ah!... ah!... e como ele diz aquilo!
– Ou, se querem, precisarei melhor o meu programa sentimental; lá vai: afirmo, meus senhores, que meu pensamento nunca se ocupou, não se ocupa, nem se há de ocupar de uma mesma moça quinze dias.
– E eu afirmo que segunda-feira voltarás da ilha de... loucamente apaixonado de alguma de minhas primas.
– Pode bem suceder que de ambas.
– E que todo o resto do ano letivo passarás pela rua de... duas e três vezes por dia, somente com o fim de vê-la.
– Assevero[54] que não.
– Assevero que sim.
– Quem?... eu?... eu mesmo passar duas e três vezes por dia por uma só rua, por causa de uma moça?... e para quê?... para vê-la lançar-me olhos de ternura, ou sorrir-se brandamente[55] quando eu para ela olhar, e depois fazer-me caretas ao lhe dar as costas?... para que ela chame as vizinhas que lhe devem ajudar a chamar-me tolo, pateta, basbaque[56] e namorador?... Não, minhas belas senhoras da moda! eu vos conheço... amante apaixonado quando vos vejo, esqueço-me de vós duas horas depois de deixar-vos. Fora disto só queimarei o incenso da ironia no altar de vossa vaidade; fingirei obedecer a vossos caprichos e somente zombarei deles. Ah!... muitas vezes, alguma de vós, quando me ouve dizer: “sois encantadora”, está dizendo consigo: “ele me adora”, enquanto eu digo também comigo: “que vaidosa!”
– Que vaidoso!... te digo eu, exclamou Filipe.
– Ora, esta não é má!... Então vocês querem governar o meu coração?...
– Não; porém, eu torno a afirmar que tu amarás uma de minhas primas todo o tempo que for da vontade dela.
– Que mimos de amor que são as primas deste senhor!...
– Eu te mostrarei.
– Juro que não.
– Aposto que sim.
– Aposto que não.
– Papel e tinta, escreva-se a aposta.
– Mas tu me dás muita vantagem e eu rejeitaria a menor. Tens apenas duas primas; é um número de feiticeiras muito limitado. Não sejam só elas as únicas magas que em teu favor invoques para me encantar. Meus sentimentos ofendem, talvez, a vaidade de todas as belas; todas as belas, pois, tenham o direito de te fazer ganhar a aposta, meu valente campeão do amor constante!
– Como quiseres, mas escreve.
– E quem perder?...
– Pagarás a todos nós um almoço no Pharoux[57], disse Fabrício.
– Qual almoço! acudiu Leopoldo. Pagará um camarote no primeiro drama novo que representar o nosso João Caetano[58].
– Nem almoço, nem camarote, concluiu Filipe; se perderes, escreverás a história da tua derrota, e se ganhares, escreverei o triunfo da tua inconstância.
– Bem, escrever-se-á um romance, e um de nós dois, o infeliz, será o autor.
Augusto escreveu primeira, segunda e terceira vez o termo da aposta, mas depois de longa e vigorosa discussão, em que qualquer dos quatro falou duas vezes sobre a matéria, uma para responder e dez ou doze pela ordem; depois de se oferecerem quinze emendas e vinte artigos aditivos, caiu tudo por grande maioria, e entre bravos, apoiados e aplausos, foi aprovado, salva a redação, o seguinte termo:
“No dia 20 de julho de 18... na sala parlamentar da casa no... da rua de... sendo testemunhas os estudantes Fabrício e Leopoldo, acordaram Filipe e Augusto, também estudantes, que, se até o dia 20 de agosto do corrente ano o segundo acordante tiver amado a uma só mulher durante quinze dias ou mais, será obrigado a escrever um romance em que tal acontecimento confesse; e, no caso contrário, igual pena sofrerá o primeiro acordante. Sala parlamentar, 20 de julho de 18... Salva a redação.”
Como testemunhas: Fabrício e Leopoldo.
Acordantes: Filipe e Augusto.
E eram oito horas da noite quando se levantou a sessão.
[17] desonrosa – sem honra.
[18] adágio – espécie de provérbio que recorda o que é usual, com andamento, sequência.
[19] “o hábito não faz o monge” – dito popular que significa “não devemos julgar as pessoas pela aparência”.
[20] a um tempo – ao mesmo tempo.
[21] epigramas – poesia curta e satírica.
[22] quinhão – parte que cabe a cada um na partilha de um todo.
[23] Bocage – renomado poeta português, famoso por sua obra voltada a defesa do povo e poemas de escárnio.
[24] carraspana – bebedeira.
[25]
C´est tropo fort! – É muito forte!
[26] canapé – assento longo com braço e encosto.
[27] carapuça – cobertura para cabeça geralmente em forma de cone, de lã ou pano.
[28] robe de chambre – roupão, também conhecido como robe ou penhoar (vestimenta que usamos em cima de camisolas e pijamas).
[29] desconjuntada – toda torta, desengonçada.
[30]
Pouillet – neste trecho, temos uma referência à lei de Pouillet, que é estudada na Física, em que a associação de geradores e de receptores, como por exemplo, o uso do receptor elétrico.
[31] ceroulas – peça de roupa masculina usada embaixo das calças.
[32] chávena – xícara.
[33] lavores dourados – feita com detalhes dourados.
[34] púcaro – jarro, recipiente para líquidos.
[35] galego – neste trecho temos uma referência às pessoas nascidas em Portugal especificamente na Galiza, são consideradas pessoas de baixa renda, sem instrução e agem de forma rude e grosseira.
[36] Dia de Sant´Ana – comemorado no dia 26 de julho, é uma festa religiosa que relembra o milagre ocorrido com Ana, que, segundo preceitos católicos, mesmo sendo estéril e já de idade, engravidou por milagre e deu a luz a Maria, mãe de Jesus Cristo. Atualmente, o dia de Sant´Ana é considerado o dia dos avós.
[37] patuscada – festa alegre e barulhenta, geralmente entre amigos.
[38] “Esta fresquinha ainda... Ora... se um dia de nós a enfeitiça e se faz avô de Filipe!...” – note uma característica atípica do romantismo brasileiro, o narrador aqui quebra o paradigma do romance-romântico e respeitoso, para, por meio de brincadeiras e ironias dos rapazes, mostrar que a ousadia e interesses financeiros estão presentes na sociedade, e não apenas uma descrição em que as mulheres são perfeitas.
[39] cobres – dinheiro.
[40]40. “recebo a vós, aos cobres da velha” – dizer sim e aceitar um casamento pago por dotes em dinheiro, ou seja, na época moedas de cobre.
[41] toma-larguras – é uma expressão regional do nordeste do Brasil.
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