Mas não vens! não virás! Silêncio e treva.

Hirta, na sombra, a Solidão eleva

Os longos braços rígidos de gelo;

E há, pelo corredor ermo e comprido,

O suave rumor de teu vestido

E o perfume subtil de teu cabelo...

Vanitas

Cego, em febre a cabeça, a mão nervosa e fria,

Trabalha. A alma lhe sai da pena, alucinada,

E enche-lhe, a palpitar, a estrofe iluminada

De gritos de triunfo e gritos de agonia.

Prende a idéia fugaz; doma a rima bravia,

Trabalha... E a obra, por fim, resplandece acabada:

"Mundo, que as minhas mãos arrancaram do nada!

Filha do meu trabalho! ergue-te à luz do dia!

Cheia da minha febre e da minha alma cheia,

Arranquei-te da vida ao ádito profundo,

Arranquei-te do amor à mina ampla e secreta!

Posso agora morrer, porque vives!" E o Poeta

Pensa que vai cair, exausto, ao pé de um mundo,

E cai — vaidade humana! — ao pé de um grão de areia...

Tercetos

I

Noite ainda, quando ela me pedia

Entre dois beijos que me fosse embora,

Eu, com os olhos em lágrimas, dizia:

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"Espera ao menos que desponte a aurora!

Tua alcova é cheirosa como um ninho..

E olha que escuridão há lá por fora!

Como queres que eu vá, triste e sozinho,

Casando a treva e o frio de meu peito

Ao frio e à treva que há pelo caminho?!

Ouves? É o vento! É um temporal desfeito!

Não me arrojes à chuva e à tempestade!

Não me exiles do vale do teu leito!

Morrerei de aflição e de saudade...

Espera! Até que o dia resplandeça,

Aquece-me com a tua mocidade!

Sobre o teu colo deixa-me a cabeça

Repousar, como há pouco repousava...

Espera um pouco! deixa que amanheça!"

— E ela abria-me os braços. E eu ficava.

II

E, já manhã, quando ela me pedia

Que de seu claro corpo me afastasse,

Eu, com os olhos em lágrimas, dizia:

"Não pode ser! Não vês que o dia nasce?

A aurora, em fogo e sangue, as nuvens corta...

Que diria de ti quem me encontrasse?

Ah! Nem me digas que isso pouco importa!...

Que pensariam, vendo-me, apressado,

Tão cedo assim, saindo a tua porta,

Vendo-me exausto, pálido, cansado,

E todo pelo aroma de teu beijo

Escandalosamente perfumado?

O amor, querida, não exclui o pejo.

Espera! até que o sol desapareça,

Beija-me a boca! Mata-me o desejo!

Sobre o teu colo deixa-me a cabeça

Repousar, como há pouco repousava!

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Espera um pouco! deixa que anoiteça!"

— E ela abria-me os braços. E eu ficava.

In Extremis

Nunca morrer assim! Nunca morrer num dia

Assim! de um sol assim!

Tu, desgrenhada e fria,

Fria! Postos nos meus os teus olhos molhados,

E apertando nos teus os meus dedos gelados...

E um dia assim! De um sol assim! E assim a esfera

Toda azul, no esplendor do fim da primavera!

Asas, tontas de luz, cortando o firmamento!

Ninhos cantando! Em flor a terra toda! O vento

Despencando os rosais, sacudindo o arvoredo...

E, aqui dentro, o silêncio... E este espanto! e este medo!

Nós dois... e, entre nós dois, implacável e forte,

A arredar-me de ti, cada vez mais, a morte...

Eu, com o frio a crescer no coração, — tão cheio

De ti, até no horror do derradeiro anseio!

Tu, vendo retorcer-se amarguradamente,

A boca que beijava a tua boca ardente,

A boca que foi tua!

E eu morrendo! e eu morrendo

Vendo-te, e vendo o sol, e vendo o céu, e vendo

Tão bela palpitar nos teus olhos, querida,

A delicia da vida! a delícia da vida!

A Alvorada do Amor

Um horror grande e mudo, um silêncio profundo

No dia do Pecado amortalhava o mundo.

E Adão, vendo fechar-se a porta do Éden, vendo

Que Eva olhava o deserto e hesitava tremendo,

Disse:

"Chega-te a mim! entra no meu amor,

E à minha carne entrega a tua carne em flor!

Preme contra o meu peito o teu seio agitado,

E aprende a amar o Amor, renovando o pecado!

Abençôo o teu crime, acolho o teu desgosto,

Bebo-te, de uma em uma, as lágrimas do rosto!

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Vê! Tudo nos repele! a toda a criação

Sacode o mesmo horror e a mesma indignação...

A cólera de Deus torce as árvores, cresta

Como um tufão de fogo o seio da floresta,

Abre a terra em vulcões, encrespa a água dos rios;

As estrelas estão cheias de calefrios;

Ruge soturno o mar; turva-se hediondo o céu...

Vamos! Que importa Deus? Desata, como um véu,

Sobre a tua nudez a cabeleira! Vamos!

Arda em chamas o chão; rasguem-te a pele os ramos;

Morda-te o corpo o sol; injuriem-te os ninhos;

Surjam feras a uivar de todos os caminhos;

E, vendo-te a sangrar das urzes através,

Se emaranhem no chão as serpes aos teus pés...

Que importa? o Amor, botão apenas entreaberto,

Ilumina o degredo e perfuma o deserto!

Amo-te! sou feliz! Porque, do Éden perdido,

Levo tudo, levando o teu corpo querido!

Pode, em redor de ti, tudo se aniquilar:

—Tudo renascerá cantando ao teu olhar,

Tudo, mares e céus, árvores e montanhas,

Porque a Vida perpétua arde em tuas entranhas!

Rosas te brotarão da boca, se cantares!

Rios te correrão dos olhos, se chorares!

E se, em torno ao teu corpo encantador e nu,

Tudo morrer, que importa? A Natureza és tu,

Agora que és mulher, agora que pecaste!

Ah! bendito o momento em que me revelaste

O amor com o teu pecado, e a vida com o teu crime!

Porque, livre de Deus, redimido e sublime,

Homem fico, na terra, à luz dos olhos teus,

—Terra, melhor que o céu! homem, maior que Deus!"

Vita Nuova

Se ao mesmo gozo antigo me convidas,

Com esses mesmos olhos abrasados,

Mata a recordação das horas idas,

Das horas que vivemos apartados!

Não me fales das lágrimas perdidas,

Não me fales dos beijos dissipados!

Há numa vida humana cem mil vidas,

Cabem num coração cem mil pecados!

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Amo-te! A febre, que supunhas morta,

Revive. Esquece o meu passado, louca!

Que importa a vida que passou? Que importa,

Se inda te amo, depois de amores tantos,

E inda tenho, nos olhos e na boca,

Novas fontes de beijos e de prantos?!

Manhã de Verão

As nuvens, que, em bulcões, sobre o rio rodavam,

Já, com o vir da manhã, do rio se levantam.

Como ontem, sob a chuva, estas águas choravam!

E hoje, saudando o sol, como estas águas cantam!

A estrela, que ficou por último velando,

Noiva que espera o noivo e suspira em segredo,

— Desmaia de pudor, apaga, palpitando,

A pupila amorosa, e estremece de medo.

Há pelo Paraíba um sussurro de vozes,

Tremor de seios nus, corpos brancos luzindo...

E, alvas, a cavalgar broncos monstros ferozes,

Passam, como num sonho, as náiades fugindo.