Pois, segundo o código de Françoise, tal como está representado nos baixos-relevos de Saint-André-des-Champs, desejar a morte do inimigo, e até matá-lo, não é proibido, porém é horrível não fazer o que se deve, não retribuir uma gentileza, não despedir-se antes de partir, como uma perfeita grosseirona, de uma governanta de hotel.
Durante toda a viagem, a lembrança, a cada instante renovada, de que não apresentara suas despedidas àquela mulher, fazia subir às faces de Françoise uma vermelhidão que podia assustar. E, se recusou beber e comer até Paris, foi mais talvez porque tal lembrança lhe dava um "peso" real "no estômago" (cada classe social tem sua patologia) do que para nos punir.
Entre as razões por que mamãe me enviava todos os dias uma carta e uma carta onde nunca estava ausente alguma citação da Sra. de Sévigné- havia a recordação de minha avó. Mamãe me escrevia: "A Sra. Sazerat nos ofereceu um desses almoços de que ela possui o segredo e que, como teria dito a tua pobre avó, citando a Sra. de Sévigné, nos retiram a solidão sem nos trazer a sociedade."
Em minhas primeiras respostas cometi a asneira de escrever a mamãe: "A essas citações, tua mãe te reconheceria de imediato." O que me valeu, três dias depois, este bilhete: "Meu pobre filho, se era para me falar de minha mãe, foste muito infeliz ao invocar a Sra. de Sévigné. Ela teria respondido como o fez à Sra. de Grignan: 'Então ela não era nada sua? Pensei que fossem parentes."
No entanto, eu escutava os passos de minha amiga que saía ou entrava em seu quarto. Tocava a campainha, pois era a hora em que Andrée ia chegar com o motorista, amigo de Morel e emprestado pelos Verdurin, para buscar Albertine. Tinha lhe falado da longínqua possibilidade de nos casarmos; porém jamais o fizera de modo formal; ela própria, por discrição, quando eu dissera:
"não sei, mas talvez fosse possível", sacudira a cabeça com um sorriso melancólico, dizendo:
- Não, não, não seria - o que significava: "sou pobre demais".
E então, apesar de dizer-lhe "nada é menos certo" quando se tratava de projetos para o futuro, atualmente fazia tudo para distraí-la, tornando-lhe a vida agradável, procurando talvez também, de modo inconsciente, fazê-la desse modo desejar casar comigo. Ela mesma ria de todo esse luxo.
- A mãe de Andrée é que vai fazer uma cara quando me vir transformada numa dama rica feito ela, o que ela chama uma dama que tem "cavalos, carruagens, quadros". Como? Nunca lhe contei que ela dizia isso? Oh! É uma figura! O que me espanta é que ela ergue os quadros à dignidade dos cavalos e das carruagens.
Pois veremos mais tarde que, apesar dos modos estúpidos de falar que lhe haviam ficado, Albertine se desenvolvera de forma assombrosa, o que me era de todo em todo indiferente, pois as superioridades do espírito de uma mulher me haviam sempre despertado tão diminuto interesse que, se as apontei a uma ou outra, tinha sido por pura cortesia. Somente o curioso gênio de Céleste talvez me tivesse agradado. Contra a vontade, eu sorria durante alguns momentos quando, por exemplo, sabendo que Albertine não se achava presente, ela me abordava com essas palavras:
- Divindade do céu deposta num leito! -
Eu dizia:
- Ora, Céleste, por que "divindade do céu"?
- Se o senhor imagina que se parece com esses que andam em nossa terra vil, está muito enganado!
- Mas por que "deposto" num leito? Você vê muito bem que estou deitado.
- O senhor nunca está deitado. Alguma vez já se viu alguém deitado assim? O senhor veio pousar aí. Neste momento o seu pijama, todo branco, e os movimentos de seu pescoço, dão-lhe o aspecto de uma pomba.
Mesmo na ordem das coisas tolas, Albertine expressava-se de modo diverso da mocinha que era poucos anos antes em Balbec. Chegava a ponto de declarar, a propósito de um acontecimento político que reprovava:
- Acho isso formidável -, e não sei se foi por essa época que aprendeu a dizer, para indicar que achava um livro mal escrito: - É interessante, mas, por exemplo, está escrito como se o fosse por um porco.
Divertia-a bastante a proibição de entrar em meu quarto antes que eu tivesse tocado a campainha.
Como adquirira o nosso hábito familiar das citações, e utilizava para tanto as das peças que havia representado no convento e que eu dissera que apreciava, comparava-me sempre a Assuero: Et la mort est le prix de tout audacieux/ Qui sans être appelé se présente à ses yeux.
Rien ne met à /'abri de cet ordre fatal, Ni le rang, ni le sexe, et le crime est éga/.Moi même...
Je suis à cette foi comme une autre soumise, Et sans /e prevenir i/ Taut pour lui parler
Qu'il me cherche ou du moins qu'il me asse appeler.
[E a morte é a recompensa de todo atrevido/ Que sem ser chamado se apresenta a seus olhos.// Nada.
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