Quero ser sozinho.

Já disse que sou sozinho!

Ah, que maçada quererem que eu seja de companhia!

Ó céu azul – o mesmo da minha infância –,

Eterna verdade vazia e perfeita!

Ó macio Tejo ancestral e mudo,

Pequena verdade onde o céu se reflete!

Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!

Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.

Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...

E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar

[sozinho!

*

Tabacaria

Não sou nada.

Nunca serei nada.

Não posso querer ser nada.

À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,

Do meu quarto de um dos milhões do mundo que

[ninguém sabe quem é

(E se soubessem quem é, o que saberiam?),

Dais para o mistério de uma rua cruzada

[constantemente por gente.

Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,

Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente

[certa,

Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos

[seres,

Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos

[brancos nos homens,

Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela

[estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.

Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,

E não tivesse mais irmandade com as coisas

Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado

[da rua

A fileira de carruagens de um comboio e uma partida

[apitada

De dentro da minha cabeça,

E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de

[ossos na ida.

Estou hoje perplexo como quem pensou e achou e

[esqueceu.

Estou hoje dividido entre a lealdade que devo

À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por

[fora,

E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por

[dentro.

Falhei em tudo.

Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.

A aprendizagem que me deram,

Desci dela pela janela das traseiras da casa.

Fui até ao campo com grandes propósitos.

Mas lá encontrei só ervas e árvores,

E quando havia gente era igual à outra.

Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de

[pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?

Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!

E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode

[haver tantos!

Génio? Neste momento

Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,

E a história não marcará, quem sabe?, nem um,

Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.

Não, não creio em mim.

Em todos os manicómios há doidos malucos com

[tantas certezas!

Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou

[menos certo?

Não, nem em mim...

Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo

Não estão nesta hora gênios para si-mesmos sonhando?

Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas –

Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas –,

E quem sabe se realizáveis,

Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de

[gente?

O mundo é para quem nasce para o conquistar

E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda

[que tenha razão.

Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.

Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades

[do que Cristo,

Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant

[escreveu.

Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,

Ainda que não more nela;

Serei sempre o que não nasceu para isso;

Serei sempre só o que tinha qualidades;

Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta

[ao pé de uma parede sem porta,

E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,

E ouviu a voz de Deus num poço tapado.

Crer em mim? Não, nem em nada.

Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente

O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,

E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.

Escravos cardíacos das estrelas,

Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da

[cama;

Mas acordamos e ele é opaco,

Levantamo-nos e ele é alheio,

Saímos de casa e ele é a terra inteira,

Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;

Come chocolates!

Olha que não há mais metafísica no mundo senão

[chocolates.

Olha que as religiões todas não ensinam mais que a

[confeitaria.

Come, pequena suja, come!

Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade

[com que comes!

Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folhas

[de estanho,

Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei

A caligrafia rápida destes versos,

Pórtico partido para o Impossível.

Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo

[sem lágrimas,

Nobre ao menos no gesto largo com que atiro

A roupa suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas,

E fico em casa sem camisa.

(Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas,

Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,

Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,

Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,

Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,

Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,

Ou não sei quê moderno – não concebo bem o quê –,

Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que

[inspire!

Meu coração é um balde despejado.

Como os que invocam espíritos invocam espíritos

[invoco

A mim mesmo e não encontro nada.

Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.

Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,

Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,

Vejo os cães que também existem,

E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,

E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei, e ate cri,

E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não

[ser eu.

Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,

E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem

[amasses nem cresses

(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem

[fazer nada disso);

Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem

[cortam o rabo

E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente.

Fiz de mim o que não soube,

E o que podia fazer de mim não o fiz.

O dominó que vesti era errado.

Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti,

[e perdi-me.

Quando quis tirar a máscara,

Estava pegada à cara.

Quando a tirei e me vi ao espelho,

Já tinha envelhecido.

Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não

[tinha tirado.

Deitei fora a máscara e dormi no vestiário

Como um cão tolerado pela gerência

Por ser inofensivo

E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,

Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse,

E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,

Calcando aos pés a consciência de estar existindo,

Como um tapete em que um bêbado tropeça

Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia

[nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.

Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada

E com o desconforto da alma mal entendendo.

Ele morrerá e eu morrerei.

Ele deixará a tabuleta, e eu deixarei versos.

A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos

[também.

Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a

[tabuleta,

E a língua em que foram escritos os versos.

Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.

Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa

[como gente

Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por

[baixo de coisas como tabuletas,

Sempre uma coisa defronte da outra,

Sempre uma coisa tão inútil como a outra,

Sempre o impossível tão estúpido como o real,

Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de

[mistério da superfície,

Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa

[nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar

[tabaco?),

E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.

