Sempre há alguém olhando o rio perto da Ponte de Waterloo; um casal fica ali conversando meia hora numa bela tarde; a maior parte das pessoas, caminhando por prazer, fica olhando por três minutos; depois tendo comparado a ocasião com outras ocasiões, ou tendo dito alguma frase, seguem adiante. Às vezes as casas, igrejas e hotéis de Westminster são como os contornos de Constantinopla num nevoeiro; às vezes o rio é de um roxo opulento, às vezes cor de lama, às vezes de um azul cintilante como o mar. Sempre vale a pena olhar para baixo e ver o que está acontecendo. Mas aquela senhora não olhava nem para cima nem para baixo: a única coisa que vira desde que estava ali parada era um pedaço de pano circular iridescente que passava flutuando lentamente com uma palha no meio. A palha e o paninho seguiam seu nado sob o véu trêmulo de uma grande lágrima que brotava, e a lágrima cresceu, caiu e tombou no rio. Então ela ouviu ali perto:
Lars Porsena de Clusium
Ele jurou pelos nove Deuses
e depois, mais débil, como se o falante tivesse passado por ela na sua caminhada:
Que a Grande Casa de Tarquínio
Não deverá sofrer mais reveses.
Sim, ela sabia que precisava voltar para tudo aquilo,mas no momento tinha de chorar. Protegendo o rosto ela soluçou mais do que antes, os ombros erguendo-se e caindo com grande regularidade. Foi essa imagem que seu marido viu quando, tendo chegado à Esfinge polida, ten-do se enredado com um homem que vendia cartões-postais, ele se virou; o poema interrompeu-se imediatamente.Ele foi até ela, pôs a mão em seu ombro e disse:
– Querida.
Sua voz era suplicante. Mas ela escondeu o rosto como se dissesse: “Você jamais poderia entender”.
Mas como ele não a deixasse, ela teve de enxugar os olhos e erguê-los ao nível das chaminés da fábrica na outra margem. Também viu os arcos da Ponte de Waterloo e as carroças movendo-se através deles, como a fila de animais numa barraca de tiro ao alvo. Ela as via claramente, mas ver alguma coisa era naturalmente parar de chorar e começar a andar.
– Eu preferia andar – disse ela, depois de o marido ter chamado um táxi já ocupado por dois homens da cidade.
A fixidez do estado de espírito dela foi rompida pela ação de caminhar. Os automóveis em disparada, mais parecidos com aranhas na lua do que com objetos terrestres,as carroças trovejantes, os cabriolés balouçantes e os pequenos coches pretos fizeram-na lembrar-se do mundo em que vivia. Em algum ponto acima dos pináculos onde a fumaça se erguia numa colina pontuda, seus filhos agora estavam chamando por ela e recebendo uma resposta tranqüilizadora. Quanto aos montes de ruas, praças e edifícios públicos que os separavam, ela apenas sentia, naquele instante, como Londres fizera pouco para que ela a amasse, embora 30 de seus 40 anos tivessem se passado numa rua daquelas. Ela sabia como interpretar as pessoas que passavam a seu lado; havia os ricos correndo ora das casas, ora para as casas uns dos outros a essa hora; havia os funcionários obstinados dirigindo-se em linha reta para seus escritórios; havia os pobres que eram infelizes e justificadamente malignos. Embora ainda houvesse sol naquela névoa, velhos e velhas maltrapilhos cochilavam nos bancos. Quando se desistia de ver a beleza que vestia as coisas, aquele era o esqueleto que ficava por baixo.
Agora uma chuvinha fina a deixava ainda mais melancólica; furgões com os nomes esquisitos dos que se dedicam aindústrias bizarras – Sprules, Manufatura de Serragem;Grabb, que não deixa escapar um pedacinho de papel desperdiçado – soavam como uma piada ruim; amantes ousados, ocultos atrás de um só casaco, lhe pareciam sórdidos nasua paixão; as floristas, grupo alegre, cuja fala sempre vale apena escutar, eram velhas feias e estúpidas; as flores vermelhas, amarelas e azuis, comprimidas umas contra as outras,não resplendiam. Além disso, seu marido, caminhando comum passo rápido e ritmado, eventualmente acenando comsua mão livre, não era nem um viquingue nem um Nelsonferido; as gaivotas tinham mudado o jeito dele.
– Ridley, vamos de carro? Vamos de carro, Ridley? Mrs. Ambrose teve de falar alto; a essa altura ele estava distante dela.
O fiacre, trotando firme ao longo da mesma rua, em breve os afastou de West End, mergulhando-os em Londres. Parecia ser uma grande fábrica, onde as pessoasestivessem engajadas em fazer coisas, como se West End,com seus lampiões elétricos, suas enormes janelas de vidrobrilhando amarelas, suas casas bem acabadas e minúsculas figuras vivas trotando na calçada ou carregadas sobre rodas,fosse o produto acabado. A ela parecia um trabalho muitopequeno para ter sido feito por uma fábrica tão enorme.Por alguma razão, pareceu-lhe como uma pequena borla deouro na ponta de um vasto sobretudo negro.
Observando que não passavam por outro fiacre, mas só furgões e carroças, e que nenhum daqueles milhares de homens e mulheres que ela via era cavalheiro ou dama,Mrs. Ambrose entendeu que afinal a coisa comum é ser pobre, e que Londres é uma cidade de inumeráveis pobres. Espantada com essa descoberta e vendo-se caminhando em círculo todos os dias de sua vida em torno de Piccadilly Circus, ela ficou imensamente aliviada ao passar por um edifício destinado pelo Conselho Municipal de Londres a Escolas Noturnas.
– Meus Deus, como isso aqui é triste! – resmungou seu marido. – Pobre gente! Com a aflição por seus filhos, os pobres e a chuva, amente dela era como uma ferida exposta para secar no ar.
Nesse momento o fiacre parou, pois estava na iminência de ser esmagado como uma casca de ovo. O amploEmbankment,que tivera espaço para esquadrões e canhões,agora encolhera, tornando-se uma ruela calçada de pedras,fumegando com odores de malte e óleo e bloqueada porcarroças. Enquanto seu marido lia os cartazes colados notijolo anunciando os horários em que certos navios partiriam para a Escócia, Mrs. Ambrose tentava encontrar informação. De um mundo ocupado exclusivamente em carregar carroças com sacos, meio obliterado também numafina névoa amarela, eles não conseguiam nem ajuda nem atenção. Pareceu um milagre quando um velho se aproximou, adivinhou o estado em que se achavam e propôs leválos para o navio no barquinho amarrado no fundo de um lance de degraus. Hesitando um pouco, confiaram-se a ele,ocuparam seus lugares e em breve estavam ondulando sobre as águas, Londres reduzida a duas linhas de edifíciosdos dois lados deles, construções quadradas e construçõesretangulares em filas como uma avenida de bloquinhos demadeira construída por uma criança.
O rio, numa turva luz amarela, corria com muita força; balsas enormes passavam rápidas, escoltadas por rebocadores; barcos da polícia passavam por todos em disparada; ovento soprava na direção da torrente.
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