perguntou-me a prima Anica, cheia de curiosidade.
— Bem e muito, respondi.
— Que tenho no meu cabelo?
— Uma rede de retrós, que os contem.
— No meu peito?
— Um amor-perfeito.
— Nas minhas orelhas?...
— Nada; não traz brincos.
— É estupendo!
— Assim o penso.
— Por que não conserva fixada a sua luneta?
— Porque além de três minutos de fixidade eu veria mais do que devo e quero ver.
— O mal?
— Não; o bem.
— Ora! experimente em mim.
— De modo nenhum: o mágico me aconselhou que o não fizesse. — Eu lho peço.
— Deus me livre de obedecer-lhe, Anica.
— Empresta-me a sua luneta por cinco minutos?
— Sem dúvida.
Passei a luneta à prima Anica, que apenas fixou-a, exclamou, retirando-a:
— Ah!... nada posso ver... e que peso sobre os olhos... que fogo . . .
— É efeito da magia...
— Quando eu digo que há mágicos de Deus, e mágicos do diabo não querem me acreditar!... observou a tia Domingas.
— Ora pois, mano Simplício, disse meu irmão; conserve cuidadoso a sua boa luneta...
— Olhe-me com ela! tornou a prima Anica.
Fiz-lhe a vontade, olhei-a por dois minutos.
— Como me acha?
— Lindos cabelos, e rosto a que um sinalzinho azul na face esquerda dá tal encanto...
Anica interrompeu-me desatando a rir; mas com evidente satisfação da sua vaidade de moça.
Eu estava como assombrado.
Que mudança de idéias e de prevenções, e de apreciações relativamente à luneta mágica!
Quem pudera dizer aos meus parentes que a minha nova luneta não era como a outra, e que em vez da visão do mal, continha o poder da visão do bem?
Como isto aconteceu não sei; mas aconteceu.
Evidentemente eu não tinha perseguição, nem perigos a recear.
O armênio salvara-me.
O armênio é verdadeiro mágico.
II
Acabado o almoço, e depois de abraçado e ardentemente felicitado pelos meus três parentes, de quem ainda continuava a desconfiar muito, voltei ao meu quarto com a alma repleta de consolação, de alegria, e de entusiasmo.
Creio que entrei no meu quarto, saltando jubiloso, como um candidato da oposição que se vê eleito deputado depois de uma dissolução da câmara temporária, ou como um mancebo namorado que após resistências cruéis da família da amada, recebe a decisão ditosa, que lhe dá as glórias de noivo.
Beijei mil vezes a minha luneta mágica e mil vezes jurei que seria acautelado e prudente, que me contentaria com a visão das aparências e que nunca iria além de três minutos procurar a visão do bem.
Entretanto a visão do bem era uma coisa que não podia fazer mal! . . .
Esta idéia já havia entrado por mais de uma vez no meu espírito: ver o bem! eu tinha sofrido tanto, vendo em tudo, em todos, e por toda parte o mal, que ver o bem poderia ser uma agradável compensação, uma profunda consolação para mim...
Mas eu jurara a mim mesmo obedecer fielmente aos conselhos do armênio, e portanto venci, esmaguei o meu desejo de ver o bem.
Hei de, protesto que hei de contentar-me com a visão das aparências: é duro, é triste o privar-me da visão do bem; não a quero porém; juro que não me exporei a essa visão que o armênio reputa inconveniente.
A visão do bem deve ser deliciosa! mas não a quero; não sou criança louca; sou homem de juízo, e de força de vontade: não quero, não terei a visão do bem.
III
Lembrou-me o meu amigo Reis.
O Reis! tenho pena dele.
A incredulidade do meu amigo Reis é mais do que pertinácia no erro, é um atentado contra os direitos do publico que por ela se vê privado de instrumentos óticos temperados pela magia do armênio, e que podem vulgarizar maravilhas.
O meu amigo Reis é incrédulo; eu porém não sou egoísta, não quero para mim só os milagres que o armênio é capaz de realizar.
Conscienciosamente entendo que em proveito de todos devo atraiçoar o meu amigo Reis, publicando o que sei e o que obtive do armênio, e o que o armênio é capaz de dar, enriquecendo, sublimizando, tornando mágicas as oficinas, que alimentam o armazém do Reis.
