Tenho duas presunções a favor da minha segurança, duas observações que destroem todos os fundamentos do medo.
Não se provou, conforme as exigências da lei que eu estivesse ou fosse doido; o pronunciamento de muitos homens irrefletidos apenas poderia indicar que eu era um excêntrico ou enfim possuído de esquisita mania, o que nem por isso prejudicava o meu juízo em relação a todas as circunstâncias e condições da vida particular e social.
Ora, na cidade do Rio de Janeiro não só não se recolhem ao hospício dos alienados os excêntricos e maníacos da ordem em que fui contemplado, como é certo que os excêntricos, e adoidados não reconhecidos legalmente doidos gozam privilégios de tolerância, e de indulgência, e quando algum deles ofende a sociedade, com o escândalo publico, em que compromete o decoro da família ou ataca de frente as mais veneráveis e santas considerações sociais, encontra impunidade certa, e desculpa segura na vos do povo que diz: "não se faça caso: aquilo tudo é excentricidade o homem tem suas manias mas no fundo é boa coisa".
Eu creio pois que não há lugar nem cidade como o Rio de Janeiro, em que se possa ser impunentemente e sem inconveniência pessoal não somente excêntrico e maníaco mas até doido, completamente doido, contanto que se traje de paletó escovado e se tenham meses ou dias de lucidez.
Afora esta importante consideração que deve utilizar-me, conto por mim o tempo, que ainda mais foi ajudado pela notícia da destruição ou despedaçamento da minha luneta mágica.
Perdida, quebrada a luneta, cessou o motivo da perseguição que moviam contra mim.
E lá vão oito dias!
Oito dias valem oito anos para memória e para as impressões mais fortes do povo da nossa capital.
Em oito dias regenera-se o político que a opinião pública irritada condenou.
Em oito dias do réu se faz o juiz do pleito em que fora réu.
Em oito dias as vezes a rocha Tarpéia se transforma em Capitólio.
Em oito dias corre o Letes por onde estava bramindo a memória de um escândalo.
Em oito dias a sociedade ligeira, inconstante, mudável, seria capaz de santificar o diabo.
Não há atividade de opinião que resista à extensão, à eternidade de oito dias na nossa capital.
O nosso povo é a certos respeitos povo um pouco francês.
Eu tenho por mim oito dias: refletindo assim, perdi o medo e vou sair a rua.
Ensaiarei um passeio de simples experiência, e se eu for feliz, se me deixarem em paz andar pela cidade, amanhã ou depois de amanhã irei à casa do Reis.
VI
Ao cair da tarde saí.
Em relação a meus olhos pouco importava que eu saísse de dia ou de noite; quis porem arriscar-me a aparecer à luz do crepúsculo para observar a impressão que a minha pessoa causava ao público.
Não me era possível apreciar expressões fisionômicas daqueles que reparassem em mim; mas eu tinha e tenho bom ouvido de cego, e não me escapariam nem o murmurar da maledicência, nem mesmo o sussurro da curiosidade revelada em trocas de palavras abafadas.
Caminhando vagarosamente, e com atenção dissimulada, porém viva, ouvi, e percebi o que alguns disseram, vendo-me passar.
— Míope ou antes cego, como dantes!
— Perdeu o encanto...
— Que encanto! caluniavam o pobre rapaz...
— Deveras?
— Foi vítima da mais cruel perseguição.
— Coitado!
— Querem-no cego para desfrutarem-lhe a fortuna...
— Que imoralidade!
Eis como pensavam e murmuravam quase todos ao considerarem o meu infortúnio.
Volúvel e caprichosa cidade! o seu juízo se modifica, e até muda completamente com o volver de alguns dias, e o objeto das maldições pouco a pouco se torna objeto de simpatias.
Estudai a capital; a nossa é provavelmente como todas as outras de iguais ou maiores proporções: os seus habitantes vivem sujeitos ao contagio moral dos sentimentos; uma opinião entra em moda, poucos a examinam e discutem, a novidade a recomenda, o contágio moral a espalha, mais tarde a reflexão começa a patentear-lhe as falhas, o espírito ressentido reage, a reação propaga-se por novo contágio, e se pronuncia fulminando-a, e então nem distingue o que ela pode ter de exatidão e de verdade entre os erros, aliás a principio aplaudidos como acertos.
