O almocreve divertia-se excitando-os de fora com uma vara de vime, apesar de quantas recomendações de prudência lhe fazia Henrique, não em demasia sossegado.
Afinal ouviu-se uma voz áspera e rouca, chamando os cães à ordem, se é lícito, sem irreverência, empregar neste caso a frase consagrada para outro género de algazarra.
Henrique ouviu rodar a chave, correr os ferrolhos, levantar a aldraba, gemerem os gonzos, e enfim um homem de lavoura, alto e magro, trazendo em punho um lampião de frouxíssima luz, apareceu-lhes à porta e saudou-os com a fórmula do estilo:
— Ora Nosso Senhor lhes dê muito boas noites.
E, levantando a luz à altura do rosto de Henrique, pôs-se a mirá-lo com a menos cerimoniosa curiosidade.
— É o sobrinho cá da senhora, não é verdade?
— Sou eu mesmo.
— Está um tempo muito azedo. Eu já julgava que não vinham. Entre.
Henrique não se resolvia a aceitar o convite, porque lhe continuavam a impor respeito os olhares ferinos e os rugidos surdos dos dois façanhosos quadrúpedes, cuja má vontade era a custo refreada.
— Entre, entre — insistia o homem.
— Mas esses animalejos?..
— Ah! isto não faz mal. Sai-te pra lá, Lobo; passa, Tirano!
Lobo! Tirano! Que nomes! E dizia o homem que não faziam mal!
— Com os diabos! tio Manuel — disse o almocreve — em ocasião de esperarem hóspedes, não se soltam assim os cães. Os diabos não são nenhuns cordeiros. Olhe no outro dia o Sr. Joãozinho das Perdizes, que por pouco lhes deixava nos dentes as barrigas das pernas.
— Forte perca! — resmoneou o outro. — Não trouxesse cá os dele. Não tem dúvida; entre o senhor, que eles não lhe fazem mal.
— Não entro; assim é que não entro — teimou Henrique, a quem as palavras do almocreve acabaram de fortificar na sua resolução.
O homem, em vista disto, encolheu os ombros e bradou:
— Ó Luís!
Uma criança de cinco anos, e quase nua, correu ao chamamento.
— Enxota para lá esses cães, que aqui o senhor tem medo.
A criança, à palavra medo, fitou Henrique com uns olhos espantados, e, tomando do chão um tronco de tojo, deu-se a zurzir desapiedadamente nas feras, que, com todos os sinais de respeito, de orelha baixa e cauda abatida, fugiram diante dela.
O orgulho de Henrique de Souselas ficou um tanto maltratado com o desfecho da cena; mas a prudência consolava-o, dizendo-lhe que andara ajuizadamente.
— Agora vossemecê — disse o camponês para o almocreve — arranja-se como puder e mais a besta aí pelas lojas, enquanto eu ensino o caminho ao senhor.
— Vão, vão com a nossa Senhora, que eu cá me arranjarei. Muito boas noites, Sr. Henriquinho.
— Adeus, José — disse Henrique, passando para a mão do guia a espórtula da gorjeta, e após, seguiu, com as pernas trôpegas de cavalgar, o homem do lampião.
Não era para dissipar a impressão penosa, que subjugava o espírito de Henrique, o aspeto que lhe oferecia, àquela hora da noite, a parte da quinta, por onde era conduzido para a casa de Alvapenha.
Primeiro, trilhou o pavimento mole de um quinteiro ou eido, estradado de altas camadas de mato e embebido de chuva, donde se exalava um cheiro de curtumes, pouco de lisonjear o olfato mal habituado a estes aromas campesinos. A luz do lampião a custo conseguiu evitar a Henrique o tropeçar num carro desaparelhado, numa dorna, numa pia para galinhas, e em outros objetos que atrancavam o quinteiro. Transpondo a cancela que terminava este, seguiram por uma rua de limoeiros, coberta de ramada, então despida ainda de folhas; atravessaram diagonalmente a horta, pelo carreiro que a dividia; ladearam a eira e a casa do cabanal, e, efetuados mais alguns rodeios, acharam-se finalmente junto da escadaria de pedra, por onde se subia para uma espécie de patamar ou varanda alpendrada, que servia de modesto pórtico à casa de Alvapenha.
