João VI, por quem, há quarenta anos, se costumara a rezar D. Doroteia, e não era ela mulher que rompesse com hábitos semisseculares. Era esse talvez o único Padre-Nosso que a alma do monarca recebia no Céu, com procedência do seu antigo Reino.
Enquanto às qualidades físicas, a imaginação dos leitores pintar-lhas-á melhor do que a minha descrição. Forçosamente conheceram uma destas boas velhas, para quem nos sentimos atraídos; a quem se estima e com quem se brinca ao mesmo tempo; que nos podem inspirar sacrifícios e simultaneamente nos tentam a travessuras; a quem mistificamos agora e logo beijamos respeitosamente a mão; contra quem não reprimimos impaciências, escutando depois submissos os seus nunca terminados sermões.
Ora estas velhas assim têm quase sempre um tipo uniforme que é o reflexo exterior da bondade do coração; esse era o tipo da tia Doroteia com o seu vestido roxo, o seu lenço castamente cruzado no peito, a sua touca de folhos alvíssimos e de fitas escuras, o molho de chaves à cinta, o livro de orações na algibeira e os óculos a marcarem no livro a reza habitual.
Maria de Jesus de igual maneira. Era apenas uma edição popular da mesma alma. Sucedera demais com elas o que é sempre de esperar de uma longa e íntima convivência: tinham reciprocamente adotado maneiras e modos de pensar e de ver e de dizer as coisas uma da outra, a ponto de qualquer delas ser como que uma premissa donde, a modo de conclusão, se deduzia a outra facilmente.
Tudo isto percebeu logo Henrique de Souselas ao primeiro exame que fez das duas santas mulheres.
Entremos agora com ele para dentro da sala.
Quem, vinte anos antes, tivesse visitado a casa de Alvapenha e aí voltasse de novo com Henrique, julgaria, à vista da uniforme disposição de coisas mantida ali dentro em tão distantes épocas, que todo esse tempo não fora mais do que um sonho de momentos.
Encontraria os mesmos móveis, na mesma colocação; as mesmas cobertas nos leitos apenas mais desbotadas; as mesmas ou iguais cortinas nas janelas; o mesmo cheiro de feno e alfazema na atmosfera dos quartos, os mesmos quadros na parede, as mesmas jarras nas cómodas.
A memória de Henrique, aquela inconstante e leviana memória de rapaz estouvado, sentia-se acordar à vista daquilo tudo.
A sala tinha uma fisionomia característica.
Suponha-se uma não muito ampla quadra de pouca altura, toda pintada a oca, e iluminada por duas mal rasgadas janelas de peitoril, com os seus competentes assentos de pedra, um em frente do outro, e com meias cortinas de cambraia sempre corridas — pleonasmo de discrição que se não justificava, visto que as janelas, abrindo para a quinta, não tinham vizinhança de cujos olhares precisassem de recatar-se. O teto era de almofadas de castanho, em tempos pintado de azul, agora de uma cor duvidosa. Há quinze anos que D. Doroteia falava em o mandar retocar, mas o projeto, momentoso como era, ia sendo adiado de Primavera para Primavera. Orlava a sala, no alto, um friso ou cornija saliente, onde coradas maçãs de Inverno aguardavam, em vistosa fileira, a completa maturação, e derramavam no aposento o mais agradável aroma. O pavimento, apesar de muito picado de caruncho, andava limpo e escafunado — termo do vocabulário de casa — que metia gosto vê-lo. Cada parede era um museu de estampas de devoção. Poucos santos e santas da corte celestial não estavam ali representados e com um colorido, que era o maior pecado, a que estes bem-aventurados tinham dado lugar cá no mundo.