A opinião pública é deslumbrante, mas leve e fugitiva; assemelha-se às fadas dos contos orientais, encanta, porém ilude; é igual às jovens formosas e facilmente apaixonadas, seduzem e cativam e mudam de amor em breve prazo.
Quando cheguei ao fim destas e de outras semelhantes reflexões, era noite, e eu me achava sentado em um dos bancos de pedra do jardim da Praça da Constituição.
Ninguém reparava em mim, senti-me ou isolado ou defendido pela indiferença de todos, e todavia, poucos dias antes eu tinha sido naquele mesmo lagar causa de alvoroço geral e vira a multidão fugir aterrada da minha presença, como se eu estivera na Ásia e afetado da poste negra.
É triste, miséria da humanidade! Aquela indiferença que em minhas apreensões desse mesmo dia, eu desejava tanto, e tanto pedira ao céu, aquela indiferença que era a paz que a população me concedia, acabou por fatigar-me, por despertar o ressentimento da mais estulta vaidade em minh'alma de pobre pecador.
A popularidade é sempre um pedestal em que o homem se levanta acima dos outros; mas a impopularidade também é pedestal, distingue pela reprovação ruidosa, e em vez de abaixar, também levanta, também arranca do vulgar a sua vítima, e para açoitá-la, eleva-a ao pelourinho, e mostra-a pela sua perseguição ou pelo seu ódio acima das proporções comuns da generalidade.
Eu já havia experimentado a distinção torturadora da aversão popular; eu já tinha sido notabilidade embora adiada, e senti-me abatido, desprezado, aviltado, reduzido à invisível nulidade pela indiferença com que me deixavam nem olhado no meu banco.
Houve um momento em que atiçado, impelido, enlouquecido pela influencia traiçoeira da mais estúpida vaidade, tive ímpetos de levantar-me, e de bradar àquela multidão que não me via: "olhai-me! persegui-me! eu tenho a visão do mal..."
Mas exatamente nesse momento alguém me tocou com a mão no ombro, e me disse ao ouvido:
— Até que enfim nos encontramos!
VII
Vi diante de mim e logo sentado a meu lado um vulto de homem, de quem não pude distinguir as feições e nem ao menos a moda e a cor dos vestidos.
— Quem é? perguntei.
— Pois a tal ponto se esqueceu de mim?...
— Se me conhecer, deve saber que sou quase cego.
— Sou o Reis.
Reconheci imediatamente a voz do Reis, mal pude abafar um grito que me rompia da alma e creio que teria caído de joelhos, se esse excelente homem não me tivesse contido.
— Perdão! balbuciei; eu fui um ingrato, perdão!
— Seja prudente, disse-me ele; conversemos em voz baixa; não convém que o reconheçam.
Apertei com ardor as mãos do meu bom amigo Reis, e ainda assim tive um pensamento suspeitoso, maligno; pois perguntei a mim mesmo, se a visão do mal não desmentiria as aparências tão eloqüentes e persuasivas da bondade, e do generoso caráter deste homem.
Era a dúvida, era o ceticismo que a visão do mal tinha inoculado no meu espírito
Guardei silêncio inexplicável pela desconfiança que me inspirava a humanidade; mas o meu egoísmo os cálculos do meu interesse pessoal fizeram com que eu mantivesse apertadas entre as minhas as mãos daquele, em que de novo eu depositava todas as esperanças, de remédio, de recurso, de socorro para a minha miopia.
— Então inutilizou a sua luneta? perguntou-me o Reis.
— É verdade: em um acesso de desespero pelo horror que tive de mim próprio, ousei praticar esse ato de loucura.
E referi miudamente toda a história dos prodígios da luneta mágica, e todos os desgostos que eu sofrera por ela.
— Também eu por minha parte não sofri pouco; porque perseguiram-me e há quem me persiga ainda por lunetas mágicas; mas com efeito é extraordinário, e incompreensível!...
— A luneta?
— Não; continuo a não acreditar no poder da cabala; é porém incompreensível a ilusão pasmosa dos seus sentidos.
— Não houve ilusão; eu juro...
— Juram do mesmo modo e com a mesma convicção quantos têm sido vitimas de igual ou semelhante exaltação enferma do espírito.
— Oh! eu era, como sou, tão míope que posso considerar-me cego, e mercê daquela admirável luneta vi distintamente, perfeitamente. . .
