começa.
Para acercar-se logo lhe acenava
6 Ao marmóreo anteparo que ali cessa.
Da fraude o vulto imundo aproximava!
A cabeça avançou e o torpe busto,
9 Porém pendente a cauda lhe ficava
A cara assomos tinha de homem justo,
Tanto era o parecer beni’no e brando!
12 No mais serpe, movia horror e susto.
Grandes, hirsutos braços dilatando,
Alçava peito, ilhais, dorso malhados,
15 Mil rodelas e nós se entrelaçando.
Mais cores nos estofos recamados
Tártaros, Turcos nunca misturaram,
18 Nem Aracne em tecidos variegados.
Como os batéis, que à praia se amarram,
No mar a popa têm, a proa em terra;
21 E, como em regiões, que se deparam
Sob o voraz Tudesco, a fazer guerra
Embosca-se o castor: assim se via
24 O monstro à orla, que as areias cerra.
No ar a extensa cauda revolvia;
E a venenosa ponta bipartida,
27 Do escorpião qual dardo, se erigia
“Té onde a fera atroz jaz estendida.
Convém seja o caminho desviado
30 Da senda” — disse o Vate — “prosseguida” —
Descendo, pois, pelo direito lado
Para o fogo fugir e a areia ardente
33 Passos dez pela borda hemos andado.
Chegados nós de Gerião em frente,
Um tanto além sentado um bando achamos
36 Na areia, perto desse abismo ingente.
— “Do recinto por teres, em que estamos” —
Virgílio disse — “a experiência inteira
39 A sorte vai saber dos que avistamos.
“Os discursos, porém, filho aligeira.
Entanto impetrarei da fera infanda
42 Que prestar-nos seus ombros fortes queira”. —
Só pela borda, como o Vate manda,
Vou do círculo sétimo seguindo,
45 Dos mestos pecadores em demanda.
A dor, que brota em lágrimas, sentindo,
Socorre-se das mãos a aflita gente
48 Contra o solo e o vapor, que está caindo.
Assim lebréus, durante a calma ardente
Dos dentes e unhas valem-se, mordidos
51 De tavões por enxame impertinente.
Quando encarei nos rostos doloridos
De alguns, que os fogos tanto cruciavam,
54 Que eram todos achei desconhecidos.
Bolsas pendentes dos seus colos stavam,
Pelos sinais distintas, pelas cores:
57 Contemplando-as, seus olhos se enlevavam.
E vi já me acercando aos pecadores
Bolsa, na qual em campo de ouro havia
60 Azul, que era leão nos seus lavores,
A vista, que já noutra se embebia,
Em sanguíneo rubor ganso eu notava,
63 Que a brancura do leite escurecia.
Grávida, azul jardava um, que ostentava,
Broslada sobre cândida escarcela,
66 — “Que buscas neste abismo?” perguntava.
“Retira-te! Se a vida gozas bela,
Sabe que à sestra mão Vitaliano,
69 Vizinho meu terá condigna sela.
“Entre estes Florentinos sou Paduano;
A todo instante aturdem-me os ouvidos,
72 Bradando: — O nobre venha, o soberano,
“Que os três bicos na bolsa traz sculpidos”. —
Depois, torcendo a boca, a língua tira,
75 Qual boi, que os beiços lambe, ressequidos.
Não querendo mover desgosto ou ira
Em quem mor brevidade me ordenara,
78 Os mesquinhos deixei: assaz ouvira.
Disse-me o Guia então, que cavalgara
O dorso do animal fero e possante:
81 “Sê forte, a tudo o ânimo prepara!
“Se desce em tal escada de ora avante;
Sobe-te ao colo; ao meio irei sentado:
84 Que não te ofenda a cauda penetrante.”
De quartã qual doente, que, chegado
Supondo o acesso, lívido estremece
87 Somente ao ver lugar fresco, assombrado
Tal quando ouvi, meu peito, desfalece.
Ante o Mestre dá-me o pejo alento:
90 Bom amo o servo esforça que esmorece.
Já sobre a espalda do animal cruento,
Quero ao vate gritar: “Senhor, me abraça!”
93 A voz, porém, não corresponde ao intento.
Ele, que a mente espavorida e lassa
Em circuito mais alto me animara,
96 Sustendo-me, nos braços seus me enlaça,
E disse a Gerião: “Vai, mais não para.
Em circuitos largos sem ter pressa:
99 Na carga, que ora tens, nova repara!” —
Bem como esquife, que voar começa,
Manso e manso recua: assim moveu-se.
102 Quando ao largo sentiu-se, eis endereça
A cauda aonde o peito seu tendeu-se.
