BRÍZIDA: Hui! E eu vou pera o Paraíso!

DIABO: E quem te dixe a ti isso?

BRÍZIDA: Lá hei-de ir desta maré.

Eu sô üa mártela tal!...

Açoutes tenho levados

e tormentos suportados

que ninguém me foi igual.

Se fosse ò fogo infernal,

lá iria todo o mundo!

A estoutra barca, cá fundo,

me vou, que é mais real.

 

Chegando à Barca da Glória diz ao Anjo:

 

Barqueiro mano, meus olhos,

prancha a Brísida Vaz.

ANJO: Eu não sei quem te cá traz...

BRÍZIDA: Peço-vo-lo de giolhos!

Cuidais que trago piolhos,

ANJO: de Deos, minha rosa?

Eu sô aquela preciosa

que dava as moças a molhos,

a que criava as meninas

pera os cónegos da Sé...

Passai-me, por vossa fé,

meu amor, minhas boninas,

olho de perlinhas finas!

E eu som apostolada,

angelada e martelada,

e fiz cousas mui divinas.

Santa Úrsula nom converteu

tantas cachopas como eu:

todas salvas polo meu

que nenhüa se perdeu.

E prouve Àquele do Céu

que todas acharam dono.

Cuidais que dormia eu sono?

Nem ponto se me perdeu!

ANJO: Ora vai lá embarcar,

não estês importunando.

BRÍZIDA: Pois estou-vos eu contando

o porque me haveis de levar.

ANJO: Não cures de importunar,

que não podes vir aqui.

BRÍZIDA: E que má-hora eu servi,

pois não me há-de aproveitar!...

 

Torna-se Brízida Vaz à Barca do Inferno, dizendo:

 

BRÍZIDA: Hou barqueiros da má-hora,

que é da prancha, que eis me vou?

E já há muito que aqui estou,

e pareço mal cá de fora.

DIABO: Ora entrai, minha senhora,

e sereis bem recebida;

se vivestes santa vida,

vós o sentirês agora...

 

Tanto que Brízida Vaz se embarcou, veo um Judeu, com um bode às costas; e, chegando ao batel dos danados, diz:

 

JUDEU: Que vai cá? Hou marinheiro!

DIABO: Oh! que má-hora vieste!...

JUDEU: Cuj'é esta barca que preste?

DIABO: Esta barca é do barqueiro.

JUDEU: Passai-me por meu dinheiro.

DIABO: E o bode há cá de vir?

JUDEU: Pois também o bode há-de vir.

DIABO: Que escusado passageiro!

JUDEU: Sem bode, como irei lá?

DIABO: Nem eu nom passo cabrões.

JUDEU: Eis aqui quatro tostões

e mais se vos pagará.

Por vida do Semifará

que me passeis o cabrão!

Querês mais outro tostão?

DIABO: Nem tu nom hás-de vir cá.

JUDEU: Porque nom irá o judeu

onde vai Brísida Vaz?

Ao senhor meirinho apraz?

Senhor meirinho, irei eu?

DIABO: E o Fidalgo, quem lhe deu...

JUDEU: O mando, dizês, do batel?

Corregedor, coronel,

castigai este sandeu!

Azará, pedra miúda,

lodo, chanto, fogo, lenha,

caganeira que te venha!

Má corrença que te acuda!

Par el Deu, que te sacuda

coa beca nos focinhos!

Fazes burla dos meirinhos?

Dize, filho da cornuda!

PARVO: Furtaste a chiba cabrão?

Parecês-me vós a mim

gafanhoto d'Almeirim

chacinado em um seirão.

DIABO: Judeu, lá te passarão,

porque vão mais despejados.

PARVO: E ele mijou nos finados

n'ergueja de São Gião!

E comia a carne da panela

no dia de Nosso Senhor!

E aperta o salvador,

e mija na caravela!

DIABO: Sus, sus! Demos à vela!

Vós, Judeu, irês à toa,

que sois mui ruim pessoa.

Levai o cabrão na trela!

 

Vem um Corregedor, carregado de feitos, e, chegando à barca do Inferno, com sua vara na mão, diz:

 

CORREGEDOR: Hou da barca!

DIABO: Que quereis?

CORREGEDOR: Está aqui o senhor juiz?

DIABO: Oh amador de perdiz.

gentil cárrega trazeis!

CORREGEDOR: No meu ar conhecereis

que nom é ela do meu jeito.

DIABO: Como vai lá o direito?

CORREGEDOR: Nestes feitos o vereis.