— Até ai creio, é possível; mas na famosa visão do mal não acredito.
— E todavia era real e incontestável.
— Eu só tenho fé em Deus, e creio somente na verdadeira ciência; se a magia fosse uma realidade, e eu quisesse explorá-la, ganharia milhões em poucos meses.
— Como?
— A mania do nosso armênio se agrava cada vez mais: ofendido pela incredulidade, e, diz ele, dedicado a minha pessoa pela influencia irresistível de não sei que fluido misterioso e inescrutável de que ele me fala, oferece-se para operar maravilhas, que tornariam o meu armazém em oficina encantada.
— Que maravilhas?
— Entre cem outras por exemplo as seguintes: óculos que façam ver o que se passa a mil léguas de distancia; pequenos espelhos polidos pela magia que reproduzam a imagem do rosto de uma velha com todas as graças da sua mocidade passada, binóculos, por um de cujos vidros, se veja todo o passado e pelo outro todo o presente da vida intima da pessoa que se observa; instrumentos de precisão ótica que patenteiem o ouro, as pedras preciosas, as riquezas e os segredos dos monstros oceânicos que se escondem por baixo das camadas da terra, no leito dos rios, e no fundo dos mares; lunetas e pince-nez que emprestam à mulher morena da Arábia e a mameluca do Brasil a palidez romanesca das filhas melancólicas da poesia dos sonhos, e aos olhos negros da caucasiana, e aos negros cabelos da espanhola os olhos cor do céu azul da inglesa, e os cabelos de ouro das princesas dos cantos de Ossian.
— É extraordinário!
— O armênio com efeito o é; quer saber? no dia e na hora, em que o senhor quebrou a sua luneta, ele veio ter comigo e disse-me: "a salamandra libertou-se: o seu míope quebrou a luneta magica".
— É possível?!!!
— Dois dias depois as folhas diárias da capital deram conta do caso.
— E onde esta o armênio?
— Sempre encerrado em seu gabinete prestigioso no fundo do nosso armazém.
— Adivinhou então o meu infortúnio?
— E espera-o.
— Espera-me?
— Assegurou-me que o senhor nos procuraria amanhã: marcou-me o dia.
— Ainda esta!. era a minha idéia; confesso-o. E não o espanta essa previdência do futuro? Essa vidência do pensamento alheio?
— Espanta-me por certo; mas sei também que a ciência está longe de ter pronunciado sua última palavra sobre os assombrosos fenômenos do magnetismo..
— E o armênio
— Conta com a sua visita.
— Eu hesitava e temia...
— E ele assegura que dará novo e infalível recurso para vencer a sua miopia, novo e infalível porém não o mesmo.
— E se eu bater à sua porta?...
— A porta da nossa casa abre-se a todos os homens, que vão bater a ela, e para os honestos, para os honrados nunca houve hora em que não se abrisse.
— Irei amanhã.
— É o dia marcado pelo armênio.
— Marcou ele também a hora?
— Disse que do dia e da hora a escolha lhe pertence e que do dia e da hora depende a condição benigna ou maléfica do socorro que lhe poderá dar.
— E qual a hora mais propícia?
— Não quis dizer.
— Em todo caso terei luz para os meus olhos?
— Terá, conforme ele assevera.
— Depois da meia-noite começa o dia de amanhã: irei depois da meia-noite... estou ansioso... irei, se a sua bondade chega a tolerar a minha visita em horas, em que o descanso e o sono é um direito de todos.
— Hei de velar esta noite; não creio na magia; quero, porém, desejo e peço uma segunda experiência do poder desse armênio que se presume mágico, e se julga capaz de realizar impossíveis.
— Espere-me, pois que eu irei.
— Quer que previna o armênio?...
— Como lhe parecer melhor.
— Em tal caso prefiro experimentar, se espera e adivinha a sua visita. Não o prevenirei.
— Conte pois comigo; mas... depois da meia-noite.
— Por que tão tarde?...
— Não sei: instintivamente desejo falar ao armênio em hora mais próxima do dia...
— Achar-me-á velando.
O Reis levantou-se e, depois de me apertar a mão, retirou-se.
VIII
Fiquei só, refletindo.
Eu ia de novo recorrer a magia, e, se alcançasse outra e igualmente poderosa luneta, talvez expor-me de novo às perseguições do povo.
