Também sob os papéis que ela assumia, o alheamento aprendera a se acomodar, e sua conduta, no sentido social, tornou-se um falso testemunho dela própria. Não havia senão um testemunho que fosse verdadeiro o tempo todo, que não poderia dar diretamente a ninguém, muito menos a John Marcher. Disso, toda a sua maneira de ser era uma evidência total, mas que ele só percebia como se fosse uma das muitas coisas nascidas necessariamente da sua própria imaginação. Se, além do que, ela devesse fazer como ele sacrifícios em nome da verdadeira realidade de ambos, ser-lhe-ia concedido que a compensação dela fosse mais imediata e natural. Houve longos períodos, nesta época de Londres, durante os quais, quando estavam juntos, um estranho os ouviria sem prestar a menor atenção; por outro lado, a verdadeira realidade estava sujeita a subir à superfície de um momento para outro, e o ouvinte então ficaria a imaginar sobre o que, afinal, aqueles dois estavam falando. Haviam desde cedo decidido que a sociedade felizmente não era inteligente, e a margem que isso lhes concedia tornara-se um dos lugares-comuns habituais entre eles. Mas havia ainda momentos em que a situação se tornava quase inédita – em geral sob o efeito de alguma expressão que ela deixava escapar. Suas expressões sem dúvida se repetiam, mas a generosos intervalos:
– O que nos salva, você sabe, é que correspondemos inteiramente a essa aparência tão comum: a de um homem e uma mulher cuja amizade se tornou de tal maneira um hábito cotidiano, ou quase, que chega a se tornar indispensável.
Esta, por exemplo, era uma observação que ela tinha ocasião de fazer com frequência, ainda que às vezes lhe desse desenvolvimento diverso. O que nos concerne em especial é o sentido que tomou um dia, quando ele veio vê-la para celebrar-lhe o aniversário. A data caíra num domingo, num tempo de espessa neblina e um clima geral de melancolia; mas ele lhe havia trazido sua costumeira lembrança, conhecendo-a já por um tempo suficientemente longo para permitir que estabelecesse com ela uma centena de pequenas tradições. Era uma prova para si mesmo, aquele presente de aniversário, de que ele não havia se afundado num egoísmo completo. Em geral não passava de uma pequena bijuteria, mas era sempre um artigo fino, no gênero, e ele tinha regularmente o cuidado de gastar com isso mais do que achava que poderia.
– Nossos hábitos pelo menos salvam você, não está vendo? Porque fazem com que você acabe sendo, aos olhos de todos, como outro homem qualquer. Qual é a marca mais característica do homem, em geral? Ora, é a capacidade de passar um tempo infinito com mulheres tolas, eu não diria sem se aborrecer, mas sem se importar que elas sejam, sem sair pela tangente por causa disso; o que vem a dar na mesma. Eu sou a sua mulher tola, uma parte do seu pão de cada dia pelo qual você reza na igreja. Isso cobre as suas pegadas mais do que qualquer coisa.
– E o que cobre as suas? – perguntou Marcher, a quem aquela mulher tola poderia em geral distrair a esse ponto. – Claro que entendo o que você quer dizer quando fala em me ter salvo, desta ou daquela maneira, aos olhos dos outros. Tenho percebido isto o tempo todo. Mas o que é que salva você? É no que sempre penso, você sabe.
Ela o olhou como se às vezes pensasse nisso também, mas de maneira bem diferente:
– Você quer dizer o que me salva aos olhos dos outros?
– Bem, você realmente está nisso comigo, não é… Como uma espécie de consequência de eu estar nisso com você própria. Quero dizer, nessa minha estima enorme por você, sendo tremendamente consciente de tudo que você tem feito por mim. Às vezes me pergunto se isso é de todo justo. Justo, eu digo, ter envolvido você tanto, interessado tanto, se é que posso dizer assim. Quase sinto como se você na verdade não tivesse tido tempo para fazer mais nada.
– Mais nada senão me interessar? – ela perguntou. – Oh, o que mais alguém jamais quis fazer? Se eu venho “vigiando” com você, como há tempos concordamos que eu faria, vigiar é sempre uma ocupação em si mesma.
– Certamente – disse John Marcher. – Se você não tivesse manifestado sua curiosidade!… Somente não ocorre às vezes a você que sua curiosidade não está sendo devidamente recompensada?
May Bartram fez uma pausa, antes de responder:
– Será que você pergunta isso porque sente que a sua não está sendo? Quero dizer, por ter de esperar tanto tempo?
Ah, ele entendia o que ela queria dizer!
– Esperar que aconteça a coisa que nunca acontece? Que a fera dê o seu bote? Não, sobre isso eu estou onde estava. Não é uma coisa sobre a qual eu possa escolher, possa decidir que mude. Não é uma coisa que possa ser mandada. Está no colo dos deuses. Estamos entregues à própria lei: aí estamos. Quanto à forma que a lei vai assumir, de que maneira vai se impor, isso corre por conta dela própria.
– Bem – respondeu Miss Bartram. – É claro que nosso destino está se cumprindo, é claro que se cumpriu com sua forma própria e à sua maneira o tempo todo.
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