Pode ser que me acusem por não tê-la conservado debaixo de minhas vistas por mais tempo, para corrigir suas imperfeições; esse era o meu primeiro intento. A Moreninha não é a única filha que possuo[12]: tem três irmãos que pretendo educar com esmero[13]; o mesmo faria a ela; porém, esta menina saiu tão travessa, tão impertinente, que não pude mais sofrê-la no seu berço de carteira[14] e, para ver-me livre dela, venho depositá-la nas mãos do público, de cuja benignidade e paciência tenho ouvido grandes elogios.
Eu, pois, conto que, não esquecendo a fama antiga, o público a receba e lhe perdoe seus senões[15], maus modos e leviandades[16]. É uma criança que terá, quando muito, seis meses de idade; merece a compaixão que por ela imploro; mas, se lhe notarem graves defeitos de educação, que provenham da ignorância do pai, rogo que não os deixem passar por alto; acusem-nos, que daí tirarei eu muito proveito, criando e educando melhor os irmãozinhos que a Moreninha tem cá.
E tu, filha minha, vai com a bênção paterna e queira o céu que ditosa sejas. Nem por seres traquinas te estimo menos; e, como prova, vou, em despedida, dar-te um precioso conselho: – recebe, filha, com gratidão, a crítica do homem instruído; não chores se com a unha marcarem o lugar em que tiveres mais notável senão, e quando te disserem que por este erro ou aquela falta não és boa menina, jamais te arrepies, antes agradece e anima-te sempre com as palavras do velho poeta:
“Deixa-te repreender de quem bem te ama,
Que, ou te aproveita ou quer aproveitar-te.”
[1] “(...) às quais me atrevi a dar o nome de romance (...)” – nota-se a presença de um narrador/autor em primeira pessoa, o qual mantém uma proximidade muito grande com o leitor durante toda a obra, uma característica do romance indianista moderno. Joaquim Manuel de Macedo foi dos percussores desse estilo neste período literário.
[2] bem a coberto com – locução prepositiva que significa a salvo, protegido, livre de.
[3] rojando – rastejando, arrastando.
[4] buliçoso – que nunca está quieto, agitado.
[5] trinta noites – alusão ao período em que se passa a história, ou seja, 30 dias.
[6] garatujando – rabiscando, escrevendo o que vem a ser lido.
[7] desenfado – distração, sossego de espírito, pausa para o descanso.
[8] Itaboraí – município brasileiro que fica no Rio de Janeiro.
[9] bulício – grande movimentação de pessoas, motim, inquietação.
[10] maçar – importunar.
[11] balda – ausência de; sem merecimento; algo inútil; sem obrigação.
[12] “A Moreninha não é a única filha que possuo (...)” – observamos novamente um narrador/autor muito próximo não apenas de seus leitores, mas também de sua criação. Ele traz essa característica intimista durante todo o livro, considerando seus personagens principais como filhos. Note que a “A Moreninha”, sempre que comentada por ele, trará características de uma heroína moderna.
[13] esmero – máxima perfeição, cuidado extremo.
[14] berço de carteira – expressão popular que significa não deter mais alguém em suas origens, em sua terra natal.
[15] senões – plural da palavra “senão” que significa de outro modo; aliás.
[16]16. leviandades – falta de prudência, falta de pensar e inconstância.
I
Aposta imprudente
Bravo! exclamou Filipe, entrando e despindo a casaca, que pendurou em um cabide velho. Bravo!... interessante cena! mas certo que desonrosa[17] fora para casa de um estudante de Medicina e já no sexto ano, a não valer-lhe o adágio[18] antigo: – o hábito não faz o monge[19].
– Temos discurso!... atenção!... ordem!... gritaram a um tempo[20] três vozes.
– Coisa célebre! acrescentou Leopoldo. Filipe sempre se torna orador depois do jantar...
– E dá-lhe para fazer epigramas[21], disse Fabrício.
– Naturalmente, acudiu Leopoldo, que, por dono da casa, maior quinhão[22] houvera no cumprimento do recém-chegado; naturalmente. Bocage[23], quando tomava carraspana[24], descompunha os médicos.
– C’est trop fort![25] bocejou Augusto, espreguiçando-se no canapé[26] em que se achava deitado.
– Como quiserem, continuou Filipe, pondo-se em hábitos menores; mas, por minha vida, que a carraspana de hoje ainda me concede apreciar devidamente aqui o meu amigo Fabrício, que talvez acaba de chegar de alguma visita diplomática, vestido com esmero e alinho, porém, tendo a cabeça encapuzada com a vermelha e velha carapuça[27] do Leopoldo; este, ali escondido dentro do seu robe de chambre[28] cor de burro quando foge, e sentado em uma cadeira tão desconjuntada[29] que, para não cair com ela, põe em ação todas as leis de equilíbrio, que estudou em Pouillet[30]; acolá, enfim, o meu romântico Augusto, em ceroulas[31], com as fraldas à mostra, estirado em um canapé em tão bom uso, que ainda agora mesmo fez com que Leopoldo se lembrasse de Bocage. Oh! V. Sas. tomam café!... Ali o senhor descansa a xícara azul em um pires de porcelana... aquele tem uma chávena[32] com belos lavores dourados[33], mas o pires é cor-de-rosa... aquele outro nem porcelana, nem lavores, nem cores azul ou de rosa, nem xícara... nem pires... aquilo é uma tigela num prato...
– Carraspana!... carraspana!... gritaram os três.
– Ó moleque! prosseguiu Filipe, voltando-se para o corredor, traze-me café, ainda que seja no púcaro[34] em que o coas; pois creio que a não ser a falta de louças, já teu senhor mo teria oferecido.
– Carraspana!... carraspana!...
– Sim, continuou ele, eu vejo que vocês...
– Carraspana!... carraspana!...
– Não sei de nós quem mostra...
– Carraspana!... carraspana!...
Seguiram-se alguns momentos de silêncio; ficaram os quatro estudantes assim a modo de moças quando jogam o siso. Filipe não falava, por conhecer o propósito em que estavam os três de lhe não deixar concluir uma só proposição, e estes, porque esperavam vê-lo abrir a boca para gritar-lhe: carraspana!...
Enfim, foi ainda Filipe o primeiro que falou, exclamando de repente:
– Paz! paz!...
– Ah! já?... disse Leopoldo, que era o mais influído.
– Filipe é como o galego[35], disse um outro: perderia tudo para não guardar silêncio uma hora.
– Está bem, o passado, passado; protesto não falar mais nunca na carapuça, nem nas cadeiras, nem no canapé, nem na louça do Leopoldo...
1 comment