Ter uma luneta mágica para não usar dela, seria criar para mim o martírio de Tântalo.
Usar da luneta mágica novamente obtida seria perigo quase certo para a minha segurança.
Reproduziram-se pois as minhas tristes apreensões, e os meus cuidados, e se me antolhava um tormento que ainda não provara, a certeza da visão, ou a impossibilidade de exercê-la pelo medo da perseguição. . .
Portanto era minha sina sofrer sempre, ser sempre como o proscrito dos homens!
E todavia em todo caso eu desejava, eu queria poder ver.
Mas se a magia era uma ciência sobrenatural, porém verdadeira, pois que operava as maravilhas que eu experimentara, e contava ir experimentar, por que não poderia ela também livrar-me da reprovação publica e torná-la mesmo se não em estima ao menos em tolerância ou indulgência?
Resolvi-me a falar sobre este assunto ao mágico, a quem regato capaz de realizar impossíveis.
Não compreendo, não posso admitir a pertinácia, com que o meu amigo Reis nega-se a reconhecer o miraculoso poder do armênio.
Ou eu me engano muito, ou anda ai receio pueril de expor-se ao ridículo, e de passar por explorador de suposto charlatanismo na opinião dos espíritos fortes.
Os espíritos fortes! Não conheço espíritos mais fracos do que esses que se dizem fortes. A sua força consiste na negação de tudo quanto não podem explicar ou pelos sentidos ou pela sua razão que só resolve dentro do círculo das idéias que recebe pelos sentidos. A sua negação 6 pois um trono consagrado à ignorância, e firmado no materialismo.
Dantes eu não sabia reconhecer a profundeza destes erros filosóficos; graças porém à influência da minha luneta mágica, e principalmente à visão do mal, acho-me curado da minha miopia moral.
Faz-me pena, não digo a incredulidade, porque não a admito, mas a obstinação do meu amigo Reis.
Um homem que tem nas suas oficinas um mágico da força do armênio, e mágico que lhe oferece prodígios, teima em não querer experimentar ao menos a capacidade extraordinária, os trabalhos estupendos desse esclarecido adepto da cabala.
Só o receio do ridículo, e o respeito exageradíssimo aos espíritos fortes pode explicar semelhante procedimento.
Pois eu tenho para mim que em proveito da humanidade, e em especial serviço ao público brasileiro, devo comprometer tanto quanto me for possível o Reis.
Se eu conseguir, como espero, segunda luneta mágica tão admirável como foi a primeira, anunciarei pelos Jornais a existência do armênio nas oficinas do Reis, e a diversidade e surpreendentes condições dos instrumentos óticos que ele pode temperar no fogo da magia.
Tenha o amigo Reis paciência, hei de comprometê-lo, e as justas exigências dos seus fregueses e do público o obrigarão a aproveitar-se da habilidade magica do armênio, e a facilitar a todos os instrumentos óticos por este preparados.
Se assim não quisesse, cumpria-lhe não ter e não conservar esse mágico em suas oficinas.
IX
Empreguei tanto tempo nestas reflexões, que de súbito as interrompi, quando o guarda do jardim veio dizer-me que era tempo de retirar-me, pois ia trancar as grades.
A noite se adiantava.
Deixando o jardim, pensei que não me convinha recolher-me a casa.
Meu irmão, minha tia, e a prima Anica bem poderiam desconfiar do meu primeiro e prolongado passeio depois da inutilização da luneta mágica, e ficando alerta, embaraçar a minha saída de casa em desoras.
Achei prudente este juízo, e resolvi-me a matar o tempo, passeando pelas ruas desertas da cidade.
E passeei... e andei, como o judeu errante; ninguém me perguntou quem eu era, nem me espiou os passos.
Míope nada vi; mas distraí-me, ouvindo o ruído anunciador da negligencia da autoridade pública.
Ouvi o ressonar de mais de um indigente que dormia nos degraus do alpendre de uma igreja, e perguntei a mim mesmo se não havia na capital do Império um asilo para a indigência sem teto, para a miséria esfarrapada e sem recurso.
