Não pode haver luta, vou sucumbir; cairei ao primeiro golpe.

O grito do primeiro garoto, a pedrada do primeiro menino malcriado será o anúncio do meu sacrifício

A voz geral brada que estou doido.

O médico que me tratou protesta que não estou doido; mas confessa que estou maníaco. A distinção não me salva.

Ficarei para sempre fechado neste quarto, ou, se aparecer na rua, gritarão mil vozes: "o doido! o doido!''

E arrastarão o doido para o hospício dos alienados...

E me arrancarão à força a minha luneta mágica, e hão de quebrá-la, destruir o poder da visão do mal!...

Oh! é horrível esta situação.

XLVIII

 

E de que me serve mais esta luneta fatal?...

Ela já me fez conhecer a sobras o mundo e os homens. Doravante nada mais pode ensinar-me que seja novo para mim.

Se ma arrancarem, se a quebrarem, ficarei em todo caso com a ciência que ela me deu;

Que a quebrem pois! Pouco importa.

O que me apavora é a incerteza e o medo dos transes, a que tenho de sujeitar-me.

Se ao menos eu soubesse, se eu pudesse prever o que se projeta, se planeja, e se realizará contra mim amanhã... de hoje a três dias, daqui a um mês ou mais tarde...

Se eu pudesse acabar de uma vez com esta incerteza que é o pior dos martírios...

Oh! . . .

O armênio me proibiu fixar a luneta mágica por mais de treze minutos, sobre o mesmo objeto, porque além de treze minutos começaria a visão do futuro.

A visão do futuro! . . . é a que eu aspiro, o que ardentemente agora desejo.

É verdade que o armênio também me assegurou que a visão do futuro me era negada, e que a luneta magica se quebraria entre meus dedos, se eu a fixasse sobre o mesmo objeto por mais de treze minutos.

Mas quem sabe se o armênio procurou enganar-me?... Quem me diz que ele não inventou esse meio, que não empregou essa proibição dolosa para impedir que eu chegasse até a visão do futuro e dela me aproveitasse?...

A visão do futuro me daria poder igual ao do mais abalizado mágico; com ela eu seria igual ao armênio...

Diz-me o coração que o armênio quis enganar-me, e que eu posso ter a visão do futuro; e por ela igualá-lo na extensão do poder mágico.

Quero fazer a experiência. Que me pode acontecer de pior?... quebrar-se a luneta entre os meus dedos... ora! . . . e sem a visão do futuro, de que, para que mais me serve esta luneta?...

XLIX

 

O desejo impetuoso, irresistível da visão do futuro dominou-me absolutamente.

Ardi por efetuar a experiência.

Mas o futuro que eu principalmente e antes de tudo almejava conhecer, era o meu.

Como era possível que eu fitasse a minha luneta mágica em mim próprio, no meu próprio rosto?...

Pensei debalde uma hora, e acabei entendendo que não há recursos para vencer o impossível.

Pois há! mercê do encanto prodigioso da minha luneta mágica. há.

Em um momento de inspiração que me pareceu feliz, lembrou-me de fitar a luneta na imagem do meu rosto refletida pelo vidro do espelho.

E saltei da cama, e corri ao espelho, e fitei na imagem do meu rosto a luneta mágica.

L

 

Vi-me pálido, abatido, desfigurado, vi-me outro, e muito diferente, do que eu ainda era um mês antes... vi meus olhos encovados, e meu olhar inquieto, cheio de flamas, e como que temeroso... vi sem dar importância ao que via, os senões e talvez os dotes físicos do meu semblante...

Eu estava ansioso pelo fim dos treze minutos; quase que não tinha consciência do que estava por força vendo... eu tremia, e esperava a visão do futuro: era a minha idéia exclusiva.

De súbito estremeci violentamente.

Oh! sem que eu nisso cuidasse, sem que eu com isso tivesse calculado, oh!... cheguei antes da visão do futuro à visão do mal!...

E quereis sabê-lo?... vi a minha perversidade!...

Meu Deus! isto e necessariamente mentira, ou castigo; meu Deus! eu não sou assim!...

Vi que sou o mais infame caluniador, e inimigo dos meus parentes! Vi que em frenesi de malvadeza infernal assaco aleives contra os homens, atiro aleives sobre nobres senhoras, e inocentes donzelas, ouso insultar ao pé dos altares os sacerdotes, respiro o mal, vivo do mal, semeio o mal...

Eu estava em convulsão... detestava-me... tinha horror de mim próprio, desprezo pela minha torpe individualidade, vi-me tão imundo, tão profundamente vil e asqueroso, que desejei cuspir, e, se pudesse, teria cuspido no meu rosto.

Vi-me ainda venenoso como a pior e a mais enraivada das serpentes; vi-me em fúrias de enraivadas atrocidades, possesso do demônio, vi-me morder em delírio todos os seres da criação, e maldito hediondo, horroroso, ultrajando a Deus, o criador.

