Assim como o artilheiro que encontraremos mais tarde, o padre existe apenas para expressar um ponto de vista. Não chegam a ser personagens plenos. Mas, se bem me lembro, o mundo da ficção já foi povoado por inúmeros padres e vigários covardes; eram figuras populares do tipo “Tia Sally” — bonecos que ficavam nos jardins das tabernas com o único propósito de servir de alvo para bolas de madeira.
O padre de Wells existe para exprimir o desamparo da religião institucionalizada quando diante de invasores. “Todo nosso trabalho... todas as escolas dominicais... O que nós fizemos?”... “[O] fim! O terrível e grandioso dia do Senhor!”... “Seja homem! — disse eu”.
Ficamos sabendo que o narrador tem um irmão em Londres. Assim, a narrativa pode se transferir para a cidade. Tudo lá está calmo, uma calma que gradualmente dá lugar à agitação e à angústia. Fugitivos começam a chegar vindos de West Surrey. Os marcianos avançam e, na altura do capítulo 16, o pânico e a desordem — como Wells odiava a desordem! — já estão instalados. Ocorre uma “veloz liquefação do organismo social”.
Hoje podemos nos perguntar se algo semelhante aconteceria se, por exemplo, a Al-Qaeda lançasse na capital bombas contendo antraz. Eu me perguntei algo parecido quando, ao visitar o quiosque de livros na estação Paddington durante a Segunda Guerra Mundial, deparei-me com uma reimpressão do romance de Wells — a capa mostrava feixes de luz no céu e chamas elevando-se da cidade destruída. Alguns medos continuam sempre atuais.
Os marcianos eram tão impiedosos como a Luftwaffe.
Não é necessário relatar o que acontece depois; podemos tranquilamente deixar isso a cargo do sr. Wells. Mas podemos nos perguntar o que se passava na fértil mente do autor quando ele escreveu sobre essa destruição indiscriminada. A questão do colonialismo emerge — há menção ao tratamento cruel dado aos tasmanianos. Wells não era o único ocupado com essas reflexões. O poema de Rudyard Kipling, “Recessional”, foi publicado em 1897 (“Lo, all our pomp of yesterday/ Is one with Nineveh and Tyre...”) [“Vejam, toda nossa pompa do passado/ Compara-se à de Nínive e Tiro...”].
Wells estava mais preocupado com a questão da superpopulação — muito antes de o tema se tornar corrente. “Essay on the Principle of Population” [Ensaio sobre o princípio da população], de Thomas Malthus, foi publicado nos últimos anos do século XVIII. Malthus observou que, enquanto a população aumenta em progressão geométrica, a produção de alimentos aumenta em progressão apenas aritmética. Um número cada vez maior de pessoas passará fome. Essa é a lei da natureza. “E a raça humana não pode, por nenhum esforço racional, escapar dela. Entre plantas e animais, seus efeitos são desperdício de sementes, doenças e morte prematura. Entre a humanidade, miséria e corrupção.”
Embora essa avaliação severa tenha sido em parte abrandada pelo aumento das safras e o aprimoramento dos métodos agrícolas, a lei de Malthus ainda vale. E, como diz John Ruskin em Unto this Last [Até este último]: “Entre todas as áreas do pensamento humano, não conheço nenhuma tão melancólica como as especulações de economistas políticos sobre a questão populacional”.
Mais tarde, quando sua espantosa criatividade entrou em declínio, Wells, em seu estilo didático, dedicou livros inteiros à questão da superpopulação. Em A Modern Utopia [Uma utopia moderna], “degenerados” são impedidos de procriar. Deficientes mentais, viciados em drogas, bêbados e homens violentos são exilados em várias ilhas e cuidadosamente policiados.
Wells é um dos mais pródigos criadores de utopias.
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