Grafava-o sempre com maiúscula em Mal e minúscula em flores, o que significava dar mais atenção ao Mal, indicando-o como uma noção, um conceito, que subjaz ao longo do livro. Aproximações biográficas parecem facilitar a percepção desse dado, mas podem também falseá-lo: é tentador associá-lo a uma vida em que, entre fatos e lendas, se encontram conflitos familiares, dandismo, drogas, prostituição, dificuldades financeiras, doenças, censura e assim por diante. Some-se ao conjunto a denominação de poeta maldito, na classificação de Verlaine.

Muitos dos retratos de Baudelaire permitem associar sua imagem a esse contexto. No entanto, um dos melhores, o realizado por Courbet, mostra o poeta, ainda jovem, numa atividade talvez mais próxima de sua produção literária — está lendo, e nem sempre se lembra que ele foi um poeta culto, grande conhecedor da tradição poética. Foi também retratado em algumas cenas de grupo, como no célebre Música nas Tulherias de Manet, ou na obra de Fantin-Latour Homenagem a Delacroix, em que está sentado, compenetrado, ao lado de vários outros, em torno de um retrato de Delacroix. Contemporâneo deste, o poeta interessou-se muito pela obra do pintor, que o inspirou em alguns momentos.

Como também o campo da música está presente no universo de Baudelaire, vale ainda lembrar que ele foi contemporâneo de Berlioz, com quem parece mais do que natural que tivesse afinidades; seu interesse musical, no entanto, se dirigiu para Wagner, sobre quem escreveu. Assim, as relações de sua poesia com a música não ficam apenas nos elementos sonoros de seus poemas, mas talvez seja em parte por esse aspecto que foram musicados por Fauré, Duparc, Debussy, Alban Berg; além disso, inspiraram peças instrumentais, como algumas para piano de Debussy (que têm como títulos versos de Baudelaire), a Suíte lírica de Alban Berg e Tout un monde lointain de Henri Dutilleux.

Estudos sobre As flores do mal com frequência iniciam-se referindo a importância da obra e o fato de se tratar de um dos livros de poesia que exerceram maior influência na literatura. John E. Jackson, estudioso suíço de Baudelaire, é um bom exemplo, quando de modo imediato afirma ser esta a “a coletânea de poemas mais influente destes dois últimos séculos”.1 Jackson vai além dessa relação com obras posteriores e reconhece um papel determinante de natureza até mesmo conceitual para a obra: “Mudou até a ideia que temos da poesia, do que estamos em condições de esperar dela, do que ela tem a nos oferecer”.2 Essas mudanças acontecem, primeiro, na própria poesia de Baudelaire e, a seguir, em consequência de sua repercussão, no âmbito da produção poética posterior.

Pode-se ler na mesma perspectiva a afirmação de Marcel Raymond de que “existe uma tradição estética fundada por As flores do mal (e prolongada, magnificada em seguida por Mallarmé)”.3 Essa “tradição estética” estende-se pela posteridade do autor de Un coup de dés. Certamente é muito difícil detectá-la de modo específico nessa amplitude que ela vai ganhando — sua medida estará sempre no impacto permanente causado pela leitura de As flores do mal. É assim essa amplitude que permite ao crítico complementar com sua observação o que ele dissera no início de seu texto: “há hoje uma concordância geral em considerar Les fleurs du mal como uma das fontes vivas do movimento poético contemporâneo”. As duas observações de Marcel Raymond na verdade ecoam observações precursoras feitas por Paul Valéry. Talvez estas sejam mesmo até mais radicais. Segundo Valéry, a poesia de Baudelaire “impõe-se como a própria poesia da modernidade”.4 Enfatiza-se aí a inovação baudelairiana. A modernidade já está nela. Valéry ainda salienta aquilo que vem antes de Mallarmé “magnificar” essa inovação, o percurso em que Baudelaire é essencial para essa poesia da modernidade: “Nem Verlaine, nem Mallarmé, nem Rimbaud teriam sido o que foram sem a leitura que fizeram das Flores do mal na idade decisiva”. Assim vai-se formando a tradição, certamente no âmbito da poesia, mas talvez pouco tenha faltado a Valéry para ir além, como críticos posteriores por fim o fizeram, e ver a presença baudelairiana em outros espaços que não exclusivamente o poético.

