Como já se falou da importância que tem para a composição a dimensão sonora, e lembrando que a associação entre diferentes percepções foi um recurso e uma temática centrais para Baudelaire (dentro de uma teoria das correspondências que implicava uma visão de mundo), vale relembrar a importância da dimensão visual nessa poesia. A referência a obras de artes plásticas às vezes é clara, de outras exige alguma investigação para ser identificada. E há ainda um ou outro caso em que a obra visual é também imaginária, criada no âmbito do poema. É como se a composição avançasse até incluir a imaginação.
Algumas dessas imagens plásticas, pelo seu teor, fazem parte de uma das principais características dessa poesia: a conjunção de alguns elementos a princípio díspares, como salienta Auerbach a partir de sua análise do quarto poema intitulado “Spleen”:
Mas já nas primeiras estrofes encontramos coisas que dificilmente parecerão compatíveis com a dignidade do sublime. Um leitor moderno quase não se dá conta delas, pois está acostumado a esse estilo, fundado por Baudelaire, em que tantos poetas, cada um a sua maneira, se instalaram depois como em sua própria casa.15
Numa forma tradicional, mas só aparentemente, pois mesmo sua versificação foi objeto de infrações e inovações, Baudelaire introduz todo um vocabulário até então não poético, bem como uma temática inusitada — cemitérios, cadáveres, carniças, miseráveis, moribundos, doenças, crimes, espectros, prostitutas e assim por diante. São esses aspectos que, em meados do século XIX, o distanciam de seus predecessores do romantismo e o põem na condição não só de inovador, mas de iniciador de um caminho que se estenderá adiante dele. Um comentário recorrente, quase uma blague, diz que Baudelaire seria a mistura de um clássico com um jornalista de sua época. Se aí se indica a mistura já mencionada, indica-se também um aspecto de amplitude e objetividade. A voz lírica da poesia de Baudelaire vai além da situação individual. Barbey d’Aurevilly fala das Flores do mal como “drama anônimo de que ele é o ator universal”. Trata-se de uma voz individual que não desaparece, em suas interrogações em torno do Mal, mas que atua em um grande drama em que têm voz e participação muitos outros atores.
SOBRE A TRADUÇÃO E A EDIÇÃO
Em português — sem pretender ser exaustivo nestas menções —, há algumas traduções integrais de As flores do mal (ainda que haja algumas pequenas diferenças nesse aspecto, por conta de diferenças nas próprias edições em francês). Em Portugal, houve já em 1909 a tradução de Delfim Guimarães, apresentada como “interpretação em versos portugueses”. Mais recentemente houve pelo menos outras duas traduções portuguesas — a de Fernando Pinto do Amaral, de 1998, e a de Maria Gabriela Llansol, de 2003, para a qual se poderia usar a mesma descrição da de Delfim Guimarães. No Brasil, há as traduções de Jamil Almansur Haddad (1958), de Ivan Junqueira (1985) e de Mário Laranjeira (2011). Há ainda, no Brasil, traduções de alguns conjuntos importantes de poemas do livro, como as de Eduardo Guimarães e Guilherme de Almeida, além de inumeráveis traduções esparsas.
Ante cada nova tradução, é provável que ocorra alguma pergunta sobre a razão de mais uma. Pode-se então lembrar que as traduções de Baudelaire certamente se multiplicam em muitas línguas — há várias em inglês, em italiano, e assim por diante. É simplesmente o que ocorre com grandes textos. Também se pode lembrar que é incomensurável a proliferação da crítica nas mais diversas línguas sobre esse que é um dos mais importantes e influentes poetas de todos os tempos.
Do modo mais simples possível, uma resposta diria que, quanto mais traduções, tanto melhor, nada de mal, naquilo que contribuírem para maior disponibilidade da obra. De um outro ponto de vista, também há que pensar que, se algumas traduções perduram — em algumas situações, como verdadeiras obras literárias —, outras perdem sua eficácia, se é que algum dia a tiveram. É bem o caso da tradução de Delfim Guimarães, que pelo menos não se intitulou “tradução” — ela é bem mais representativa de seu autor, de um estilo, de uma época, do que da poesia de Baudelaire. O trabalho crítico sobre a poesia de Baudelaire está sempre em andamento, com novas abordagens, discussão de abordagens anteriores, e assim por diante. Parece possível dizer que, de modo similar, a tradução — tida então como uma leitura com dimensão crítica — também pode ser vista nessa perspectiva. De modo ainda mais estreito, a tradução se associa à crítica, quando em sua realização se beneficia de trabalhos críticos. A tradução implica um certo tipo de análise do texto em diversos níveis — de vocabulário, sintaxe, métrica, rimas, imagens, sonoridades, figuras etc., para ficar no plano mais palpável da elaboração poética, sem perder de vista suas ligações com as concepções e interpretações mais amplas. No caso de Baudelaire, talvez a percepção mais necessária, e a maior dificuldade, para quem vai enfrentar sua poesia seja a de identificar em que medida os elementos da tradição, como as formas de versificação adotadas, vão admitindo elementos novos. Estes podem ir da incorporação de um vocabulário menos poético ou mais corrente até os dados do mundo em vias de transformação que lhe era contemporâneo, de que um dos aspectos mais evidentes é a presença do cotidiano das grandes cidades.
Na elaboração da presente tradução foram assim de grande utilidade várias obras críticas, algumas das quais referidas na parte inicial desta apresentação. De modo especial, foram fundamentais as notas de algumas edições — da edição Pléiade, da preparada por Jacques Dupont e da preparada por John E. Jackson, bem como as da edição norte-americana de James McGowan. Essa tradução para o inglês foi também muito útil, propiciando com suas soluções várias sugestões de interpretação do texto e de opções para o trabalho em português.
O texto de Les fleurs du mal da edição das Œuvres complètes de Baudelaire organizada por Claude Pichois e publicada na coleção Pléiade (1975) foi tomado como base para a tradução. Na edição de Claude Pichois adotou-se como texto-base para Les fleurs du mal sua segunda edição, que data de 1861 (a primeira é de 1857).
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