amores e nas paixões que os romances nos descrevem inspiradas em um momento pelos encantos de jovens formosas e de prestigio deslumbrante.

Creio; porque eu sinto que amo apaixonada e perdidamente a prima Anica.

Eu quero ajoelhar-me, prender-me aos pés desta moça gentil, mimosa, rica de virtudes, quero ajoelhar-me a seus pés, prender-me aos seus pés como se me prendessem as asas de um anjo, que em sublime vôo me levasse à salvação, à glória suprema, ao céu.

Abençoada seja a visão do bem, se a prima Anica quiser aceitar a minha mão, o meu nome, e ser minha esposa, a santa companheira na minha viagem pela terra, a mulher unificada comigo nos trabalhos, e nos gozos da vida.

VI

 

Veio-me a idéia correr imediatamente à presença da tia Domingas e pedir-lhe em casamento a prima Anica; mas contive-me; porque me lembrou que devia para isso achar-me autorizado pela noiva, e porque desejei desfrutar o encanto de alguns dias de intimas confidências, e de enlevo de namorados com a adorada moça.

Com a certeza que eu tinha de ser amado por Anica, e com a segurança da sua virtude alguns dias de demora no pedido de casamento não podiam senão duplicar a minha felicidade com o aguçamento de honestos mas ardentes desejos da posse do objeto amado.

Empreguei o resto do dia no estudo da tia Domingas, e do mano Américo pela visão do bem.

Indispensavelmente a visão do mal tinha sido a visão do diabo, que me fizera ver o contrário da verdade, e caluniar os mais santos corações, e os caracteres mais puros e generosos.

A tia Domingas era a devoção, a piedade personalizada. Aos pobres negava esmola à nossa vista, e semeava benefícios às escondidas: era a caridade do evangelho, o bem que fazia, só ela o sabia. e quando rezava, mais vezes suas orações eram por seus parentes e pelos estranhos, do que por si. No governo da casa economizava para matar a fome à indigência, e imaginava mil pretextos para ter mais que dar, e encobrir o que dava.

A tia Domingas era e é uma santa velha; o que ela faz em obras de caridade só Deus o sabe, e eu agora também o sei pela visão do bem.

O mano Américo é o tipo da dedicação fraternal: vive pensando em mim, negociando por mim, e explorando em meu favor e beneficio as evoluções, revoluções, e combinações da Praça do Comércio.

Em sua abnegação sublime deixa intatas e não desviadas do emprego em que se acham as somas da sua riqueza própria, e, mercê de uma procuração que assinei, negocia com a minha fortuna, jogando na praça: se perde, perco eu e é justo; se ganha, tira dos lucros a sua porcentagem, o que é justíssimo; a prova da honradez e boa-fé do mano Américo é que a minha fortuna ainda não diminuiu um ceitil, embora não tenha aumentado por causa de alguns prejuízos conseqüentes de jogo infeliz.

O que tem sempre aumentado é a fortuna do mano Américo que nunca perde, e ganha sempre; mas a isso nada tenho que dizer; porque o mano Américo só se ocupa de mim, e faz o sacrifício de jogar na praça somente com o meu dinheiro, e em tal caso quando há perdas, é evidente que eu devo carregar com elas, tanto mais que quando há lucros, meu irmão os reparte comigo.

É evidente que se o mano Américo jogasse na praça com os seus próprios recursos, ganharia somente para si, e eu não teria parte nos lucros.

Eu fora o mais vil ingrato se desconhecesse o que devo ao mano Américo.

A visão do bem acaba de mostrar-mo tal qual ele é. A sua prudência e sabedoria igualam à sua dedicação fraternal, e aos escrúpulos de sua probidade.

Com a minha luneta mágica eu poderia gerir perfeitamente os meus negócios; não incorrerei porem nesse erro: o mano Américo continuará a ser o depositário de toda minha fortuna, e a administrará e empregará absolutamente, como entender melhor.

Oh! quão aleivosa e envenenada, traidora e diabólica era a visão do mal! A que criminosos juízos sobre o caráter dos meus ótimos parentes me levou ela!

Ainda bem que posso enfim ver e apreciar a verdade, e pelo conhecimento da verdade viver a mais ditosa, e risonha das vidas.