Meneando-a, a retesa como enguia;
105 Das patas agitado o ar fendeu-se.
Feton, quando as rédeas já perdia,
Ao ver do céu o incêndio, ainda aparente;
108 Ícaro, quando lhe cair sentia
Da cera cada pluma ao sol ardente,
Gritando o pai; — “Ai! filho! Erraste a strada!”
111 De pavor não se entraram mais veemente,
Do que eu nessa viagem desusada,
No ar quando me vi, quando enxergava
114 Só a cerviz da fera maculada:
Com tardo movimento ela nadava,
Que gira e baixa pelo vento eu sinto
117 Que em torno ao rosto e abaixo se agitava.
Já ouvia à direita bem distinto,
Troar da catadupa fragorosa:
120 Olhos inclino ao fundo do recinto.
A mente estremeceu mais temerosa
Ao chamejar de fogo, ao som de pranto:
123 Encolhi-me ante a cena pavorosa.
De que descia então, com mor espanto,
Pelos males, que via, fiquei certo,
126 A mim se avizinhar a cada canto.
Qual falcão que no ar pairava incerto,
Sem ver reclamo ou cobiçada presa
129 Perdida a esp’rança ao caçador esperto,
Descamba, fatigado e sem presteza,
Em voltas mil por onde se arrojara,
132 E longe pousa, ou de ira, ou de tristeza:
Tal Gerião, enfim, no fundo para
Ao pé da penedia alcantilada,
Livre do peso já que carregara,
136 Sumiu-se como seta disparada.
18. Aracne, personagem da mitologia grega, transformada por Minerva em aranha. — 68. Vitaliano, usurário paduano, ainda vivente. — 72. O nobre venha, Giovanni Baiamonti, florentino, que tinha como brasão três bicos de pássaro. — 106. Feton, filho de Apolo, que, no guiar o carro do Sol, precipitou-se. — 108. Ícaro, filho de Dédalo, que voando com as asas de cera fabricadas pelo pai, precipitou ao solo.
[XVIII]
Encontram-se os Poetas no oitavo círculo, chamado Malebolge, o qual é dividido em dez compartimentos concêntricos. Em cada um deles é punida uma espécie de pecadores, condenados por malícia ou fraude. No primeiro compartimento são punidos com açoites pela mão de demônios os alcoviteiros; e entre eles Dante reconhece Venedico Caccianemico e Jasão. No segundo jazem em esterco os aduladores e as mulheres lisonjeiras, entre outros, Alessio Interminelli, de Lucca e Taís.
TEM o inferno, de rocha construído,
De férrea cor, de muro igual cercado
3 Um lugar: Malebolge o nome havido.
Lá no centro do plaino inficionado
Se escancara grão poço, amplo e profundo:
6 Direi a compostura em tempo asado.
Espaço em torno estende-se rotundo
Entre o poço e o penhasco pavoroso:
9 Reparte-se em dez cavas o seu fundo.
Qual de fossos dobrados, cauteloso,
Se apercebendo, o alcáçar se assegura
12 Dos assaltos de imigo poderoso:
De abismos tais o aspecto se afigura.
Como da levadiça ponte entrada,
15 Aos de fora, do mundo na cintura,
Assim, do val no fundo começada,
Cada cava uma rocha atravessava
18 Em arco, para o poço concentrada.
De nós o monstro aqui se descargava:
À sestra mão seguiu logo o poeta,
21 E eu de perto fiel o acompanhava.
Novo tormento à destra me inquieta,
Novos algozes vejo, novas dores,
24 De que a primeira cava era repleta.
Stão lá no fundo nus os pecadores:
Do meio contra nós muitos caminham,
27 Outros conosco, em passos já maiores.
Em Roma, assim, às turbas, que se apinham
Do jubileu no tempo, sobre a ponte
30 Se abriu aos que iam trânsito e aos que vinham:
De um lado andavam, os que tendo em fronte
O castelo, a S. Pedro se endereçam,
33 E do outro lado os que iam para o monte.
Daqui, dali nas bordas, os apressam
Cornígeros demônios, açoitando
36 Com grandes azorragues, que não cessam,
Como aos golpes primeiros cada bando
Se apressa! Como cada qual evita
39 Que se repita o estímulo execrando!
Nesse andar minha vista num se fita,
Da parte oposta vindo, e logo eu disse:
42 — “Hei conhecido esta figura aflita”. —
Atentei mais, por que melhor o visse;
Deteve-se comigo o doce Guia
45 E deu que atrás o passo eu dirigisse.
Aos olhos esquivar-se-me queria,
Os seus baixando; mas foi vão o intento.