Soltei um grito de pavor indizível, e apertando desesperado os dedos, quebrei, fiz em migalhas a luneta, e sem sentir a dor da mão ferida e ensangüentada pelos pedaços de vidro que tinham nela se entranhado, fui cair no leito chorando desabridamente, e por entre dolorosos soluços, bradando em alta voz:

  • Perdão!... perdão!... perdão!...
  • Fim da Primeira Parte

    Segunda Parte

     

    Introdução

     

    I

     

    Oito dias deixei-me clausurado em casa, maldizendo da minha infelicidade.

    Eu tinha recebido da experiência uma grande lição; mas como quase sempre acontece ao homem, veio-me a lição da experiência, quando não podia mais aproveitar-me.

    A Insaciabilidade do desejo para a causa determinante do meu maior infortúnio.

    Pobre míope o que eu mais ambicionara, por muito tempo debalde, consegui enfim obter um dia, tive uma luneta potente que deu a meus olhos a vista penetrante da águia.

    Alcançado beneficio tão grande, tesouro tão precioso, aquilo que se me afigurara impossível desejei mais!

    Quis ter e gozar a visão do mal, a que o armênio sabiamente me aconselhara não expor-me, esclarecendo-me sobre os seus perigos.

    Mas desejei e quis ter, e tive essa visão fatal, e por ela tornei-me o homem mais desgraçado.

    Não me corrigi ainda assim, e desejei a visão do futuro que me fora proibida, sob pena de quebrar-se em minhas mãos a luneta mágica.

    Desejei e quis ter a visão do futuro; mas antes de chegar a ela detestei a luneta que me inspirava horror de mim próprio, e em furioso ímpeto despedacei o vidro mágico, realizando-se desse modo a sentença do armênio.

    E agora os meus olhos ficaram sem luz, estou tateando as trevas, e o desejo de gozar com a vista a natureza é mil vezes mais ardente, do que outrora; porque eu já vi, e já sei o que perco não vendo, como pude ver.

    Ah! no outro tempo eu era como um cego de nascença, infeliz; ao menos porém não apreciando bastante a profundeza da minha miséria; agora eu sou o cego que já viu, que cegou depois de ter visto, e que sabe tudo quanto perdeu com a cegueira!...

    Maldita seja a insaciabilidade do desejo, que envenena a vida do homem, e que mil vezes o leva a sacrificar imenso bem que está gozando pela ambição de mais gozos ainda, e do que não lhe era preciso para a felicidade da vida!

    Eu já vivi no mundo da luz, e agora estou condenado, condenei-me a vegetar no cárcere das trevas.

    II

     

    O despedaçamento, a destruição da minha luneta mágica foi muito festejada pelos meus três parentes e pelo que me disseram, a notícia do fato mereceu as honras de uma gazetilha do Jornal do Comércio, espalhou-se pela cidade, e tranqüilizou o espírito da sua população que tanto se exaltara contra a visão do mal que eu possuía.

    O mano Américo teve a bondade de fazer-me ouvir um discurso consolador, em que me demonstrou que eu tinha sido vítima de um longo acesso de loucura; que eu nunca vira mais do que dantes; que a minha miopia não era suscetível de recurso ou socorro algum que me emprestasse vista, e que enfim, quebrando a luneta, eu me libertara de uma ilusão perigosíssima, e rematou o discurso com a eloqüente peroração, jurando que estava pronto a continuar a ver e pensar por mim.

    A tia Domingas mandou apanhar todos os pedaços do vidro que eu quebrara, e lançá-los ao mar, dizendo que havia neles malícia do diabo, de que eu estivera possesso, durante não poucas semanas, e manifestando finalmente a crença de que ao poder das suas orações fora devido o despedaçamento da luneta mágica, e de que a salvação da minha alma, e a doce tranqüilidade da minha vida teriam tanto mais segurança, quanto mais completa e irremediável fosse a minha miopia, que me livrara de enormes pecados.

    A prima Anica foi dos três parentes o único que teria podido fazer-me sorrir, se nos meus lábios fosse ainda possível ralar um sorriso suave, e haver no meu coração um resto de confiança para essa moça interesseira e egoísta.

    A prima Anica procurou convencer-me de que a minha luneta diabolicamente encantada me fizera ver os objetos ao contrário do que eles são na realidade, e que por isso mesmo eu devia acreditar e considerar formosa a senhora que me tivesse parecido feia ou menos bonita, e ter em conta de virtuosa, recatada e dedicadíssima aquela que pela visão do mal eu houvesse julgado loureira, má e calculista. Lembrou-me Cícero, pleiteando a própria causa.