Semiergo-me enérgico, convencido, humano,

E vou tencionar escrever estes versos em que digo o

[contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los

E saboreio no cigarro a libertação de todos os

[pensamentos.

Sigo o fumo como uma rota própria,

E gozo, num momento sensitivo e competente,

A libertação de todas as especulações

E a consciência de que a metafísica é uma consequência

[de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira

E continuo fumando.

Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira

Talvez fosse feliz.)

Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.

O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira

[das calças?).

Ah, conheço-o: é o Esteves sem metafísica.

(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)

Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e

[viu-me.

Acenou-me adeus gritei-lhe Adeus ó Esteves!, e o

[universo

Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono

[da Tabacaria sorriu.

15/1/1928

*

Mestre, meu mestre querido!

Coração do meu corpo intelectual e inteiro!

Vida da origem da minha inspiração!

Mestre, que é feito de ti nesta forma de vida?

Não cuidaste se morrerias, se viverias, nem de ti nem

[de nada,

Alma abstrata e visual até aos ossos,

Atenção maravilhosa ao mundo exterior sempre

[múltiplo,

Refúgio das saudades de todos os deuses antigos,

Espírito humano da terra materna,

Flor acima do dilúvio da inteligência subjetiva...

Mestre, meu mestre!

Na angústia sensacionista de todos os dias sentidos,

Na mágoa quotidiana das matemáticas de ser,

Eu, escravo de tudo como um pó de todos os ventos,

Ergo as mãos para ti, que estás longe, tão longe de mim!

Meu mestre e meu guia!

A quem nenhuma coisa feriu, nem doeu, nem perturbou,

Seguro como um sol fazendo o seu dia

[involuntariamente,

Natural como um dia mostrando tudo,

Meu mestre, meu coração não aprendeu a tua

[serenidade.

Meu coração não aprendeu nada.

Meu coração não é nada,

Meu coração está perdido.

Mestre, só seria como tu se tivesse sido tu.

Que triste a grande hora alegre em que primeiro te ouvi!

Depois tudo é cansaço neste mundo subjetivado,

Tudo é esforço neste mundo onde se querem coisas,

Tudo é mentira neste mundo onde se pensam coisas,

Tudo é outra coisa neste mundo onde tudo se sente.

Depois, tenho sido como um mendigo deixado ao

[relento

Pela indiferença de toda a vila.

Depois, tenho sido como as ervas arrancadas,

Deixadas aos molhos em alinhamentos sem sentido.

Depois, tenho sido eu, sim eu, por minha desgraça,

E eu, por minha desgraça, não sou eu nem outro nem

[ninguém

Depois, mas porque é que ensinaste a clareza da vista,

Se não me podias ensinar a ter a alma com que a ver

[clara?

Porque é que me chamaste para o alto dos montes

Se eu, criança das cidades do vale, não sabia respirar?

Porque é que me deste a tua alma se eu não sabia que

[fazer dela

Como quem está carregado de ouro num deserto,

Ou canta com voz divina entre ruínas?

Porque é que me acordaste para a sensação e a nova alma,

Se eu não saberei sentir, se a minha alma é de sempre a

[minha?

Prouvera ao Deus ignoto que eu ficasse sempre aquele

Poeta decadente, estupidamente pretensioso,

Que poderia ao menos vir a agradar,

E não surgisse em mim a pavorosa ciência de ver.

Para que me tornaste eu? Deixasses-me ser humano!

Feliz o homem marçano,

Que tem a sua tarefa cotidiana normal, tão leve ainda

[que pesada,

Que tem a sua vida usual,

Para quem o prazer é prazer e o recreio é recreio,

Que dorme sono,

Que come comida,

Que bebe bebida, e por isso tem alegria.

A calma que tinhas, deste-ma, e foi-me inquietação.

Libertaste-me, mas o destino humano é ser escravo.

Acordaste-me, mas o sentido de ser humano é dormir.

15/4/1928

*

Aniversário

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,

Eu era feliz e ninguém estava morto.

Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de

[há séculos,

E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma

[religião qualquer.

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,

Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,

De ser inteligente para entre a família,

E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.

Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.

Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da

[vida.

Sim, o que fui de suposto a mim mesmo,

O que fui de coração e parentesco,

O que fui de serões de meia província,

O que fui de amarem-me e eu ser menino.

O que fui, ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...

A que distância!...

(Nem o acho...)

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do

[fim da casa,

Pondo grelado nas paredes...