Casar-me-ei com a prima Anica.

A tia Domingas será o gênio protetor da família e o anjo da caridade que fará descer as bênçãos do céu sobre a nossa casa.

O mano Américo continuara a ser o arbitro, o regulador dos negócios da família, dispondo convenientemente dos nossos cabedais em proveito de todos.

E eu serei o egoísta, o desfrutador de tantos benefícios só e de tanta felicidade sem trabalho, sem cuidados, só me ocupando do amor da prima Anica.

Abençoado sela o armênio

Abençoada seja a luneta magica que me deu a visão do bem.

VII

 

Eu tinha a febre da felicidade.

O mundo e a vida me festejavam o coração; eu desejava rir, divertir-me, folgar.

Em casa a tia Domingas e a prima Anica dormiam cedo, e eu senti-me contrariado pelas horas que havia de perder, deitando-me antes da meia-noite.

Acudiu-me ao espírito um pensamento extravagante, e talvez menos digno de quem já se considerava noivo: lembrou-me ir ao Alcasar Lírico, que nessa noite dava espetáculo e representação — não pedidos, nem para público de escolha — ; mas da sua série ordinária e portanto menos contidos e mais livres.

Não refleti mais: decidi-me a realizar o meu intento.

A hora aprazada entrei pela primeira vez no tal teatro francês, de que tanto mal me diziam, e tomei um lugar no meio de numeroso concurso de homens e de mulheres.

Antes de tudo observei o teatro, cuja descrição não farei: achei-o bonito e cômodo mas no fim de três minutos de exame, a luneta mágica encantou-me com a visão do bem.

Que injustiça fazem ao Alcasar Lírico: vi nele o contrário do que me informavam! Vi nele o ponto de reunião de todas as classes da sociedade, o jubiloso recurso de entretimento para os homens pobres que não podem pagar outro menos barato, e para as mulheres que degradadas pelo vício são repelidas da boa sociedade; vi nele a mais eloqüente escola de moralidade pública pela exposição ampla e quase sem medida do comércio imoral e repugnante das criaturas desgraçadas que tem descido à última abjeção: melhor que as teorias e os conselhos de um pai austero, falava ali à mocidade o exemplo vivo dos perigos e das torpezas da devassidão. O Alcasar me pareceu enfim uma bela instituição filantrópica e filosófica, a Ética de Jó ensinada pelas antíteses, a ostentação da grandeza da virtude pela observação da baixeza do vicio.

Não pude compreender a razão por que o governo do Brasil ainda não concedeu subvenção ou loterias anuais para auxílio deste admirável teatro lírico francês!

Passei imediatamente a observar os espectadores de ambos os sexos, e antes deles as atrizes ou artistas.

Em breve me apercebi como que abismado em um dilúvio de arrebatadoras graças e dos mais generosos sentimentos. Não houve para a minha luneta uma só atriz francesa que não fosse prodígio; se nos primeiros três minutos uma me pareceu menos bonita, outra menos bem feita, e outra menos engraçada, passados os três minutos veio a visão do bem obrigar-me a pagar a todas elas os justos tributos da minha admiração: esta atriz cativou-me pela sua rara e esquisita sensibilidade que a tornava por agradecida e terna incapaz de resistir à flama de quem em honra de sua beleza ia confessar-se, mostrar-se rendido a seus pés; aquela deu-me o mais sublime exemplo do amor do próximo; porque abrasada nesse religioso fogo de caridade, não sabia fazer exceção no seu amor do próximo, e amava todos os próximos, como a si mesma; aquela outra, vivo e surpreendente símbolo de humildade evangélica, condescendente e submissa dobrava-se à vontade alheia, e era a escrava de cem senhores.

Declaro que tive medo de apaixonar-me por todas essas generosas e santas criaturas, em cujos olhos ardentes, feiticeiros sorrisos, requebros de corpo, e estudadas posições, descobri somente a ambição inocentíssima de agradar, o impulso da sensibilidade a mais terna, o amor do próximo ou dos próximos o mais profundo, e a humildade cristã da santa moça submissa e pronta a ser escrava de novos senhores.