A propriedade da tia de Henrique era um genuíno tipo de casa rústica, à moda do Minho.
Ao subir as escadas, e apesar de mal poder divisar os objetos à escassa luz que os iluminava, recebeu Henrique a primeira impressão agradável de toda aquela mal estreada excursão.
Estas escadas, esta varanda de pedra e este alpendre avivaram nele memórias, quase apagadas. Lembrava-se agora vagamente de ter brincado ali, a cavalo nesse mesmo parapeito, então, como agora, enfeitado de uma formidável coorte de abóboras-meninas, vítimas votadas às festas do próximo Natal.
A um canto do patamar deparou-se-lhe ainda um grande vaso de louça, que ele, há vinte e tantos anos, conhecera, e ao qual tinha a ideia vaga de haver quebrado uma asa; abaixou-se no intento de se certificar, e viu que de facto ainda lhe faltava a asa, sendo este o único estrago que após tanto tempo o velho utensílio sofrera.
— É admirável! — não pôde deixar de exclamar Henrique ao fazer a descoberta, vendo que em oito dias operava maior reforma nos seus aposentos em Lisboa do que num quarto de século se realizava em Alvapenha.
O hortelão bateu à porta e disse para dentro que era o sobrinho da senhora que chegava.
Seguiu-se um mexer de cadeiras, um trocar de vozes, um arrastar de passos; moveu-se a chave na fechadura; abriram-se as portas, e no limiar apareceu de braços abertos a tia Doroteia, e, por trás dela, elevando a luz acima do ombro da ama, a criada Maria de Jesus, a que, há trinta anos, lhe era companheira e interessada em alegrias e pesares. Já Henrique lhe andara ao colo no tempo em que estivera criança na quinta.
Diante da figura esbelta, do tipo varonil e do comprido bigode de Henrique, a Sra. Doroteia reprimiu as suas expansões e quase recuou.
Nunca mais vira Henrique desde que este, aos cinco anos, deixara Alvapenha, e dir-se-ia que esperava ainda encontrar os mesmos cabelos loiros e anelados e o mesmo rosto menineiro da travessa criança de outros tempos, em vez do homem feito, em que os vinte e tantos anos volvidos o tinham transformado.
Há destas ilusões na gente.
A mais segura razão não está precavida contra elas; a infundada surpresa invade-nos de súbito, e os lábios não podem prender a exclamação que a denuncia.
— Pois na verdade tu és o Henriquinho?! — disse espantada a boa senhora.
— Eu julgo que sim, tia Doroteia.
— Tu! Ai como estás um homem! Ó Maria de Jesus, você não quer ver isto?!
— Parece mesmo um soldado! — disse a criada, igualmente estupefacta.
— Credo, mulher! Santíssima Trindade! Você que está a dizer? Nossa Senhora nos livre de tal! — exclamou a ama, em cujo conceito o soldado estabelecia a transição do homem para o diabo.
No entretanto Henrique de Souselas abraçava a tia, que há tanto tempo que não vira, e ela correspondia-lhe, beijando-o com todo o carinho e chorando.
Chorando porquê? Porquê? Pela muita bondade que tinha naquela alma. A bondade é um rico manancial, que brota lágrimas ao toque da menor comoção.
Henrique não tinha ainda bem conseguido libertar-se dos roxeados amplexos e mais provas de afeto da sua tia, quando se sentiu preso em novos laços. Era Maria de Jesus, que o abraçava também e lhe pespegava nas faces dois beijos muito chiados, como aqueles que vêm a ferver do coração, e isto acompanhado de um — ai o meu rico filho! — tão eloquente como os beijos.
Henrique, habituado às etiquetas da civilização urbana, que estabelece entre amos e criados distâncias desconhecidas na aldeia, estranhou um pouco a familiaridade, mas sujeitou-se a ela sem reflexões.