O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme

[através das minhas lágrimas),

O que eu sou hoje é terem vendido a casa,

É terem morrido todos,

É estar eu sobrevivente a mim mesmo como um

[fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!

Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,

Por uma viagem metafísica e carnal,

Com uma dualidade de eu para mim...

Comer o passado como pão de fome, sem tempo de

[manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para

[o que há aqui...

A mesa posta com mais lugares, com melhores

[desenhos na louça, com mais copos,

O aparador com muitas coisas – doces, frutas, o resto

[na sombra debaixo do alçado –,

As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por

[minha causa,

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Para, meu coração!

Não penses! Deixa o pensar na cabeça!

Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!

Hoje já não faço anos.

Duro.

Somam-se-me dias.

Serei velho quando o for.

Mais nada.

Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

15/10/1929

*

Grandes são os desertos, e tudo é deserto.

Não são algumas toneladas de pedras ou tijolos ao alto

Que disfarçam o solo, o tal solo que é tudo.

Grandes são os desertos e as almas desertas e grandes –

Desertas porque não passa por elas senão elas mesmas,

Grandes porque de ali se vê tudo, e tudo morreu.

Grandes são os desertos, minha alma!

Grandes são os desertos.

Não tirei bilhete para a vida,

Errei a porta do sentimento,

Não houve vontade ou ocasião que eu não perdesse.

Hoje não me resta, em vésperas de viagem,

Com a mala aberta esperando a arrumação adiada,

Sentado na cadeira em companhia com as camisas que

[não cabem,

Hoje não me resta (à parte o incômodo de estar assim

[sentado)

Senão saber isto:

Grandes são os desertos, e tudo é deserto.

Grande é a vida, e não vale a pena haver vida.

Arrumo melhor a mala com os olhos de pensar em

[arrumar

Que com arrumação das mãos factícias (e creio que

[digo bem).

Acendo o cigarro para adiar a viagem,

Para adiar todas as viagens.

Para adiar o universo inteiro.

Volta amanhã, realidade!

Basta por hoje, gentes!

Adia-te, presente absoluto!

Mais vale não ser que ser assim.

Comprem chocolates à criança a quem sucedi por erro,

E tirem a tabuleta porque amanhã é infinito.

Mas tenho que arrumar a mala,

Tenho por força que arrumar a mala,

A mala.

Não posso levar as camisas na hipótese e a mala na razão

Sim, toda a vida tenho tido que arrumar a mala.

Mas também, toda a vida, tenho ficado sentado sobre

[o canto das camisas empilhadas,

A ruminar, como um boi que não chegou a Ápis, destino.

Tenho que arrumar a mala de ser.

Tenho que existir a arrumar malas.

A cinza do cigarro cai sobre a camisa de cima do monte.

Olho para o lado, verifico que estou a dormir.

Sei só que tenho que arrumar a mala,

E que os desertos são grandes e tudo é deserto,

E qualquer parábola a respeito disto, mas dessa é que já

[me esqueci.

Ergo-me de repente todos os Césares.

Vou definitivamente arrumar a mala.

Arre, hei de arrumá-la e fechá-la;

Hei de vê-la levar de aqui,

Hei de existir independentemente dela.

Grandes são os desertos e tudo é deserto,

Salvo erro, naturalmente.

Pobre da alma humana com oásis só no deserto ao lado!

Mais vale arrumar a mala.

Fim.

4/10/1930

*

Lisboa com suas casas

De várias cores,

Lisboa com suas casas

De várias cores,

Lisboa com suas casas

De várias cores...

À força de diferente, isto é monótono.

Como à força de sentir, fico só a pensar.

Se, de noite, deitado mas desperto,

Na lucidez inútil de não poder dormir,

Quero imaginar qualquer coisa

E surge sempre outra (porque há sono,

E, porque há sono, um bocado de sonho),

Quero alongar a vista com que imagino

Por grandes palmares fantásticos.

Mas não vejo mais,

Contra uma espécie de lado de dentro de pálpebras,

Que Lisboa com suas casas

De várias cores.

Sorrio, porque, aqui, deitado, é outra coisa.

À força de monótono, é diferente.

E, à força de ser eu, durmo e esqueço que existo.

Fica só, sem mim, que esqueci porque durmo,

Lisboa com suas casas

De várias cores.

11/5/1934

*

Todas as cartas de amor são

Ridículas.

Não seriam cartas de amor se não fossem

Ridículas.

Também escrevi em meu tempo cartas de amor,

Como as outras,

Ridículas.

As cartas de amor, se há amor,

Têm de ser

Ridículas.