Evidentemente havia para o noivo da prima Anica verdadeiro perigo na observação repetida daquelas moças tão resplendentes de inocência e de candura; delas pois desviei a minha luneta mágica, e com o coração ainda palpitante de ternura, de enlevo, quase de entusiasmo, fixei-a no rosto de uma jovem que estava sentada perto de mim.

Cabelos castanhos e ondeantes, rosto oval e de cor pálida com uns longos roxos nas faces, olhos pretos e vivos, dentes brancos iguais e em continuo rir de continuo à mostra, o peito e os braços nus e os seios e as axilas por metade fora do vestido, mãos de vadia, cintura fina, os pés calçando botinas à Benoiton e atirados em exposição, palavra solta e louca, modos descomedidos, mobilidade febril. provocação e petulância, — eis a jovem em quem eu fixara a minha luneta mágica e que não podia contar mais de vinte anos de idade.

Era pois moça e bonita; mas trazia no olhar, no falar, no rir, no proceder o letreiro da devassidão; causou-me dolorosa impressão; tive dó daquela mocidade pervertida.

Entre mim e ela estava sentado um velho de sessenta anos pelo menos, que todo impertigado a miúdo lhe falava ao ouvido, como o fazia também pelo outro lado um mancebo que evidentemente devia ser mais atendido.

A rapariga mostrava-se alegre e folgazona, e sem dúvida ria-se do velho, quando escutava os segredos do moço.

Animei-me a perguntar em voz baixa ao velho:

— Quem é esta... mulher?

— Não a conhece?... disse-me ele admirado.

— Confesso que não.

— Pois não conhece a Esmeralda?

— Esmeralda? E o seu nome de batismo?

— Quase todas as raparigas da classe desta adotam ou recebem o seu nome de guerra; a moça, que está vendo a meu lado, chama-se Esmeralda pela paixão e preferência que lhe merecem as pedras desse nome: observe o adereço que ela traz ao pescoço.

— Com efeito é riquíssimo.

— Sei bem o que ele vale: custou-me os olhos da cara.

Voltei-me com repugnância, desviando outra vez a minha luneta mágica da figura daquela mulher desgraçada, e do rosto do velho ridículo e parvo.

Pouco depois mudei de lugar e encontrei-me com aquele mancebo meu vizinho que prazenteiro, gracejador e sempre jovial, tão indigno da minha amizade me parecera julgado pela visão do mal.

Já desconfiado dessa visão caluniadora, observei-o primeiro a alguma distância por mais de três minutos, e reconheci a perfídia da minha. primeira luneta: o meu jovem amigo era o caráter mais igual, mais nobre e distinto que se podia imaginar.

Fui ter com ele, que me festejou com expansão de verdadeira alegria.

— No Alcasar!!! exclamou enfim; tu no Alcasar! . . .

— E verdade; começo a viver.

— Estás apenas meio perdido; mas eu vou te perder de todo.

— Como?

— Do Alcasar a uma ceia infernal é só um pulo: queres pular? — Não entendo.

— Convido-te para cear com uma dúzia de demônios de ambos os sexos.

— Uma orgia...

— Pouco mais ou menos: mademoiselle tem medo de se comprometer?

Corei da zombaria, e respondi:

— Aceito, se es tu que dás a ceia.

— Nessa não caia eu: quem paga a Cela é o tolo;

— E quem é o tolo?

— É o paio.

— E quem é o paio?

— É um animal que não conheces: é o velho que a Esmeralda depena.

— Conheço-o já; mas com que direito me convidas?

— O pateta do velho conta comigo e com um primo, de quem lhe falei, e que me faltou à palavra por causa de uma sobrinha, que celebra esta noite um batizado de bonecas: ficarás sendo meu primo durante a ceia, ou és mais tolo que o velho.

— Aceito o convite.

— Ainda bem, meu primo; principias a ter juízo.

VIII

 

A meia-noite o velho, dez alegres moças e outros tantos mancebos rodeavam esplêndida mesa.

Ridículo Baco de cabelos brancos, o velho provocava a companhia ao ruído, as cantigas livres, as libações freqüentes, à desenvoltura à orgia enfim.