Ouvi as juras e os protestos de jogadores infelizes ou roubados, que saiam em furor de uma casa, onde se cantavam árias italianas ao som do piano na sala da frente, e se arruinavam fortunas ao lansquenê em alguma saia do interior; e perguntei a mim mesmo por que a polícia, que invade a alçada de todos os poderes do estado, não manda trancar as portas das casas públicas de jogo, onde tantos mancebos devastam as riquezas de seus pais, tantos caixeiros fazem paradas à custa das gavetas dos amos, tantos inespertos são criminosamente despojados por jogadores trapaceiros.
Ouvi o estrépito da orgia das famosas mulheres impudicas, e dos velhos ricos, e jovens viciosos que de copo de champanha em punho, e com a voz da lascívia nos lábios entoavam cantos obscenos em honra do ridículo da velhice, da corrupção da mocidade, e do desavergonhamento da nudez e do o próbrio do sexo, do recato, do pudor, e da honestidade; e perguntei a mim mesmo que exemplo davam aos filhos esses velhos, que esperanças devam à pátria esses Jovens, que futuro esperavam as esposas e as filhas dos primeiros, as mães e as irmãs dos segundos.
Ouvi...
Deus me livre de dizer tudo quanto ouvi, rebentando do interior de certas casas, ou falando sem reserva nas ruas ao ruído abafado ou a algazarra vergonhosa do vício em dissimulação ou em desenvoltura.
Ouvi finalmente no dobre de alguns sinos o sinal de três horas da madrugada, e dirigi-me então a Rua do Hospício.
Como da primeira vez o Reis me esperava à porta de sua casa.
X
Entrei.
Eu achava-me fatigado do longo passeio e pedi licença para descansar alguns momentos.
Sentei-me e respirei afadigado.
O Reis se conservou em silêncio ate que lhe perguntei:
— O armênio?
— Sem dúvida está no seu gabinete; não o preveni.
Eu não posso ver o que porventura terá de se passar dentro em pouco; conto com a sua condescendência para referir-me por miúdo o que não me 6 dado apreciar pela vista.
— Pode estar certo disso.
— Bem; já descansei: vamos procurar o armênio.
O Reis tomou-me o braço e disse:
— Vamos; se ele é, como pretende, verdadeiro mágico, deve ter adivinhado a sua visita; se o não é, surpreendê-lo-emos ou descuidado, ou dormindo.
E tínhamos apenas avançado um passo, quando o armênio mostrou-se à porta do fundo do armazém, trazendo na mão uma lanterna furta-fogo.
— Eu adivinhei a tua visita, mancebo, disse ele.
E fitando o Reis, acrescentou:
— Reconheça-me pois verdadeiro mágico.
O Reis não respondeu; evidentemente ficara confundido.
O armênio adiantou alguns passos para nós, e dirigindo-se a mim, disse-me:
— Criança! não te acuso pelo que fizeste: a tua desobediência aos meus conselhos era um fato previsto pela magia; es homem, tinhas de errar, como erraste.
— Não errarei outra vez, balbuciei humildemente,
— Errarás sempre, e tornarás a desobedecer-me.
— Não!
— Vê-lo-ás.
— Então conseguirei deveras outra luneta mágica?
— Sim, se a exiges.
— Peço-a de joelhos.
— Criança! para que teimas em querer ver?...
— Porque ver é viver.
— Eu te anunciei da outra vez que o que me pedias era o mal, o gelo do coração, o ceticismo na vida, e sabes que não te enganei.
— Mas ao menos eu vi, e agora de novo me acho cego.
— Criança! tu escolheste um dia benéfico, um domingo, uma hora propícia, a que antecede apenas ou vê despontar a aurora; ainda assim porém tu veras demais!
— Embora!
— Pedes-me uma segunda luneta mágica que te será fatal como a primeira.
— Já tenho por mim a experiência.
— Será o engano infantil na vida...
— Aceito!
— Será a credulidade insensata.
— Aceito!
— Será a inocência indefesa.
— Aceito!
— Será a zombaria do mundo e a cegueira da razão.
— Aceito!
— Por que, criança?…
— Porque eu quero ver.
— Verás demais!
— Aceito.
— Eu o sabia, e tanto que o altar está pronto e nos espera; já evoquei os espíritos elementares: nada falta; vamos.
Mas ao primeiro passo, o armênio levantou a lâmpada, inundou-nos de luz, e disse:
— Trazes vestidos de cor preta, que e antipática a Júpiter, cujo dia é hoje.,,
E fez com a mão um sinal que eu não vi com os olhos; mas a que obedeci, ficando imóvel, e como preso ao lugar que meus pés pisavam.
