Olhando de relance para trás, na porta, viram Mr. Pepper, como se tivesse de repente afrouxado suas roupas, tornando-se um velho macaco animado e malicioso.

Enrolando véus na cabeça, as mulheres caminhavam no convés. Agora moviam-se constantemente rio abaixo,passando pelos vultos escuros de navios ancorados, e Londres era um enxame de luzes com um dossel amarelopálido pousado em cima. Havia as luzes dos grandes teatros, as luzes das ruas compridas, as luzes indicando enormes quadrados de conforto doméstico, luzes penduradas no ar. Nenhuma escuridão jamais se instalaria sobre esses lampiões assim como nenhuma escuridão se instalara sobre eles em centenas de anos. Parecia assustador que a cidade devesse arder assim no mesmo ponto, para sempre;assustador pelo menos para pessoas que partiam para uma aventura no mar, encarando-a como uma colina circunscrita, eternamente acesa, eternamente manchada. Do convés do navio a grande cidade parecia uma figura agachada e covarde, um avarento sedentário.

Inclinando-se sobre a balaustrada, lado a lado com Rachel, Helen disse:

– Você não vai sentir frio? Rachel respondeu:

Não... Que lindo! – acrescentou um momento depois. Via-se muito pouca coisa: alguns mastros, uma sombra de terra aqui, uma linha de janelas brilhantes ali.Tentaram enfrentar o vento.

Está soprando... está soprando! – arquejou Rachel, as palavras socadas garganta abaixo. Lutando ao lado dela,Helen subitamente foi dominada pelo espírito de movimento e avançou contra o vento, as saias enroscando-se em seus joelhos, os dois braços levantados para segurar o cabelo.Mas lentamente aquela embriaguez do movimento foi cedendo, o vento ficou áspero e frio. Espiaram por uma fendana cortina e viram que longos charutos estavam sendo fumados na sala de jantar; viram Mr. Ambrose lançar-se violentamente contra o encosto de sua cadeira, enquanto Mr.Pepper enrugava as bochechas como se tivessem sido cortadas em madeira. O fantasma de uma grande risada veio atéelas e foi imediatamente engolido pelo vento. Na sala seca,de luz amarelada, Mr. Pepper e Mr. Ambrose não se davamconta de nenhum tumulto: estavam em Cambridge, e provavelmente era pelo ano de 1875.

– São velhos amigos – disse Helen, sorrindo ao vê-los.

Há algum quarto onde a gente possa se sentar? Rachel abriu uma porta.

Antes um patamar do que um quarto – disse ela. Naverdade não tinha nada do caráter fechado e fixo de um aposento em terra. Uma mesa estava presa no centro, cadeiras encravadas nos lados. Felizmente os sóis tropicaistinham desbotado as tapeçarias num verde-azul pálido, e o espelho com sua moldura de conchas, obra de amor do camareiro quando o tempo estava pesado nos mares dosul, era antes bizarro do que feio. Conchas enroscadascom bordas vermelhas como chifres de unicórnio ornamentavam o parapeito da lareira coberto de um veludoroxo do qual pendia um número de borlas. Duas janelasabriam para o convés, e a luz que vinha através delasquando o navio era calcinado no Amazonas transformara as gravuras na parede oposta, deixando-as com umamarelo vago, de modo que “O Coliseu” pouco se distinguia da Rainha Alexandra brincando com seus spaniels.Um par de cadeiras de balanço junto da lareira convidava a aquecer as mãos em uma grade de latão; um grandelampião balançava sobre a mesa, a espécie de lampiãoque é a luz da civilização sobre campos escuros paraquem neles caminha.

– É estranho que todo mundo seja velho amigo de Mr.Pepper – disse Rachel nervosamente, pois a situação era difícil, o aposento frio, e Helen estava curiosamente calada.

– Você o conhece bem, suponho? – disse a tia.

– É o jeito dele – disse Rachel, encontrando um peixe fossilizado numa tigela e ajeitando-o.

– Acho que você está sendo severa demais – comentou Helen. Rachel tentou imediatamente suavizar o que dissera contra sua convicção.

– Eu não o conheço de verdade – disse e refugiou-se nos fatos, acreditando que pessoas mais velhas gostassem mais deles do que das emoções. Relatou o que sabiasobre William Pepper. Contou a Helen que ele sempre os visitava nos domingos quando estavam em casa; sabiamuitas coisas: matemática, história, grego, zoologia, economia e as sagas da Islândia. Traduzira poesia persa em prosa inglesa, e prosa inglesa em iâmbicos gregos; erauma autoridade em moedas e em mais alguma coisa... ahsim, ela achava que era tráfego de veículos.Ele estava ali para tirar coisas do mar ou escrever sobre o provável curso de Odisseu, pois afinal grego era seu hobby.

– Tenho todos os seus panfletos – disse ela. – Pequenos livrinhos amarelos. – Ela não parecia ter lido nenhum.

– Ele alguma vez se apaixonou? – perguntou Helen, que escolhera uma cadeira.Aquilo atingiu um alvo inesperado.

O coração dele é um sapato velho – declarou Rachel,largando o peixe. Mas quando interrogada, teve de reconhecer que jamais falara isso com ele.

Pois eu vou lhe perguntar – disse Helen.