Herncastle nada disse para justificar que eu me dirija a nosso comandante. Ele foi vítima de mais uma brincadeira sobre o Diamante, por aqueles que se lembram de sua explosão de raiva antes da invasão. Mas, como se pode facilmente imaginar, sua própria lembrança das circunstâncias nas quais eu o surpreendi na sala do tesouro foram o suficiente para mantê-lo calado. Foi divulgado que ele pretende se transferir para outro regimento, com o objetivo confesso de afastar-se de mim.

Quer isso seja verdade ou não, não posso assumir a posição de seu acusador — e por bons motivos, penso eu. Se tornasse a história pública, não teria provas a apresentar a não ser morais. Não apenas não tenho provas de que ele matou os dois homens na porta, como não posso sequer declarar que ele matou o terceiro lá dentro — pois não posso dizer que meus próprios olhos o viram fazê-lo. É verdade que escutei as últimas palavras do indiano; mas se essas palavras forem consideradas efeitos de delírio, como eu poderia contradizer essa afirmação usando aquilo que sei? Deixemos que nossos parentes, de ambos os lados, formem sua própria opinião sobre o que escrevi, e decidam por si mesmos se a aversão que hoje sinto por esse homem é fundada ou infundada.

Embora não dê nenhum crédito à fantástica lenda indiana sobre a gema, devo admitir, antes de terminar, que sofro a influência de uma certa superstição pessoal a esse respeito. É minha convicção, ou minha ilusão, não importa, que o crime traz consigo sua própria fatalidade. Não estou apenas convencido da culpa de Herncastle; chego a ser imaginativo o bastante para acreditar que ele ainda vai se arrepender, se ficar com o Diamante, e que outros ainda vão se arrepender de tirá-lo dele, se ele se livrar do Diamante.













A HISTÓRIA







Primeiro Período




A PERDA DO DIAMANTE (1848)




Os acontecimentos relatados por Gabriel Betteredge, Intendente a serviço de Julia, Lady Verinder.




CAPÍTULO 1




Na primeira parte de Robinson Crusoé, na página 129, podem-se encontrar as seguintes palavras:

Agora eu podia ver, embora tarde demais, a Loucura de começar um Trabalho antes de estimar seu Custo, e antes de avaliar corretamente nossa própria Força para concluí-lo.

Ontem mesmo abri meu Robinson Crusoé nessa parte. Esta manhã mesmo (21 de maio de 1850), o sobrinho de minha patroa, Sr. Franklin Blake, chegou e veio ter uma breve conversa comigo, como se segue:

— Betteredge — disse o Sr. Franklin —, estive falando com o advogado a respeito de alguns assuntos familiares e, entre outras coisas, conversamos sobre a perda do Diamante indiano na casa de minha tia em Yorkshire, há dois anos. O Sr. Bruff pensa, como penso eu, que a história toda deveria ser registrada por escrito, para o bem da verdade, e quanto mais cedo melhor.

Ainda sem perceber aonde ele queria chegar, e acreditando que é desejável, para o bem da paz e da tranquilidade, ficar do lado do advogado, eu disse que pensava da mesma maneira. O Sr. Franklin continuou:

— Nessa história do Diamante — disse ele pessoas inocentes já foram vítimas de muita suspeita, como é de seu conhecimento. A partir de agora, a memória de pessoas inocentes pode sofrer pela falta de um registro dos fatos que possa servir àqueles que vierem depois de nós. Não há dúvida de que essa nossa estranha história de família deve ser contada. E eu penso, Betteredge, que eu e o Sr. Bruff conseguimos encontrar o modo certo de contá-la.

Muito satisfatório para ambos, sem dúvida. Mas, até ali, eu não podia perceber o que eu tinha a ver com aquilo.

— Temos certos acontecimentos a relatar —, continuou o Sr. Franklin —, e temos algumas pessoas implicadas nesses acontecimentos que são capazes de relatá-los. Começando com esses fatos simples, a ideia é que todos nós deveríamos escrever a história da Pedra da Lua, um de cada vez, limitando-nos à nossa experiência pessoal, e só isso. Devemos começar mostrando, em primeiro lugar, como o Diamante foi parar nas mãos de meu tio Herncastle, quando ele estava servindo na Índia há cinquenta anos. Já obtive esse relato preliminar na forma de um antigo registro familiar, que narra os detalhes necessários do ponto de vista de uma testemunha ocular. Depois disso, precisamos contar como o Diamante foi parar na casa de minha tia em Yorkshire, há dois anos, e como ele foi perdido pouco mais de doze horas depois. Ninguém sabe tanto quanto você, Betteredge, sobre o que aconteceu na casa naquela ocasião. Portanto, você deve pegar uma pena e começar a história.

Nesses termos fui informado da natureza de minha ligação pessoal com o assunto do Diamante. Se estiverem curiosos para saber o que fiz em tais circunstâncias, informo-lhes que fiz o que os senhores provavelmente teriam feito em meu lugar. Modestamente declarei-me deveras incapacitado para a tarefa que me era imposta — sentindo em meu íntimo, o tempo todo, que poderia fazê-lo, se somente desse uma chance às minhas habilidades.