O armênio saiu do armazém para ir ao seu gabinete.
O Reis silencioso, eu estático, respirávamos apenas, dominados pelo prestigio do mágico que em breve tornou a aparecer, trazendo uma túnica de pano branco bordada de triângulos de prata.
Cumprindo as ordens do mágico tirei a sobrecasaca, o jaleco e a gravata que eram de cor preta, e vesti a túnica.
— Agora vamos, repetiu ele.
O Reis e eu seguimos em silêncio o mágico.
XI
Não pude ver o que se passou desde que entramos no gabinete do armênio até o fim da operação mágica; referirei porém o que o meu amigo Reis me contou com inteira verdade e profunda admiração.
Cumpre-me declarar que o meu amigo insiste em não acreditar na magia; confessando porem não poder explicar e menos negar os prodígios de que foi pela segunda vez testemunha.
O Reis jurou culto e fé às ciências físicas e fanático por elas não quer ver o maravilhoso e o sobrenatural que lhe está entrando pelos olhos, nem sentir o que está tocando os seus sentidos.
Todavia leal e nobre, o meu amigo referiu-me quanto viu e que vou repetir, e apelo para o seu testemunho que é insuspeito por ser testemunho de incrédulo.
O armênio que nos conduziu ao seu gabinete, trajava vestido de púrpura com tiara e braceletes de ouro; trazia no dedo competente anel de ouro com um rubim, e na cabeça barrete ainda de púrpura com o pentagrama bordado de prata.
A porta do gabinete magico abriu-se em par a um simples aceno da mão direita do armênio
O interior do gabinete estava resplendente de luz, e todo ornado das mesmas figuras e símbolos da cabala, que na primeira operação magica se observaram; as cores porém eram outras e diferentes; as paredes estavam pintadas de vermelho vivo, tendo em cor de ouro as vinte e duas chaves do Tarot, e os sinais dos sete planetas; o teto era azul como o céu no dia mais sereno, tendo no centro a figura do pentagrama fulgurando, como se fosse fogo, como se tivera tomado de empréstimo o brilho do sol mais ardente.
A mesa que servia de altar da magia mostrava-se coberta com um imenso pano branco, alvíssimo, tendo figuras cabalísticas sem numero bordadas em ouro. O chão era tapizado de peles de leão, que conservavam o aspecto exterior das cabeças dessas feras, e cujos olhos flamejavam abertos.
Os instrumentos da magia, os símbolos que enchiam o altar e o gabinete eram ainda os mesmos, a vara mágica porém tinha terminando-lhe a ponta um quase imperceptível triângulo de ouro.
Coroas de louro e de heliotrópio ornavam o altar, no qual a figura sinistra do diabo fora substituída por uma pomba, em cujo peito aberto entrava uma serpente que lhe mordia e devorava o coração.
Nós tínhamos penetrado no gabinete, e o mágico se sentara e se concentrara.
Um galo cantou seguidamente três vezes.
O armênio levantou-se e bradou: "Uriel! Zadklel! Gehudiel!... Oriphiel! . . . "
E na parede sobre o altar esses quatro nomes surgiram em caracteres de fogo, como as palavras proféticas no festim de Baltazar. O mágico tomou em suas mãos a lâmpada mágica que estava já ardente, e levou-a, dando três passos para o lado do Ocidente, e depois depositou-a outra vez no altar; mas no ângulo ocidental dele.
Em seguida firmou no meio do altar sem esforço nem artifício apreciável um finíssimo tubo de vidro azul de palmo e meio de altura e de diâmetro igual em toda sua extensão, tendo à meia polegada da extremidade inferior um orifício em que a custo entraria um fio de seda, e na extremidade superior um triângulo de ouro perfurado, e apenas perceptível.
Sobre esse triângulo o armênio colocou o vidro côncavo destinado à luneta: o equilíbrio, a firmeza do tubo de vidro sobre o altar, do vidro sobre o triângulo não tinha explicação aceitável; mas era real.
O galo cantou de novo três vezes.
O mágico estendeu o braço para tomar a vara mágica: mas ouvindo o piar de uma coruja, empunhou a espada e manejou-a no espaço, exclamando: "Zadklel! Zalriel! Oriphiel!" .