Mas, afinal,

Só as criaturas que nunca escreveram

Cartas de amor

É que são

Ridículas.

Quem me dera no tempo em que escrevia

Sem dar por isso

Cartas de amor

Ridículas.

A verdade é que hoje

As minhas memórias

Dessas cartas de amor

É que são

Ridículas.

(Todas as palavras esdrúxulas,

Como os sentimentos esdrúxulos,

São naturalmente

Ridículas).

21/10/1935

*

Poema em linha reta

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.

Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,

E eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,

Indesculpavelmente sujo,

Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para

[tomar banho,

Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,

Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes

[das etiquetas,

Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e

[arrogante,

Que tenho sofrido enxovalhos e calado,

Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo

[ainda;

Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,

Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de

[fretes,

Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido

[emprestado sem pagar,

Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho

[agachado,

Para fora da possibilidade do soco;

Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas

[ridículas,

Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo

Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,

Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na

[vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana

Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;

Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!

Não, são todos o Ideal, se os ouço e me falam.

Quem há neste largo mundo que me confesse que uma

[vez foi vil?

Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!

Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,

Podem ter sido traídos – mas ridículos nunca!

E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,

Como posso eu falar com os meus superiores sem

[titubear?

Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,

Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

*

O futuro

Sei que me espera qualquer coisa

Mas não sei que coisa me espera.

Como um quarto escuro

Que eu temo quando creio que nada temo

Mas só o temo, por ele, temo em vão.

Não é uma presença: é um frio e um medo.

O mistério da morte a mim o liga

Ao triste fim do meu poema.

Odes de Ricardo Reis

Mestre, são plácidas

Todas as horas

Que nós perdemos.

Se no perdê-las,

Qual numa jarra,

Nós pomos flores.

Não há tristezas

Nem alegrias

Na nossa vida.

Assim saibamos,

Sábios incautos,

Não a viver,

Mas decorrê-la,

Tranquilos, plácidos,

Tendo as crianças

Por nossas mestras,

E os olhos cheios

De Natureza...

À beira-rio,

À beira-estrada,

Conforme calha,

Sempre no mesmo

Leve descanso

De estar vivendo.

O tempo passa,

Não nos diz nada.

Envelhecemos.

Saibamos, quase

Maliciosos,

Sentir-nos ir.

Não vale a pena

Fazer um gesto.

Não se resiste

Ao deus atroz

Que os próprios filhos

Devora sempre.

Colhamos flores.

Molhemos leves

As nossas mãos

Nos rios calmos,

Para aprendermos

Calma também.

Girassóis sempre

Fitando o Sol,

Da vida iremos

Tranquilos, tendo

Nem o remorso

De ter vivido.

(12/6/1914)

*

Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.

Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos

Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.

(Enlacemos as mãos.)

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida

Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,

Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,

Mais longe que os deuses.

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena

[cansarmo-nos

Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.

Mais vale saber passar silenciosamente

E sem desassossegos grandes.

Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,

Nem invejas que dão movimento demais aos olhos,

Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,

E sempre iria ter ao mar.

Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,

Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,

Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro

Ouvindo correr o rio e vendo-o.

Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as

No colo, e que o seu perfume suavize o momento –

Este momento em que sossegadamente não cremos

[em nada,

Pagãos inocentes da decadência.

Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois

Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,

Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijamos

Nem fomos mais do que crianças.

E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,

Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.

Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim – à

[beira-rio

Pagã triste e com flores no regaço.

(12/6/1914)

*

As rosas amo dos jardins de Adônis,

Essas volucres amo, Lídia, rosas,

Que em o dia em que nascem,

Em esse dia morrem.

A luz para elas é eterna, porque

Nascem nascido já o Sol, e acabam

Antes que Apolo deixe

O seu curso visível.

Assim façamos nossa vida um dia,

Inscientes, Lídia, voluntariamente

Que há noite antes e após

O pouco que duramos.

(11/7/1914 )

*

Seguro assento na coluna firme

Dos versos em que fico,

Nem temo o influxo inúmero futuro

Dos tempos e do olvido;

Que a mente, quando, fixa, em si contempla

Os reflexos do mundo,

Deles se plasma torna, e à arte o mundo

Cria, que não a mente.

Assim na placa o externo instante grava

Seu ser, durando nela.

(29/1/1921)

*

Tão cedo passa tudo quanto passa!

Morre tão jovem ante os deuses quanto

Morre! Tudo é tão pouco!

Nada se sabe, tudo se imagina.

Circunda-te de rosas, ama, bebe

E cala. O mais é nada.