Mais bela e petulante que todas as suas companheiras, Esmeralda era digna rainha daquela festa, que me inspirava espanto e horror.

Esmeralda, impudica e doida, desnudava encantos que o recato esconde cuidadoso, deixando-os apenas adivinhar nas palpitações do peito que arfa. Ela tinha esvaziado as taças cheias de seis vinhos diversos, e pedia ainda champanha e conhaque!

Mísera bacante precisaria em breve que a levassem quase carregada para dormir em casa.

A bela moça embebedava-se!

Dentro em pouco faltava o juízo a quase todos: mulheres e homens se achavam aviltados, castigados pelos venenos da orgia e da depravação dos costumes.

Dois únicos dos convivas resistiam ao contágio fatal, o meu amigo, que bebera vinha com água, e eu que bebera água com vinho.

— Primo, disse-me ele; estuda esta lição, e aproveita-a.

— Tens razão, respondi; é tempo de fazê-lo: devo e quero apreciar toda a ignomínia, e toda a imensa vergonha dos nossos sócios de orgia.

E fixei a minha luneta mágica sobre a Esmeralda embriagada.

A principio vi, o que tinha já apreciado, seus dotes físicos, sua gentileza que o vinho e a petulância apenas anuviavam; Esmeralda era ainda bonita apesar da embriaguez e da ignomínia; sem dúvida que o era, pois que eu o reconhecia, embora o sentimento que ela me inspirava fosse o da repulsão e do tédio, que nos causa a vista de um animal imundo.

Passaram porém os três minutos e começou a visão do bem.

Li com surpresa e enternecimento na alma da embriagada a história do seu passado e dos tormentos de sua vida.

Menina de coração angélico, mimoso tipo de sensibilidade, fora muito cedo vitima do crime; era pobre e órfã e uma parenta corrompida preparou-lhe sinistro sono, e vendeu-lhe a um monstro a inocência e a pureza; riram-se de suas lágrimas e a arrastaram para o vício; mas em breve despertando no meio da perversão, Esmeralda teve remorsos, detestou sua vida, foi mil vezes desgraçada; desejou amar e ser amada, como ama e é amada a senhora honesta; era porém tarde: o mundo já tinha marcado a sua fronte com o sinal negro da reprovação perpétua. Então principiou para a mísera a vida do frenesi a que o desespero preside.

Na convicção tremenda do seu aviltamento embriaga-se todos os dias para esquecer a sua miséria moral, e para matar-se; sabe e sente que o conhaque queima-lhe as entranhas e lhe abrevia a vida; pelo sabor aborrece o conhaque, pelos seus efeitos adora-o; beberia fogo vivo, se o fogo vivo se bebesse.

O seu rir contínuo é o delírio da dor, a antítese das torturas do coração em convulsões dos lábios que fingem alegria.

Ninguém a despreza tanto como ela mesma se despreza, porque na pureza dos seus sentimentos e de sua sensibilidade adora a virtude, compreende a sublimidade do amor honesto, e se reconhece infame pela infâmia do vício.

Quando está só em casa, e vê passar uma jovem com o vestido branco e a virginal coroa de noiva no carro que a conduz à igreja, Esmeralda se ajoelha, chora, e reza; chorando por si, e orando pela noiva.

Fatal arruinadora dos ricos, que se tornam seus apaixonados, parece nadar em mar de ouro, e nunca lhe sobra o dinheiro; porque ela alimenta e veste quantos pobres a procuram; ou quantos pobres conhece; mas tem fama de dissipadora e ninguém a chama caridosa.

Nos desvarios precipites da sua vida Esmeralda ganhou créditos de petulante, interesseira, vil, desordenada, infrene e louca, incapaz de uma afeição, não suscetível de amar, demônio de gelo, demônio de voracidade áurea, demônio de corrupção; ela o sabe e ri com o seu rir que é mais amargo do que o pranto mais doloroso.

