É que a ameaça não provinha de um indivíduo isolado e, por isso, menos perigoso. Arsène Lupin era agora... todo mundo. Nossa imaginação excitada lhe atribuía um poder milagroso e ilimitado. Supunham-no capaz de adotar os disfarces mais inesperados, ser sucessivamente o respeitável major Rawson ou o nobre marquês de Raverdan, ou mesmo – pois ninguém se detinha mais na inicial acusadora – essa ou aquela pessoa conhecida de todos, que tinha mulher, filhos, empregados.
Os novos despachos pelo telégrafo sem fio não trouxeram novidades. Pelo menos o comandante nada nos comunicou, e esse silêncio não era para nos tranquilizar.
Com isso o último dia pareceu interminável. Vivia-se na espera ansiosa de uma desgraça. Dessa vez não seria mais um roubo, não seria mais uma simples agressão: seria um crime, um assassinato. Ninguém admitia que Arsène Lupin se contentaria com dois roubos insignificantes. Mestre absoluto do navio, tendo reduzido as autoridades à impotência, bastava-lhe querer, tudo lhe era permitido, ele dispunha dos bens e das pessoas.
Horas deliciosas para mim, confesso, pois elas me valeram a confiança de Miss Nelly. Impressionada por tantos acontecimentos, inquieta já por natureza, ela buscou espontaneamente ao meu lado uma proteção, uma segurança que eu estava feliz de lhe oferecer.
No fundo, eu bendizia Arsène Lupin. Não foi ele que nos aproximou? Não foi graças a ele que tive o direito de me entregar aos mais belos sonhos? Sonhos de amor e sonhos menos quiméricos, por que não confessá-lo? Os Andrézy são uma linhagem conhecida de Poitou, mas seu brasão é um tanto desdourado, e não me parece indigno de um fidalgo pensar em devolver a seu nome o lustro perdido.
E esses sonhos, eu sentia, não perturbavam de modo algum Nelly. Seus olhos sorridentes me autorizavam a tê-los. A doçura da sua voz me dizia para esperar.
E até o último momento, debruçados na amurada, ficamos um perto do outro, enquanto a linha da costa americana vogava à nossa frente.
As buscas haviam sido interrompidas. Esperavam. Da primeira classe até a área onde se amontoavam os emigrantes, todos aguardavam o minuto supremo no qual se explicaria enfim o insolúvel enigma. Quem era Arsène Lupin? Sob que nome, sob que máscara se ocultava o famoso Arsène Lupin?
E esse minuto supremo chegou. Ainda que eu vivesse cem anos, não esqueceria o mais ínfimo detalhe desse momento.
– Como está pálida, srta. Nelly! – eu disse à minha companheira, que se apoiava no meu braço, quase desfalecida.
– E o senhor? – ela me respondeu. – Parece tão mudado!
– Mas veja! Este minuto é apaixonante e estou feliz de vivê-lo ao seu lado, srta. Nelly. Acho que sua lembrança às vezes se deterá...
Ela não escutava, ofegante e febril. A passarela baixou. Mas, antes que tivéssemos a liberdade de atravessá-la, homens subiram a bordo, homens da aduana, uniformizados.
A srta. Nelly balbuciou:
– Se descobrissem que Arsène Lupin escapou durante a travessia, eu não ficaria surpresa.
– Talvez ele tenha preferido a morte à desonra e se jogado no Atlântico para não ser preso.
– Não brinque! – ela disse, irritada.
De repente estremeci e, quando ela me interrogou, eu disse:
– Está vendo aquele velhote de pé na extremidade da passarela?
– Com um guarda-chuva e uma sobrecasaca verde-oliva?
– É Ganimard.
– Ganimard?
– Sim, o célebre policial, o que jurou prender Arsène Lupin com as próprias mãos. Ah! Compreendo por que não receberam informações deste lado do oceano. Ganimard estava aqui. Ele prefere que ninguém se ocupe dos seus casos.
– Então é certo que Arsène Lupin será detido?
– Quem sabe? Parece que Ganimard nunca o viu a não ser com o rosto maquiado e disfarçado. A menos que conheça seu falso nome...
– Ah! Se eu pudesse assistir à detenção – ela disse com aquela curiosidade um pouco cruel das mulheres.
– Tenhamos paciência. Certamente Arsène Lupin já notou a presença do inimigo.
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