Não havia nada mais a fazer a respeito disso. Simplesmente existia; tinha nascido com a primeira pergunta direta que ela lhe fizera à luz do outono lá em Weatherend. A forma verdadeira que deveria ter assumido, nas bases que se impunham, era a do casamento. Mas o diabo era que as próprias bases afastavam qualquer possibilidade de casamento. Sua convicção, sua apreensão, sua obsessão, em suma, não era um privilégio do qual se podia convidar uma mulher a participar; e este era exatamente o seu problema. Alguma coisa estava lá, a esperá-lo, nas curvas e torneiros dos meses e dos anos, como uma fera à espreita na selva. Pouco importava se a fera na tocaia deveria matá-lo ou ser morta. O ponto definitivo era o bote inevitável do animal; e a lição definitiva era que um homem sensível não impõe a si mesmo ser acompanhado por uma senhora numa caçada de tigres. Esta era a imagem de sua vida, que ele acabara delineando.
Não obstante, nos raros momentos que passavam juntos, eles a princípio não haviam feito alusão alguma a esta maneira de ver as coisas; uma prova, a qual ele estava sempre amavelmente disposto a dar, de que não esperava – de fato não se importava – que estivessem sempre a falar sobre isto. Tal característica, na aparência de alguém, era realmente como ter uma corcunda. A diferença se impunha a todo minuto, independentemente de qualquer conversa. Conversava certamente como um corcunda, pois havia sempre, pelo menos, a cara do corcunda. Esta permanecia, e sua amiga o observava; mas as pessoas em geral observavam melhor em silêncio, de modo que esta era a forma que predominava na vigilância dos dois. Ao mesmo tempo, ele não queria ficar tenso e solene, como imaginava que era diante das outras pessoas. O que deveria ser, com a única pessoa que sabia, era natural e descontraído – fazer a alusão em vez de parecer que a evitava, evitá-la em vez de parecer que a fazia, em qualquer caso mantê-la familiar, brincalhona mesmo, em vez de pedante ou sinistra. Algumas considerações como esta povoavam sua mente, quando por exemplo escreveu a Miss Bartram dizendo amavelmente que a grande coisa, que durante tanto tempo acreditara lhe estar reservada no colo dos deuses, talvez não passasse do fato, para ele tão gratificante, de ter ela vindo a possuir uma casa em Londres. Foi a primeira alusão que tornaram a fazer, pouco precisando de outra até então, mas quando ela respondeu, depois de contar-lhe as novidades, que de forma alguma se satisfazia com semelhante insignificância como sendo o clímax de uma expectativa tão excepcional, quase o deixou imaginando se ela não teria mesmo uma concepção da singularidade dele mais vasta do que teria ele próprio. Estava, de qualquer modo, destinado a tornar-se consciente, pouco a pouco, com o passar do tempo, de que ela observava sem cessar a sua vida, julgando-a, medindo-a, à luz daquilo que sabia sobre ele, e que finalmente, com a consagração dos anos, acabou jamais sendo mencionado pelos dois, a não ser como “a verdadeira realidade”. Esta foi sempre a sua própria maneira de mencioná-la, mas ela adotou-a tão mansamente que, olhando para trás ao fim de certo tempo, ele não saberia dizer em que momento ela havia, como diria ele, adotado a sua ideia, ou trocado a bela atitude de condescendência por uma ainda mais bela de confiança.
Era sempre possível a ele acusá-la de o ver como o mais inofensivo dos loucos, e isso, a longo prazo – já que tão abrangente –, era, a seu ver, a melhor definição daquela amizade; para ela, ele teria um parafuso frouxo, mas ela gostava dele assim mesmo e praticamente, contra o resto do mundo, era sua gentil e sábia guardiã, não remunerada mas bem contente, e na inexistência de outros laços, exercendo uma ocupação honrada. O resto do mundo com certeza o considerava esquisito, mas ela, ela somente, sabia como e, acima de tudo, por que esquisito; e isso era exatamente o que permitia a ela arrumar o véu do disfarce em dobras certas. Ela tomou dele a jovialidade – já que aquilo devia passar por jovialidade entre eles – assim como tomou tudo mais; mas até ali ela sem dúvida justificava, com seu tato infalível, a mais aguda consciência que ele tinha do quanto chegara a convencê-la. Ela, pelo menos, nunca falou do segredo da vida dele a não ser como “a verdadeira realidade a seu respeito”, e tinha de fato uma extraordinária maneira de fazer crer que fosse, como tal, o segredo também da sua própria vida. Assim era, em suma, como ele sentia frequentemente a condescendência dela para com ele; de modo geral não podia dar-lhe outro nome. Ele também condescendia, mas ela condescendia mais; em parte porque, melhor situada para uma visão do assunto, ela seguia a dolorosa perversão dele através de meandros do seu curso que ele dificilmente poderia seguir. Ele sabia como se sentia. Mas ela, além de sabê-lo, sabia também o que ele aparentava; ele sabia cada uma das coisas importantes que insidiosamente se via impedido de fazer, mas ela conseguia avaliar o quanto essas coisas representavam, entender quanto ele teria sido capaz de fazer, não fora a carga que lhe pesava no espírito, e assim determinar como ele havia fracassado, sendo tão brilhante. Acima de tudo, ela conhecia o segredo da diferença entre os papéis que ele assumia, o deu seu modesto cargo junto ao governo, o de cuidar do seu pequeno patrimônio, de sua biblioteca, de seu jardim no campo, o de se interessar pelas pessoas em Londres, cujos convites aceitava e retribuía – e o alheamento reinante sob tudo isto, que tornava a sua conduta – tudo que, pelo menos, pudesse ser chamado de sua conduta – um longo ato de dissimulação. O que acabou acontecendo é que ele passou a usar uma máscara pintada com o sorriso social, de cujas frestas emanava um olhar de uma expressão que nada tinha a ver com as suas feições. Era o que o mundo estúpido, mesmo depois de tantos anos, jamais descobriu senão em parte. Somente May Bartram chegara a fazê-lo, e, com uma arte indescritível, realizava a façanha de encarar os olhos de frente e ao mesmo tempo – ou talvez fosse apenas alternadamente – intrometer sua própria visão, como por sobre o ombro dele, espiando também através das frestas da máscara.
Assim, enquanto envelheciam juntos, ela realmente esperou com ele, e deixou que esta associação desse forma e cor à sua própria existência.
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