Que falsa apreciação! Esmeralda é flagelada pelo seu pudor inato de mulher que nasceu para ser santa; não tem ordem na vida maternal, porque abomina o cálculo egoísta a ponto de esquecer os cuidados do futuro; o que chamam sua loucura é como um castigo que ela se impõe na terra; sensível, dedicada, extremosa, amando tão ardentemente a virtude, que nem concebe escusa, desculpa, ou perdão para sua vida manchada e ignominiosa, tem uma coração que é um abismo de amor exaltado e sublime.

Se fosse amada, esposa de um homem a quem amasse, seria tipo de fidelidade, heroína pela abnegação, mártir pela paciência, anjo pela santidade dos sentimentos e da vida.

Contemplando essa vítima do mundo, e dos homens, essa embriagada adorável, essa virtude cheia de manchas, esse querubim profanado, essa mulher formosa de corpo aviltado e alma pura, esse coração todo amor, essa Madalena que se torturava no vício, que se atribulava na orgia, que se degradava na embriaguez, que antes da morte e com severa consciência condenava o corpo à corrupção, à podridão, as extremas e esquálidas misérias da terra, e tinha a alma arrependida já metade no céu, tive ímpetos de correr a beijar-lhe os pés, e de bradar-lhe: "acorda! surge do sono da embriaguez! eu te compreendo e te amo, eu te regenero, dando-te o meu nome! "

Creio que dominado pelos encantos físicos e morais de Esmeralda, eu teria ido além de treze minutos de contemplação, se o meu primo de convenção não me tivesse tocado no braço, fazendo assim cair a luneta mágica que eu fixara sobre a infeliz moça.

— Não olhes tanto para a Esmeralda, disse-me ele; corres o risco de ficar verde.

Ou por acaso, ou porque ouvisse a observação do meu suposto primo, a Esmeralda cravou em meu rosto um olhar flamejante, e logo depois empunhando o corpo, bradou:

— Conhaque! conhaque! conhaque!

Pareceu-me então que a ouvia pedir veneno para se ir matando, levantei-me de súbito, e atirei-me de encontro ao criado que correra a deitar-lhe conhaque no copo; arrebatei-lhe da mão a garrafa e exclamei:

— Basta! a senhora não deve tomar mais conhaque!

— Pois então... vou-me embora... balbuciou a Esmeralda, e no meio de gerais gargalhadas, saiu, cambaleando, apoiada no braço do velho.

IX

 

Dormi mal o resto da noite; porque despertei por vezes, sonhando com a prima Anica, e com a Esmeralda, e no dia seguinte encontrei as imagens de ambas, felicitando a minha alma.

Cumpre-me dizer que senti por isso mesmo o primeiro inconveniente da visão do bem: eu amava igualmente as duas moças, e hesitava sobre qual delas merecia preferência.

Anica era pura; Esmeralda manchada pelo vicio mais torpe.

Anica era sóbria como todas as senhoras de educação e apenas em jantar cerimonioso molhava os lábios com alguma. gotas de champanha; Esmeralda era afeita à ignomínia; da embriaguez.

Anica era objeto do respeito de todos, e somente em culto à sua virtude, e às delicadezas devidas ao seu sexo, alguns na sociedade lhe beijavam reverentemente a mão; Esmeralda era o escárnio de muitos, e o insulto vivo da moral pública.

Mas eu, melhor que todos, conhecera Esmeralda pelas revelações da visão do bem, e não podia deixar de fazer-lhe justiça.

Anica era feliz, tivera mãe e parentes a velar por ela, educação a aprimorar suas virtudes; Esmeralda era a desgraçada mártir sacrificada por infame parenta; a primeira tivera todos, a segunda ninguém por si.

E além disso a Esmeralda conservava o melindre do sentimento na depravação da vida; devorada pelos remorsos, tendo aversão ao vício que a aviltava, arrojava-se a ele, como a um castigo, e procurava abreviar seus dias com o veneno da embriaguez.

Não era Madalena arrependida, mas era Madalena delirante.

Se aparecesse um homem que amando Esmeralda, e sendo por ela amado, lhe dissesse: "eu te amo! eu te dou o meu nome e te regenero!", essa mulher se agarraria a esse homem, como a um anjo de salvação, e sua esposa dedicada, extremosa e fiel o faria feliz.