Que me cumpre fazer? É claro: vou redigir uma noticia do que obtive e consegui das oficinas do Reis, vou denunciar a existência do armênio, e a sua extraordinária habilidade em magia, vou obrigar, forçar o meu amigo Reis a satisfazer aos seus fregueses, tornando público o que o armênio se declara pronto a realizar em matéria de instrumentos óticos encantados ou mágicos. É um serviço que devo prestar ao meu país e ao mundo.
Entusiasmado fixei a luneta, tomei a pena e comecei logo a escrever:
NOTÍCIA IMPORTANTE
"O abaixo-assinado, possuidor de uma nova e não menos admirável luneta magica que, por grande favor obteve do Sr. J. M. dos Reis, em cujas oficinas na casa de instrumentos físicos etc., a Rua do Hospício n.º 71 trabalha um armênio que é profundamente amestrado em magia, julga do seu dever publicar um segredo que não convém ser por mais tempo guardado.
'O Sr. J. M. dos Reis, teimando em não acreditar na magia, nega-se a aproveitar-se dos oferecimentos do armênio prejudicando assim os seus interesses e os do público.
"Informo pois que o armênio, a quem devo a luneta mágica, se propõe a preparar para que o Sr. J. M. dos Reis exponha a venda no seu armazém vidros e instrumentos óticos de assombrosas condições; espelhos que refletem a imagem dos velhos com o viço da mocidade passada, óculos, binóculos e lunetas que fazem ver o que se passa e o que há a muitas centenas de léguas de distancia, no leito dos rios, no fundo dos mares, no seio da terra..."
Oh!... que fiz eu? Que estou vendo?... meu Deus!... é a visão do bem!...
Escrevendo, esqueci o tempo, passaram mais de três minutos, e, como predissera o armênio, hoje mesmo desobedeci aos seus conselhos!
Pequei involuntariamente; como porém é bela e suave a visão do bem!
As palavras que eu acabava de escrever me pareceram acendidas em brando fogo em que brilhavam generosos sentimentos... as palavras escritas falavam a meus olhos, a incredulidade do Reis exprimia a nobre severidade da ciência e o escrúpulo da religião, a. capacidade magistral do armênio revelava o inocente e benéfico poder da magia que os homens não compreendem, e por isso apreciam mal, a noticia escrita por mim transpirava de todas as linhas, de todas as palavras, de todas as sílabas o amor da humanidade. Em tudo e em todos somente sentimentos nobres e doces virtudes.
Que prazer! que delicias experimentei e estou experimentando!
Ah! por que o armênio havia de aconselhar-me a não usar da visão do bem?
Por que privar-me destes gozos que fazem sorrir a alma beatificada pela pureza e santidade do sentimento?...
Que mal pode provir do bem?...
Eu me senti feliz, imensamente feliz...
Completei a notícia, acrescentando ao que tinha escrito, o seguinte período:
"Ao público, e especialmente aos fregueses do Sr. J. M. dos Reis cabe o direito de à força de pedidos, empenhos, e reclamações coagi-lo a vencer a sua incredulidade, e a aproveitar os oferecimentos do armênio mágico para facilitar ao público e aos seus fregueses todos os instrumentos óticos e maravilhosos espelhos encantados pela magia".
Datei a notícia, assinei-a com o meu nome e imediatamente mandei tirar dela três cópias, para que no dia seguinte aparecesse ao mesmo tempo em todas as gazetas diárias da cidade do Rio de Janeiro.
IV
Que mal pode vir do bem?
Devo abster-me da visão do bem depois de haver experimentado uma vez as sensações mais deliciosas, a suavíssima consolação que ela assegura ?
O armênio me aconselhou que me abstivesse da visão do bem, declarando-a tão perigosa como a visão do mal; eu porém involuntariamente já infringi esse preceito do mágico...
Se há perigo na visão do bem, já pois inadvertidamente me expus a ele...
A falta, a desobediência estão cometidas...
Ainda mais: o armênio afirmou que hoje mesmo eu desobedeceria aos seus conselhos, e assim aconteceu sem que da minha parte houvesse intenção premeditada.