(3/11/1923)

*

Quantos gozam o gozo de gozar

Sem que gozem o gozo, e o dividem

Entre eles e o que os outros

Veem que gozam eles.

Ah, Lídia, as vestes do gozar omite,

Que o gozo é um, se é gozo, nem o damos

Aos outros como prêmio

De nos verem gozando.

Cada um é ele só, e se com outros

Goza, dos outros goza, não com eles.

Aprende o que te ensina

Teu corpo, teu limite.

(9/10/1927)

*

Não sei se é amor que tens, ou amor que finges,

O que me dás. Dás-mo. Tanto me basta.

Já que o não sou por tempo,

Seja eu jovem por erro.

Pouco os deuses nos dão, e o pouco é falso.

Porém, se o dão, falso que seja, a dádiva

É verdadeira. Aceito,

Cerro olhos: é bastante.

Que mais quero?

(12/11/1930)

*

Para ser grande, sê inteiro: nada

Teu exagera ou exclui.

Sê todo em cada coisa. Põe quanto és

No mínimo que fazes.

Assim em cada lago a lua toda

Brilha, porque alta vive.

(14/2/1933)

*

Temo, Lídia, o destino. Nada é certo.

Em qualquer hora pode suceder-nos

O que nos tudo mude.

Fora do conhecido é estranho o passo

Que próprio damos. Graves numes guardam

As lindas do que é uso.

Não somos deuses; cegos, receemos,

E a parca dada vida anteponhamos

À novidade, abismo.

*

Aos deuses peço só que me concedam

O nada lhes pedir. A dita é um jugo

E o ser feliz oprime

Porque é um certo estado.

Não quieto nem inquieto meu ser calmo

Quero erguer alto acima de onde os homens

Têm prazer ou dores.

*

Texto de acordo com a nova ortografia.

Os poemas reunidos em Antologia poética foram publicados na Coleção L&PM Pocket nos livros: Cancioneiro (v. 654), Poemas de Alberto Caeiro (v. 489), Poemas de Álvaro de Campos (v. 566) e Odes de Ricardo Reis (v. 516).

Seleção e organização: Jane Tutikian

Capa: Ivan Pinheiro Machado. Ilustração: Retrato de Fernando Pessoa, óleo sobre tela (1964), por Almada Negreiros (1893-1970)

Revisão: L&PM Editores

Cip-Brasil. Catalogação na Fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

P567a

Pessoa, Fernando, 1888-1935

Antologia poética / Fernando Pessoa; organização de Jane Tutikian. – Porto Alegre, RS: L&PM, 2012.

(Coleção L&PM POCKET; v. 1013)

ISBN 978.85.254.2608-6

1. Antologias (Poesia portuguesa). I. Tutikian, Jane, 1952-. II. Título. III. Série. 

12-0394. CDD: 869.1

CDU: 821.134.3-1

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Sumário

Cancioneiro

Chuva Oblíqua

I

II

III

IV

V

VI

I

II

III

IV

V

VI

Natal

Pobre velha música!

Ela canta, pobre ceifeira

Sonho. Não sei quem sou neste momento.

O menino da sua mãe

Qualquer música

Natal... Na província neva.

Tenho dó das estrelas

Guia-me a só razão.

Autopsicografia

Isto

Eros e Psique

Dizem?

Poemas de Alberto Caeiro

O guardador de rebanhos (1911-1912)

II

VIII

XX

XXIV

XXXII

II

VIII

XX

XXIV

XXXII

O pastor amoroso (1914-1930)

Quando eu não te tinha

O amor é uma companhia

Eu não sei falar porque estou a sentir

Quando eu não te tinha

O amor é uma companhia

Eu não sei falar porque estou a sentir

Poemas inconjuntos (1913-1915)

A espantosa realidade das coisas

Se, depois de eu morrer, quiserem escrever...

A espantosa realidade das coisas

Se, depois de eu morrer, quiserem escrever...

Poemas de Álvaro de Campos

Ode triunfal

Lisbon revisited (1923)

Tabacaria

Mestre, meu mestre querido!

Aniversário

Grandes são os desertos, e tudo é deserto.

Lisboa com suas casas

Todas as cartas de amor são

Poema em linha reta

O futuro

Odes de Ricardo Reis

Mestre, são plácidas todas as horas...

Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio

As rosas amo dos jardins de Adônis...

Seguro assento na coluna firme

Tão cedo passa tudo quanto passa!

Quantos gozam o gozo de gozar

Não sei se é amor que tens, ou amor que finges

Para ser grande, sê inteiro

Temo, Lídia, o destino

Aos deuses peço só que me concedam...

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