O marido de Anica será por força ditoso; mas desfrutador egoísta de uma dita, que toda lhe há de vir da esposa; o marido de Esmeralda porá fim a um grande infortúnio, cobrirá com os véus do seu nome uma nudez reprovada; fará uma obra de caridade, de amor santo, que o exaltará aos olhos de Deus, que purificou a Madalena arrependida.

Em uma palavra o marido de Anica poderá ser mais ditoso; mas o de Esmeralda será mais generoso.

E todavia eu hesitava sempre...

Às vezes a minha razão me dizia que todas as mulheres pervertidas têm sempre de prevenção no espírito a história de uma perversa sedução, de martírios cruéis, de desespero, de arrependimento sem proveito, de desejo de morte, e de exemplar dedicação; suas virtudes raras, e seus sentimentos sublimes, brilhariam sem dúvida com o mais vivo fulgor se achassem maridos que as regenerassem reservando-se elas entretanto o direito de serem no futuro e depois de casadas dignas do seu ignominioso passado.

A reflexão também me diz que a mocidade inexperiente e generosa tem na sua inexperiência e generosidade uma espécie de luneta mágica com a visão do bem, que faz tomar a nuvem por Juno, e acreditar facilmente em tudo quanto lhe cantam aquelas pérfidas sereias.

A razão enfim me está clamando, que o verdadeiro arrependimento exclui a idéia da persistência no pecado, e que a prática do vício em nome do desespero, da embriaguez, em nome do desejo da morte, e do esquecimento da infâmia no sono do álcool são pretextos rudes, sofismas repugnantes das mulheres depravadas.

Se é assim realmente a visão do bem, isto é, o modo de ver e de aceitar as coisas, de apreciar os fatos, e de julgar os homens, o homem e a mulher sempre pelo lado bom, sempre pelas regras da desculpa, do perdão, do bem, do otimismo na humanidade, é um grande e enorme perigo tão fatal em suas conseqüências, como a visão do mal que é o extremo oposto.

Estas considerações começavam a perturbar-me, a incomodar-me; eu porem não podia, sem ofender a minha consciência, negar-me a confessar, a reconhecer, a proclamar o que tinha visto pela visão do bem, contemplando a Esmeralda com a minha luneta mágica por mais de três minutos.

Evidentemente eu seria indigno, malvado, se não declarasse, se não estivesse pronto a declarar a todos, e à face do mundo, que a Esmeralda é uma pobre mártir, manchada em sua vida; mas santa pelo sentimento, anjo pelo coração.

Portanto a visão do bem fazia-me adorar a Esmeralda, como eu adorava a prima Anica, e hesitar sobre a escolha, sobre a preferência entre uma senhora honesta e para, e uma mulher perdida e petulante.

A razão fria lutava com o sentimento em fogo, a reflexão com a generosidade, o juízo com o coração.

Muitas vezes eu tinha vergonha dessa minha hesitação entre a pureza e o último aviltamento...

Mas hesitava sempre...

A luta era um tormento, e a visão do bem começava pois a me fazer mal.

X

 

Mostrei-me pensativo e menos alegre ao almoço; Anica reparou nisso, e perguntou-me docemente qual podia ser a causa da minha melancolia.

Disse-lhe que tinha dormido mal, porque levara toda a noite a sonhar com ela; a resposta a fez sorrir, e livrou-me de mais explicações.

Nada é mais agradável à mulher do que o culto, e a turificação à sua vaidade.

Logo depois sai para visitar o meu amigo Reis, e dar-lhe conta da força, e do poder maravilhoso da minha luneta mágica.

Uma vez por todas fica declarado que o público da capital, como os meus parentes o tinham feito, deixou-me com a mais completa e absoluta tolerância ou indiferença no gozo pacífico e pleno da minha nova luneta mágica, conforme o armênio o havia garantido.

Ao chegar à casa do meu amigo Reis, um homem, que com ele conversava no armazém, voltou imediatamente as costas ao ver-me entrar, dizendo-lhe em voz baixa algumas palavras.

O Reis veio logo receber-me com a sua habitual e natural amabilidade.

Sem que rogado me fizesse, confiei ao excelente amigo tudo quanto se passara no dia antecedente em relação à minha nova luneta mágica.