Maria de Jesus dizia, ainda admirada:
— Ó senhora! Não que uma coisa assim! Pois é este o menino que vinha à cozinha limpar o tacho em que se fazia a marmelada?!
— É verdade! E que boa marmelada cá se fazia!
— Lambareiro! — dizia a tia, sorrindo — Se eu soubesse que eras assim, não tinha mandado lavar o tacho do doce, que ainda hoje serviu.
— Sim? Então ainda se faz doce cá em casa, como dantes? — perguntou Henrique.
— Pois então? Todos os anos. Mas valha-me Deus! E não querem ver nós aqui postas à palestra! Entra, menino, entra cá para dentro, que está frio e tu deves vir cansado.
— Um pouco, um pouco, tia Doroteia.
E Henrique entrou para a sala.
Demoremo-nos no limiar para informar o leitor sobre as pessoas em cuja casa se vai alojar com Henrique de Souselas.
Não se imagina a santa paz de espírito, a placidez de paraíso, que estas duas mulheres — D. Doroteia e Maria de Jesus, ama e criada — gozavam na quinta de Alvapenha, onde Henrique de Souselas ia procurar alívio aos seus muitos e variados males.
Ambas da mesma idade, ambas muito aferradas aos seus hábitos, ambas muito tementes a Deus e amigas do próximo, as duas celibatárias passavam ali uma vida rescendente a um suave perfume de santidade, como o da alfazema e do rosmaninho, que lhes aromatizava as gavetas e de que se repassava toda a roupa branca, objeto muito dos seus cuidados.
A inalterável harmonia, mantida há tantos anos entre as duas, poderia ser exemplo à maior parte das famílias deste mundo. Entre velhas, que nunca tiveram filhos, circunstância que em geral faz o humor mais acre e desabrido, era tanto mais para admirar o caso.
Tinham elas, porém, a precisa tolerância para fazerem mútuas concessões: cada uma fechava os olhos aos pequenos caprichos da outra, e tudo corria bem. Nunca dentro daquelas paredes se ouviu uma só palavra que, por mais alto pronunciada ou por menos expressiva de paciência, destoasse da invariável monotonia dos seus habituais diálogos.
Eram um exemplo edificante para os vizinhos, que, pela maior parte, devorados por demandas entre primos e irmãos, pais e filhos, marido e mulher, mostravam infelizmente ser esta abençoada semente caída em improdutivo terreno.
As discórdias intestinas nas famílias do seu conhecimento afligiam as duas sexagenárias e aumentavam o número de Padre-Nossos com que todas as noites se faziam lembrar dos santos, de quem eram validas, pedindo-lhes a felicidade dos outros tanto ou mais do que a sua própria.
Ouvir rezar as duas santas velhas — e era essa a ocupação dos seus curtos serões — equivalia a escutar uma resenha das diferentes calamidades que perseguem e apoquentam o género humano, e que elas, desta maneira, pretendiam evitar.
— Um Padre-Nosso e uma Ave-Maria a S. Marçal, para que nos livre do fogo — dizia D. Doroteia, e seguia-se o Padre-Nosso. — Outro a Santa Luzia milagrosa, para que nos dê vista e claridade na alma e no corpo; outro a S. Brás, para que nos proteja da garganta; outro a S. Vicente, por causa das bexigas, etc., etc. Seguia-se um Padre-Nosso por todos os que andam sobre as águas do mar; outro por os pobres sem-abrigo nem alimento; outro por os órfãos; outro pelos doentes; um pelos vivos; outro pelos mortos; um pelos justos; outro pelas almas do Purgatório, não hesitando até a sua caridade em transpor as portas do Inferno e pedir também a remissão dos condenados. E, ainda depois desta minuciosa e longa enumeração, um último Padre-Nosso fechava a primeira série, compreendendo todos os não contemplados por esquecidos, ou por não terem lugar na classificação.
Compunha a segunda série a menção especial de cada uma das pessoas falecidas das suas relações: parentes, amigos e conhecidos, por cujo «eterno descanso entre os resplendores da luz perpétua» oravam com verdadeira compunção. Nesta falange ia também D.
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