Lá se via Santa Quitéria e as suas sete companheiras; Santa Ana ensinando Nossa Senhora a ler; o Senhor dos Passos, venerado em S. João Novo, no Porto; o Bom Jesus de Bouças, representação da imagem, que, segundo reza a respetiva crónica, é obra das mãos de José de Nicodemo; os Santos Mártires de Marrocos, da igreja de S. Francisco, etc., etc. Sobre a cómoda de pau-preto era devotamente venerado o mais rubicundo, menineiro e bem-disposto Santo António, que ainda modelaram as mãos de santeiro afamado. E seja dito de passagem que não sei porque a tradição popular dá a este austero franciscano o aspeto chorudo de um moderno reitor de farta abadia de aldeia.
No interior da redoma onde se abrigava o santo estava estabelecido o museu de raridades da tia Doroteia. Eram flores artificiais, concharinhas e caramujos, um rosário de caroços de azeitonas, uns poucos de vinténs de prata, enfiados e pendentes do braço do Menino Jesus, que o santo sustentava ao colo, verónicas, escapulários, uma campainha benta, uma medida do braço do Senhor de Matosinhos, um pão do saco de Santa Isabel, que vai na procissão de Cinza, no Porto, e outros objetos curiosos.
A mobília da sala consistia em cadeiras de palhinha, que gemiam quando entravam em serviço, como militar cujas articulações o reumatismo invadiu; mesas cobertas com colchas de chita; baús cravados de pregaria amarela, disposta em letras e arabescos; uma papeleira de pau-santo, e uma gaiola com um canário decrépito, objeto, há muitos anos, das tentações de um gato, mais decrépito do que ele e pertencente às classes inativas.
Henrique, adivinhando, por todo aquele cheiro de beatitude e de antiguidade que ali se respirava, os hábitos da casa, sentia já certo desconforto, como de quem é arrancado de súbito ao ambiente em que se educou e vive, engolfado num ambiente estranho; espécie de asfixia moral, não menos angustiosa do que a do peixe fora da água.
A saudade que ao princípio sentira dissipara-se já. O perfume da saudade é como o de certas flores, que só se percebe quando de longe o recebemos. Se, iludidos, as tentamos aspirar de perto, dissipa-se.
Acontecera isto com Henrique.
Cada vez, portanto, se lhe radicava mais funda a crença de que não seria por muito tempo que se demoraria ali.
— Os emolientes do doutor — pensava ele, enquanto sua tia falava — serão eficazes para quem os puder sofrer sem enjoo, mas para mim.
No entretanto sentou-se.
— Ora o Henriquinho! — dizia ainda D. Doroteia, pondo-se de braços cruzados em contemplação em frente dele. — Ó menino, onde foste tu arranjar esses bigodes tamanhos? Então isso agora usa-se?
Pergunta que sobremaneira embaraçou Henrique.
— Quem quer usar, usa, tia. Não é obrigação — respondeu ele, com leve mau humor.
— Em nome do Padre e do Filho! — dizia Maria de Jesus, benzendo-se e tomando lugar ao lado da ama. — Até nem sei que parece lembrar-se a gente que trouxe este marmanjão ao colo!
O termo «marmanjão» não soou bem a Henrique. Principiava também a impacientá-lo o ver as duas embasbacadas diante dele; um homem, sujeito a uma exposição destas, por mais que faça, não atina com o modo de arrostar com ela, que não seja ridículo. Ora Henrique, como todo o homem da sociedade, o que mais que tudo temia neste mundo era o ridículo.
Felizmente acudiu-lhe a caridosa intervenção da tia Doroteia, que fez perceber à criada a conveniência de ir preparando a ceia de Henrique, que havia de querer recolher-se. Henrique, apesar de não costumar cear aceitou a ideia, porque o frio, as fadigas e a má alimentação dos últimos dias, tinham-lhe desafiado o apetite. Demais, o espanto de D. Doroteia, quando lhe ouviu dizer que as ceias não entravam nos seus hábitos, foi tal que lhe tirou o ânimo de rejeitar.
— Não ceias! Ó menino, que me dizes? Então vais-te deitar sem ceia? Ora essa! Por isso vocês são uns peléns. Vejam lá que arranjo este! Ficar toda a santa noite sem alguma coisa que dê sustento ao estômago, que aconchegue.
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