— E não haverá nisso ainda muita influência de imaginação? perguntou-me o Reis sorrindo-se.

— Sempre incrédulo! respondi-lhe eu; não há meio de convencer a um homem que não quer ser convencido.

— Lembra-se da visão do mal?

— Muito.

— Que me diz dessa visão agora?

— Que era caluniadora e perversa.

— E por que não será traidora e falsa a visão do bem?

— Suponhamos que o seja; ainda assim a magia de que duvida é uma realidade, embora seja maléfica.

— Proponho-lhe uma experiência...

— Aceito-a.

— Vê aquele homem que nos dá as costas?

— Vejo-o

— Vou esconder-lhe o rosto com um lenço e o senhor que já o julgou pela visão do mal o julgará pela visão do bem e me dirá quem é ele.

— Estou pronto: não sei se poderei dizer quem ele seja, porque ignoro se a luneta mágica estende a tanto o seu poder; mas tenho a certeza de ver, de apreciar e de patentear o seu caráter, e as suas qualidades boas ou más.

— Experimentemos pois, disse o Reis.

E logo foi cobrir com um lenço de seda roxo o rosto do seu amigo ou freguês, que assim perfeitamente seguro de não ser conhecido, voltou-se para mim, e ficou firme, como se fosse uma estátua.

A um lado entre mim e o desconhecido o Reis nos observava risonho.

Fixei a minha luneta, e principei logo a falar, descrevendo o que via.

— Rosto comprido, magro, um pouco moreno, cabelos que começam a esbranquecer... este homem tem mais de cinqüenta anos de idade . . .

E seguidamente fiz o retrato do desconhecido.

O Reis ouvia-me admirado.

No fim de três minutos de observação senti que a visão do bem abria ao meu olhar a alma do desconhecido:

— Mal julgado por alguns; mas nobilíssimo caráter! este homem é procurador de causas no foro, e muitas vezes sacrifica seus interesses pessoais, servindo a ambos os litigantes contrários no empenho da conciliação e da harmonia; com o seu trabalho honrado e sábia economia tem adquirido alguma riqueza, e sabe acudir às circunstâncias difíceis dos seus amigos, emprestando-lhes dinheiro a juros; os velhacos o chamam por isso usurário; em seu lar doméstico pede à esposa e à filha diligencia, zelo e labor para fundamento da segurança do futuro; ele trabalha, a mulher trabalha, a filha trabalha, e a riqueza da família aumenta, e com o trabalho a moralidade do lar doméstico aprofunda raízes. E um homem útil à sociedade; severo em seus costumes, austero na educação da filha, na direção da esposa, no governo da casa, é um modelo de chefe de família, um exemplar, que por muitos pais e maridos deve ser copiado. Este homem chama-se . . . ah! . . .

— Que é isto? perguntou-me o Reis, notando a minha súbita surpresa.

Este homem chama-se Nunes... perdão meu velho e bom amigo! exclamei avançando dois passos para ele; perdão!... A visão do mal me tinha pintado o senhor com horríveis cores! perdão! perdoe-me! a calúnia não foi minha, foi da visão do mal que era aleivosa e malvada!

Vendo-se reconhecido, o velho Nunes tirou o lenço que lhe cobria o rosto, e deu-me apertado abraço.

— Perdoa-me? perguntei-lhe.

— Com uma condição...

— Qual?

— Há de remir a sua dívida: hoje mesmo juntará comigo.

— Com o maior prazer.

— Então também me perdoa? perguntou-me o velho Nunes por sua vez.

— O que, meu amigo?

— O mal que involuntariamente lhe causei; confesso que confiei a algumas pessoas o segredo da sua primeira luneta mágica; mas não fui eu quem inventou as falsidades que o comprometeram na opinião do povo.

— Tudo isso está passado...

— Ainda bem!

— Amigo Reis, eu quero agradecer ao armênio...

— Vou chamá-lo já, ou antes, venham comigo.

Seguimos o Reis, e quando chegávamos à porta do misterioso gabinete, esta se abriu, e o armênio apareceu, como se nos estivesse esperando.

— Para que me incomoda? disse-me ele rudemente; o dia em que precisará de mim, não chegou ainda.