Portanto o que aconteceu tinha de acontecer.
Não seria estulta vaidade pretender levantar-me contra a fatalidade, resistir à lei da magia?
E a visão do bem me foi tão agradável!
Se eu não pude vencer o encantamento da visão do mal, que me fazia sofrer tanto, como poderei triunfar do encanto da visão do bem, que é tão deleitosa?...
Eu não sei se estou sofismando para me enganar a mim próprio, imaginando, inventando escusas e desculpas com o fim de serenar a minha consciência, que escrupulosa me repete os conselhos do armênio; sei porém e confesso que a curiosidade, um desejo irresistível me impelem com a mais viva força para o gozo da visão do bem, que já me encheu a alma de felicidade e de contentamento.
Eu sinto que há verdade e enlevo, beatificação da vida, amor da terra e dos homens, sorrir do coração, luz do céu iluminando a terra na visão do bem.
Quaisquer que sejam os perigos a que me arrisque pela visão do bem, de boa vontade os arrostarei.
E impossível que eu me torne desgraçado por ver o bem.
Perdão, armênio! doravante vou desobedecer-te intencionalmente.
Visão do bem! eu te quero, eu te adoro, eu te bendigo, e te aceito para guiar-me no caminho da vida.
V
Fixei a luneta e cheguei-me à janela do meu quarto: vi a prima Anica debruçada à janela do seu.
Lembrou-me a idéia que dos sentimentos dessa moça egoísta, fria, incapaz de amar, eu fizera pela visão do mal, e retirei a luneta com repugnância.
Momentos depois a reflexão me acudiu; e compreendi que exatamente pelo conhecimento que eu já tinha daquela mulher-cálculo, mulher-aritmética, mulher mais terra do que céu, mais matéria do que espírito: mais pó do que alma, era nela que melhor experimentaria a visão do bem.
E fitei a prima Anica, que parecia estar meditando.
Vi-lhe o rosto que eu conhecia, o sinalzinho azul que o engraçava, os cabelos formosos, e...
Passaram os três minutos, e o coração e a alma de Anica se abriram, se patentearam ao meu espírito perscrutador.
Oh! como fora caluniadora e perversa a visão do mal!
Anica é um anjo de inocência e simplicidade, e ao mesmo tempo uma senhora de juízo reto e de exemplar virtude. O que eu julgara nela gelo do coração era virginal recato, o que eu tomara por cálculo material e egoísta era a reflexão e a sabedoria instintiva de uma mulher-modelo; zelosa, sem ciúmes rudes e ridículos, econômica sem vileza, amante sem paixão em delício, serena, complacente, dedicada, livre do amor da ostentação e do luxo, de costumes simples, estremecida pela família paciente, suave, meiga, Anica é a mulher que reúne todos os dotes para felicitar o homem que for seu esposo.
Encontrei a minha imagem na alma de Anica; não porém como a visão do mal ma mostrou: encontrei-a amada, ternamente amada, encontrei-a cercada dos cuidados e do interesse de um sentimento tão profundo como generoso que só lembrava a minha fortuna, a minha riqueza com o receio de que fossem motivos que excitando a ambição de alguma outra mulher, prejudicassem às aspirações do seu amor desinteressado e puro.
Vi na alma de Anica também a imagem do mano Américo, mas somente afagada por inocente e mimosa afeição fraternal.
Horizonte sem nuvens, mar sem tempestades, céu de lua cheia luminoso e sereno, jardim de belas flores sem espinhos, terra de solidão sem florestas negras, nem abismos, nem antros de feras, tranqüilidade sem tristeza, saudade sem amarguras, flama sem incêndio, recato, modéstia, melindre, abnegação, amenidade, eis o que é a prima Anica.
De súbito ela volveu os olhos para a minha janela, percebeu que eu a fitava com a minha luneta mágica e sorriu-se docemente para mim.
Que sorrir! Foi como um raiar de aurora.
Deixei cair a luneta, e quase me ajoelhei para adorar a angélica moça.
Creio nos amores que de repente conquistam e escravizam os corações.
Creio nas paixões que de improviso se acendem.
Creio nos.
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