O piar da coruja cessou, o galo repetiu seu canto, e o armênio atirou longe de si a espada, do cuja ponta saiu uma flama que foi embeber-se no pentagrama que radiava no teto.
Tomando então a vara magica o armênio mergulhou o triângulo em que ela terminava a sua ponta na flama da lâmpada e dela tirou e levou um fio de fogo até o orifício do tubo de vidro azul.
O tubo acendeu-se, ou pareceu acender-se todo. O mágico lançou imediatamente sobre a flama da lâmpada cinamomo, incenso, açafrão, e sândalo rubro, e o fumo perfumado foi sair pela extremidade superior do tubo de vidro, envolvendo em ondas aromáticas o vidro côncavo que descansava sobre o triângulo de ouro.
Pela terceira vez o galo cantou três vezes, e não se ouviu piar de coruja.
O armênio radiante e ufanoso levantou o braço e firmou a vara mágica uma polegada acima do vidro côncavo, e do triângulo do vidro azul em fogo.
Um minuto depois uma faisca cor de sangue negro saiu do fogo do vidro azul e pregou-se no triângulo da vara mágica; mas o armênio sacudiu três vezes a vara, dizendo: gnomo! para os vulcões!
E a faisca apagou-se.
Dois minutos depois outra faisca amarela desmaiada, rompendo do vidro azul foi tocar no triângulo de ouro da vara mágica; mas o armênio bradou: ondina! para o seio das fontes e para o fundo dos mares!
E a faisca logo se apagou, como a primeira.
Três minutos depois terceira faisca, e essa cor de sangue negro surgiu do mesmo ponto e pareceu querer embeber-se na áurea extremidade da vara mágica; o armênio porém bradou: salamandra! para o fogo do inferno!
E a faisca se apagou e o solo e a casa estremeceram debaixo de nossos pés.
E no fim de quatro minutos ainda uma faisca brilhante se desprendeu do vidro azul, e começou a embeber-se no ângulo em que terminava em ponta o triângulo da vara mágica.
— Quaternário! exclamou o armênio; absorve-te, e depois liquefaz-te, silfo, e liquefeito, te exagera no bem!
E a faisca pouco a pouco se foi embebendo na fina ponta da vara mágica, que ainda ficou imóvel e firme sobre o vidro côncavo...
Passou um minuto, e caiu da ponta da vara mágica uma gota d'água semelhante a uma lágrima no vidro côncavo, que a observou.
E a pomba que tinha o peito aberto exalou um gemido.
Passaram dois minutos, e caiu da ponta da vara mágica outra gota d’água, outra lágrima, que também se embebeu no vidro côncavo, e a pomba cujo peito estava aberto, e o coração era mordido pela serpente gemeu duas vezes.
Passaram três minutos e terceira gota d'água, terceira lágrima caiu da ponta da vara mágica, e foi embeber-se no vidro côncavo, e a pomba que mostrava o peito aberto e a serpente a morder-lhe e a devorar-lhe o coração, gemeu três vezes.
— Ternário! exclamou o armênio e abaixou a vara mágica.
O gabinete que parecera arder em incêndio de repente passou a mostrar-se em suave luz de crepúsculo da tarde.
O armênio retirou da extremidade do vidro azul, cujo fogo se apagara, o vidro côncavo, lavou-o com água perfumada que derramou da taça mágica, enxugou-o com o pano que forrava o altar, armou-o em um finíssimo aro de prata, imprimiu neste o selo cabalístico, e enlaçou no anel da luneta um fio de cabelo loiro, que engrossou subitamente, tomando a forma e proporções de um trancelim de ouro.
Logo depois o armênio pronunciou uma palavra cabalística, cujo sentido só ele compreendeu, e por breves momentos a luz se apagou e reinou a escuridão.
Ouvimos um grito: — retorno!...
O grito pareceu-nos vir de fora e de longe, e logo duas janelas se abriram no gabinete, e o raiar suave da aurora, e o despontar do dia deu-nos a claridade duvidosa e romanesca que precede ao esplendor do sol.
O gabinete mágico desaparecera por encanto: achamo-nos o Reis e eu diante do armênio em um quarto modesto, de paredes brancas e nuas, contando apenas em seu interior uma rude mesa, uma cadeira, e um leito humilde.
— Sou o pobre que dá tesouros, disse o armênio.