De fato, muito do que está presente em As flores do mal permite que se amplie esse espectro conceitual. É o que se tem quando, dando exemplos dessa progressão, diz Auerbach:

A forma, não apenas da poesia moderna, mas também de outros gêneros literários do século que se escoou desde então, é dificilmente imaginável sem As flores do mal; a marca da influência de Baudelaire pode ser encontrada tanto em Gide, Proust, Joyce e Thomas Mann, como em Rimbaud, Mallarmé, Rilke e Eliot. O estilo de Baudelaire, a mistura que tentamos descrever, continua tão vivo quanto antes.5

Auerbach refere-se à mistura de estilo elevado e estilo baixo, que pelo menos em parte explicaria a relação com autores tão diversos. Mesmo que mais evidente em certos autores, e de mais difícil percepção em outros, trata-se de identificar a “tradição” já referida pelo exame mais estrito dos textos. E tal tradição parece crescer com o tempo.

Nessa amplitude, podemos incluir as sucessivas traduções e a crescente produção crítica sobre essa obra. A propósito da crítica, Claude Pichois indaga:

Que dizer de As flores do mal depois dos milhares de publicações — da opinião que cabe em uma frase até os mais pesados in-oitavo — que lhe foram consagradas […]? Essa magra coletânea […] não corre o risco de ser sufocada sob a literatura secundária que não cessa de crescer, propondo as interpretações as mais diversas tomadas de empréstimo às técnicas mais variadas?6

Uma resposta estaria na multiplicação das edições, incluindo as traduções, ou seja, na suposição de que há uma leitura não sufocada por essa “literatura secundária”. Outra estaria no fato de que essa “literatura secundária”, nos melhores casos, acaba sendo crítica de si mesma, como na própria indagação de Pichois. Nesse sentido, Antoine Compagnon observa que “a obra de Baudelaire escapa a todas as explicações estabelecidas, resiste invariavelmente à leitura que se faz dela, e nunca se chega a um termo”.7 No livro em que faz essa observação, Compagnon ocupa-se justamente de discutir diferentes interpretações que vieram se impondo e, em certos casos, se contrapondo ao longo do tempo: “Rapidamente após sua morte, sua obra foi recoberta por uma sucessão de mitos e clichês — de início, para a cobrir de opróbrio, mas, a partir do fim do século, para levá-la ao cume da poesia francesa — que a travestiram, acomodando-a ao gosto do dia”.8 Com isso, porém, Compagnon quer falar da necessidade de discutir alguns aspectos das abordagens críticas, não evidentemente de negá-las, mas de como colocá-las em confronto com aquela “resistência” da obra.

Nascido em 9 de abril de 1821, Baudelaire perde o pai em 1827. No ano seguinte, sua mãe casa-se novamente. Em 1841, tendo em vista a vida sem perspectivas que Baudelaire levava, a família faz com que o jovem parta numa viagem de navio para Calcutá, mas ele retorna à França antes de completar o percurso. No ano seguinte, toma posse da herança paterna, da qual, em dois anos, gasta a metade.

Fica então sob conselho judiciário, a partir de 1842, recebendo uma pequena quantia mensal. Nesse mesmo ano conhece Jeanne Duval, que se torna sua amante e com a qual se relaciona até pelo menos 1856. Já colaborando em diferentes periódicos, tem sua primeira publicação autônoma em 1845, um trabalho de crítica de artes plásticas intitulado Salão de 1845. Além dos poemas, publica outros textos sobre artes plásticas, traduz obras de Edgar Allan Poe, sempre levando uma vida extremamente instável, mudando com frequência de endereço e contraindo muitas dívidas.

Em 1857, sai a primeira edição de As flores do mal, que logo se torna objeto de um processo que resulta na proibição de alguns poemas do livro (nesse mesmo ano houve também um processo contra o romance de Flaubert Madame Bovary).