Olhava-me maravilhado, até que, a um sinal seu, a discussão cessou e todos baixaram a cabeça, obedientemente. Mais tarde, quando já dominava a língua dos liliputianos, fui descobrir que minha vida acabara de ser poupada pelo rei.
Enquanto alguns queriam me preservar, com um objetivo que só fui descobrir meses depois, os outros argumentavam que eu era grande demais, forte demais, e que não poderia ser controlado. Diziam que eu seria uma ameaça à segurança do reino, que, além disso, manter-me significaria gastar todas as reservas de alimentos disponíveis e que em breve acabariam passando fome, por minha causa.
Só que o rei encantou-se com a possibilidade de possuir um súdito do meu tamanho. Resolveu tentar “domesticar-me”, como me explicou mais tarde, rindo muito, sem se dar conta de que me ofendia, tratando-me como se eu fosse um animal de estimação. O rei ordenou que continuassem tomando conta de mim e que me ensinassem a língua liliputiana. Estava muito ansioso para conversar comigo e conhecer que explicação eu poderia ter para o meu tamanho, que, segundo julgava, só poderia tratar-se de uma absurda distração da natureza.
Aliás, nunca consegui convencer Sua Majestade a admitir a possibilidade de existirem outros seres iguais a mim, muito menos reinos e países cheios deles. Para o rei e seus súditos, o mundo era Lilipute, o reino da ilha vizinha, Blefescu (razão maior de me manterem vivo, como fui descobrir), e talvez alguns indivíduos perdidos por ali. Mas nada tão diferente deles e, principalmente, nada que pudesse ter a história, a riqueza, a cultura e a beleza que se encontrava em Lilipute:
– E como Vossa Majestade explica minha existência? – indaguei um dia, desafiadoramente.
Que besteira fui fazer! Os nobres que, desde o princípio, defendiam minha execução, com flechas envenenadas, sorriram satisfeitos. Os demais calaram-se, sobressaltados. E Sua Majestade fechou a cara, aborrecido, virou-me as costas e foi embora. Não admitia ser deixado sem resposta por ninguém no Universo, principalmente diante de sua corte.
Mas já estou adiantando o relato... Poucas semanas após minha chegada, já conseguia conversar no idioma de Lilipute. Soltaram-me das correntes e permitiram que eu, com muito cuidado, na ponta dos pés, caminhasse pela cidade. Lilipute era linda e parecia muito antiga. Fiz até mesmo um amigo, num desses passeios – um comerciante cuja casa pegou fogo com toda a sua família dentro. Arranquei o telhado fora e tirei-os de lá. Queimei bastante minha mão, mas esse meu amigo, mais tarde, me devolveria o favor.
Justamente quando já estava me acostumando com minha nova vida e com as animadas conversas de fim de tarde com o rei, aconteceu o ataque da armada de Blefescu. Segundo fui informado, Blefescu era governado por um rei vaidoso, que ousava afirmar que sua corte era a mais bela e culta do mundo. E que não havia riquezas comparáveis às do seu país. E também que os soldados de Blefescu eram mais corajosos do que os de Lilipute. Enfim, todos os reis de Lilipute e de Blefescu, isso já havia centenas de anos, discutiam e guerreavam, sem chegar a um acordo.
Blefescu mandara uma esquadra enorme destruir Lilipute de surpresa. Os vigias do litoral deram o alarme, mas era tarde para o rei organizar suas defesas. Senti-me na obrigação de proteger meus anfitriões. Corri até a praia, quando os navios de Blefescu já iniciavam os primeiros disparos de canhão, e atirei-me na água. Logo, apareci junto aos navios. Foi indescritível o terror dos marujos. Alguns ainda tentaram virar seus canhões contra mim. A maioria, entretanto, jogou-se por sobre a amurada.
Reboquei todos os navios de Blefescu e os dei de presente a Sua Majestade. O rei ficou muito satisfeito. Era a vitória final, numa guerra de séculos.
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