me livra dessa ordem fatal, / Nem a posição, nem o sexo; e o crime é igual./ / Eu mesma... / Como qualquer outra estou submetida a essa lei, / E sem preveni-lo, se lhe quero falar/ É preciso que ele venha ou me mande chamar." (Racine, Esther, ato I, cena III, v. 195-96 [Racine escreve "à leurs yeux 9, 199-200
e 201-204.) (N. do T)]
Fisicamente, ela também havia mudado. Seus longos olhos azuis mais alongados não tinham conservado a mesma forma; possuíam a mesma cor, mas pareciam ter passado ao estado líqüido. De modo que, ao fechá-los, era como quando a gente impede, com cortinas, a vista do mar. Era sem dúvida dessa parte dela mesma que eu principalmente me lembrava, ao deixá-la todas as noites. Pois, por exemplo, bem ao contrário, pelas manhãs, o crespo de seus cabelos me causou durante muito tempo a mesma surpresa, como uma coisa nova que eu jamais tivesse visto. E, no entanto, acima do olhar risonho de uma moça, o que existe de mais belo que essa coroa anelada de violetas negras? O sorriso propõe mais amizade; mas os aneizinhos envernizados dos cabelos em flor, mais parentes da carne, da qual pareciam a transposição em pequeninas ondas, captam melhor o desejo.
Mal entrava em meu quarto, ela saltava sobre a cama e às vezes definia o meu tipo de inteligência, jurava, num transporte sincero, que preferiria morrer a me deixar: eram os dias em que eu me barbeara antes de mandar chamá-la. Albertine era dessas mulheres que não sabem distinguir a razão do que sentem. O prazer que lhes causa uma pele fresca, explicam-no pelas qualidades morais daquele que lhes parece, para seu futuro, representar uma felicidade, aliás passível de diminuir e de tornar-se menos necessária à medida que se deixa crescer a barba.
Perguntava-lhe aonde pensava ir.
- Creio que Andrée quer me levar aos Buttes-Chaumont, que não conheço.-
Claro que me era impossível adivinhar, entre tantas outras palavras, se por trás destas se escondia uma mentira. Aliás, eu tinha esperança de que Andrée me dissesse todos os locais a que iria com Albertine. Em Balbec, quando me sentia muito cansado de Albertine, pretendera dizer mentirosamente a Andrée:
"Minha querida Andrée, se tivesse voltado a vê-la mais cedo! Era você a quem eu teria amado.
Mas agora o meu coração está preso alhures. Ainda assim, podemos ver-nos amiúde, pois meu amor por outra me causa grandes aflições e você me ajudará a consolar-me."
Ora, essas mesmas palavras mentirosas tornaram-se verdadeiras três semanas mais tarde.
Talvez Andrée tivesse acreditado em Paris que se tratava de fato de uma mentira, e que eu a amava, como sem dúvida o teria acreditado em Balbec; pois a verdade muda de tal maneira para nós que aos outros custa muito reconhecerem-se nela. E, como eu sabia que ela haveria de contar-me tudo o que teriam feito, ela e Albertine, eu lhe pedira, e ela concordara, que viesse buscá-la quase todos os dias.
Poderia desse modo, sem preocupações, ficar em casa. E esse prestígio de ser Andrée uma das moças do "pequeno grupo" dava-me confiança de que ela obtivesse tudo o que eu queria de Albertine. Na verdade, poderia dizer-lhe agora, com toda a sinceridade, que ela seria capaz de me tranqüilizar. Por outro lado, a escolha de Andrée (que acontecia achar-se em Paris, tendo renunciado a seu projeto de voltar a Balbec) como guia de minha amiga relacionava-se ao que Albertine me contara da afeição que sua amiga sentira por mim em Balbec, num momento em que, pelo contrário, eu receava aborrecê-la, e, se eu o tivesse sabido então, seria talvez Andrée aquela a quem teria amado.
- Como, não sabia? - indagou Albertine -, e todavia gracejávamos sobre isso entre nós. - Além do mais, não reparou que ela tinha dado para imitar o seu modo de falar e raciocinar? Principalmente quando acabava de deixá-lo, era assombroso. Ela não precisava dizer se o tinha visto. Quando chegava, se tinha estado com você, isto se via no primeiro instante. Nós nos entre olhávamos e ríamos. Ela era como um carvoeiro que gostaria que acreditassem que não é carvoeiro, embora esteja preto.
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