    E logo depois dessa teoria sobre a luneta mágica, a prima perseguiu-me cruelmente para que eu lhe confiasse em segredo todas as revelações que eu recebera da visão do mal relativamente às senhoras do seu conhecimento. Uma vez, por inocente malícia, comuniquei-lhe uma apreciação cruel, talvez aleivosa, dos sentimentos, e do caráter da mais intima, e aparentemente mais estimada das suas amigas, que aliás eu não tivera ocasião de observar com a minha luneta.

    A prima Anica, ouvindo-me, exclamou:

    — É isso mesmo! exatíssimo juízo!...

    — Anica, disse-lhe eu; a minha luneta era diabólica, como você me assegura, e o que ela me fez apreciar e me mostrou, deve-se entender pelo contrário, segundo a sua opinião...

    — Primo, respondeu-me Anica sem hesitar, o diabo para enganar facilmente, às vezes diz e mostra a verdade.

    Eu fiquei profundamente convencido, de que houvera menos diabo na minha luneta mágica, do que havia nos pensamentos e nos sentimentos da prima Anica.

    III

     

    Depois do oitavo dia da minha voluntária clausura despertei no seguinte ao canto de um cenário que festejava a aurora.

    Levantei-me e fui debruçar-me a janela que abria para o jardim.

    O frescor suave das auras, o perfume das flores, o ruidoso acordar da cidade lembraram-me aquele anelado amanhecer do dia, em que eu fizera a primeira experiência da minha luneta mágica; e as arrebatadores impressões que eu recebera, podendo ver, e admirando a aurora, as flores, as borboletas, a natureza enfim.

    Os pesares, as sensações repugnantes, os tormentos e o horror da visão do mal como que se varriam da minha memória exclusivamente empenhada em avivar a saudade do bem que eu havia Perdido.

    Apoderou-se de mim melancolia tão profunda e sombria como era profunda e sombria a noite dos meus olhos.

    Passei um dia de silenciosa amargura, e arrependi-me mil vezes de haver quebrado a minha luneta mágica.

    Se eu tivesse sido mais prudente, e ainda mesmo dissimulado, por certo que não me teriam faltado meios de iludir quantos me cercavam e cercam, e de conservar a preciosa luneta.

    Agora é tarde, e o meu pungente arrependimento não me aproveita, e só duplica a aflição que me acabrunha.

    A cada momento vinham-me à lembrança o Reis e o armênio, o Reis tão bom e amável, tão complacente e obsequiador; o armênio tão hábil e tão sábio; tão poderoso em magia, e tão leal em seus conselhos.

    Lembrança inútil!

    Eu havia sido tão descortês, tão ingrato em meu proceder em relação ao Reis, que me não era licito pensar em ir de novo bater à sua porta, que ele tinha o direito de me fechar no rosto.

    E o armênio? Como poderia eu aparecer, mostrar-me diante dele depois da minha desobediência aos seus preceitos?...

    E todavia eu teimava sempre em lembrar-me do Reis e do armênio. . .

    E de instante a instante perguntava a mim mesmo, se o armênio ainda se conservava trabalhando nas oficinas do Reis...

    A idéia de voltar ao famoso armazém de instrumentos óticos da Rua do Hospício, começava a perseguir-me, a dominar-me, como a paixão mais violenta escraviza, e move, impele e arrebata a sua vitima.

    Dois únicos sentimentos ainda me tolhiam os passos: eram o vexame e o medo.

    IV

     

    E claro que eu estava em caminho adiantado para vencer o vexame, que me fazia hesitar em apresentar-me na casa do Reis.

    Todo o homem é mais ou menos egoísta e em proveito do seu egoísmo raro é aquele que em circunstâncias imponentes, em casos extraordinários não sacrifica simples consideração de delicadeza.

    Quantos homens ricos e maus que nunca deram esmola ao pobre, tornados mendigos pelo vaivém da fortuna, deixariam de estender a mão pedinte a algum recente herdeiro de inesperada riqueza, ao qual dantes tivesse por vezes respondido: Deus o favoreça?!...

    Eu não fiz tanto como isso: hei de pois dominar o meu vexame e ir à casa do Reis.

    Pedirei perdão com humildade, e luz para meus olhos, como um condenado à morte que pede a vida ao poder que e capaz de dá-la.

    O medo que eu tenho, é de sair à rua, de expor-me às zombarias, as vaias, à perseguição dessa gente que me detestou, que talvez me detesta ainda por causa da visão do mal.

    Em seu ódio, em seu empenho de vingança muitos conspiraram para que eu fosse reputado maníaco ou doido, e em todo caso perigoso e nocivo à sociedade.

    Horrível ameaça pesou sobre mim, e mais de uma voz, mais de um conselho sinistro apontava a conveniência de me recolherem ao hospício dos alienados.

    Eu tenho medo de aparecer a essa gente que maldizia de mim, e que pedia a minha prescrição, o encarceramento do doido.

    Tenho medo de sair à rua.

    V

    Refletindo bem, me parece que este medo chega a ser pueril.