48 —“Tu, que te curvas, já te hei visto um dia.
“Se as feições não mudou-te o passamento
Venedico tu és Caccianemico.
51 Por que trato padeces tão cruento?” —
— “De mau grado o que exiges significo;
Mas cedo ao claro som dessa loquela,
54 Que à memória me traz o mundo inico.
“Eu fui aquele, que Ghisola bela
Do Marquês entreguei ao vil desejo:
57 Ora a verdade a minha voz revela.
“Comigo de Bolonha muitos vejo;
Com tantos nesta cava choro e peno,
60 Que a menos lá no mundo dá-se ensejo.
“De dizer sipa entre o Savena e o Reno,
Se a prova queres, lembra-te somente
63 De que em nós da avareza influi veneno”. —
Mas um demônio o atalhou. Furente,
Disse tangendo: — “Ó rufião, avante!
66 Mulher não há que vendas impudente!” —
Ao Mestre me tornei; — pouco distante
Era um rochedo, a que nos acercamos;
69 Da riba se elevava pra diante.
Assaz ligeiramente nos alçamos;
Fomos pela fragura à mão direita
72 E o eterno recinto assim deixamos.
Chegados onde a curva estava feita
Para passagem dar aos fustigados,
75 O sábio Guia disse: — “A face espreita
“Agora desses outros malfadados,
Em que ainda atender não conseguiste,
78 Porque não stavam para nós voltados”. —
Da antiga ponte divisamos triste,
Longa fileira: contra nós andava.
81 Cruel açoite em flagelar persiste.
Virgílio, quando eu nada perguntava,
— “Repara bem” — me diz — “na sombra altiva,
84 A quem pranto de dor faces não lava.
“De Rei conserva a majestade viva!
É Jasão: conquistou por força e manha
87 O velocino em Colcos fera e esquiva.
“A Lenos foi, depois que horrenda sanha
Feminil aos varões cortara a vida,
90 Nenhum poupando aquela fúria estranha.
“Ali, de amor no enlevo embevecida,
Hipsífile enganou, que já iludira
93 Suas irmãs, de compaixão movida.
“Grávida e só deixou-a: atroz mentira
Mereceu-lhe dos tratos a amargura.
96 Vingada está Medéia, a quem traíra.
“Quem perjurou como ele, há pena dura.
Do val primeiro baste o que sabemos
99 E de quantos aqui sofrem tortura”. —
Numa estreita vereda já nos vemos,
Que co’a borda segunda se cruzava,
102 Sustentando outra ponte, a que tendemos.
Turba dali ouvimos, que chorava
De outra cava no encerro e que, assoprando,
105 Com suas próprias mãos se arrepelava.
Estava-lhe as paredes incrustando
A exalação que sobe e ali se prende.
108 Ferindo o olfato e a vista horrorizando.
E tanto pelo abismo a cava estende,
Que só divisa quando está no fundo
111 Quem lá do cimo, perscrutando, atende.
Subimo-nos: então no fosso imundo
Vi gente em tal cloaca mergulhada,
114 Que a sentina figura ser do mundo.
Enquanto olhava ali tão conspurcada
Cara notei, que distinguir não pude,
117 Se padre ou leigo fora a alma danada.
— “Dizei por que tua vista não se mude
De mim, a imundos tantos desatenta!” —
120 Gritou-me. — E eu: — “Se a mente não me ilude,
“Te vi sem cabeleira tão nojenta.
Alessio Interminei de Lucca hás sido:
123 Em ti por isso a vista é mais atenta”. —
Ferindo a face, disse-me o descrido:
— “Aqui lisonjas vis me submergiram;
126 Língua indefessa em bajular hei tido”. —
Logo depois que vozes tais se ouviram,
Meu Guia: — “Olhos dirige um pouco avante,
129 E as feições me declara se atingiram
“De mulher desgrenhada e petulante
Que de unhas asquerosas se lacera,
132 Mudando de postura a cada instante.
“É Taís, a meretriz, que respondera
Ao namorado seu, quando dizia:
— “Te devo gratidão?” — “Muita e sincera!” —
136 Mas vamos: temos visto em demasia”. —
50. Venedico Caccianemico, bolonhês, que induziu sua irmã Ghisola a entregar-se a Obizzo d’Este, marquês de Ferrara. — 61. Dizer sipa etc., palavra do dialeto bolonhês que vale por sim ou seja. — 86. Jasão, chefe dos argonautas, que, auxiliado por Medéia, que ele seduziu e depois enganou, conquistou em Cólquida o velocino de ouro.
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