E entregando-me a luneta, continuou:
— Dou-te pela segunda vez uma luneta mágica: veras por ela quanto desejares ver; veras muito; mas poderás ver demais. Criança! dou-te um presente, que te pode ser funesto; ouve-me com atenção: não fixes esta luneta em objeto algum, e sobretudo em homem algum, em mulher alguma por mais de três minutos; três é o numero simbólico e para ti será, como na outra, o numero simples, o da visão da superfície, e das aparências: não a fixes por mais de três minutos sobre o mesmo objeto; porque além de três minutos, hás de ter a visão do bem, que o meu poder de mágico não te pode impedir, pois a visão do bem será a vingança do silfo que escravizei para teu serviço.
— Eu te obedecerei! respondi.
— Hoje mesmo me desobedecerás, tornou o armênio com voz lúgubre.
— Não! Juro que não!
— Vê-lo-ás, tornou ele, e prosseguiu: terás a visão do bem e hás de ser por ela infeliz; veras demais no presente, e poderias ler no futuro, fixando-a por mais de treze minutos sobre o mesmo
objeto; eu tenho porem piedade de ti, e te proíbo ainda a vidência do futuro: Cashiel! Schaltiel! Aphiel! Zarabiel! eu impeço a vidência do futuro a este mancebo, e esta luneta quebrar-se-á em suas mãos antes do décimo quarto minuto de fixidade.
E mal acabou de falar, o armênio deitou-se no seu leito, fechou os olhos, e imediatamente dormiu.
XII
O meu amigo Reis levou-me do gabinete do armênio para o armazém.
— E então? perguntei-lhe...
— Não sei... não sei... não sei... repetiu o Reis, respondendo-me; este homem parece o. demônio...
— Duvida ainda?
— Não posso explicar o que testemunhei; mas duvido sempre.
— É demais!
— Vá ensaiar a sua luneta, e volte a dizer-me o que ela é; preciso saber tudo...
Foi só ouvindo esse convite do meu amigo Reis que me lembrou o pedido importantíssimo que eu devia fazer ao mágico.
— Ah! exclamei; esqueceu-me pedir ao armênio algum encanto, algum talismã que me pusesse a salvo da perseguição popular. Eu não poderei usar a minha luneta sem expor-me aos maiores perigos . . .
— Podes! disse uma voz grave: nada receiem
Era o armênio que me mostrara à porta do fundo do armazém, e que apenas acabou de pronunciar essas palavras, se retirou, desaparecendo como uma visão misteriosa.
Despedi-me logo depois do meu amigo Reis que ficara mudo de surpresa e admiração.
Era dia; venci porém a minha ardente ansiedade, resolvido a fazer o primeiro ensaio da minha nova luneta mágica em minha casa, a sós, e livre de qualquer curioso observador.
Fim da Introdução à Segunda Parte
Visão do Bem
I
O armênio e um mágico sublime.
A minha nova luneta é na visão das aparências ou igual ou superior a primeira.
Agora sim, creio que devo e posso considerar-me feliz; feliz porque possuo tão precioso instrumento ótico, feliz porque me é dado usar dele sem perigo.
Fiz o primeiro ensaio da minha nova luneta mágica, fitando-a de longe e às ocultas sobre os meus três parentes, e vi-os, distingui as feições de qualquer deles como as distinguira com a outra luneta, e até cheguei a ver mais, pois percebi um sinalzinho azul no meio da face esquerda da prima Anica, sinalzinho que lhe dá na verdade uma certa graça ao rosto.
Seguro da força do maravilhoso instrumento ótico, aumentou ainda mais a minha confiança no armênio, e resolvi logo pôr em prova a certeza que ele me dera de que eu poderia sem receio de perseguição ou de perigo algum usar da minha luneta mágica.
Apesar disso cumpre-me confessar que foi com algum abalo do coração e com a mão trêmula, que, ao sentar-me a mesa do almoço em companhia dos meus três parentes, prendi a um dos olhos por dois minutos a luneta mágica.
— Oh! temos nova luneta? disse sorrindo o mano Américo.
— É verdade, e ótima, como... a outra.
— Como a outra não, observou a tia Domingas; esta me parece diferente e não me faz mal aos nervos, como aquela que felizmente se quebrou.
O meu espanto não pode ser maior.
— Vê bem? Vê muito?...
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