Embarquetis in zambuquis!

CORREGEDOR: Venha a negra prancha cá!

Vamos ver este segredo.

PROCURADOR: Diz um texto do Degredo...

DIABO: Entrai, que cá se dirá!

 

E Tanto que foram dentro no batel dos condenados, disse o Corregedor a Brízida Vaz, porque a conhecia:

 

Oh! esteis muitieramá,

senhora Brízida Vaz!

BRÍZIDA: Já siquer estou em paz,

que não me leixáveis lá.

Cada hora sentenciada:

“Justiça que manda fazer...”

CORREGEDOR: E vós... tornar a tecer

e urdir outra meada.

BRÍZIDA: Dizede, juiz d'alçada:

vem lá Pêro de Lixboa?

Levá-lo-emos à toa

e irá nesta barcada.

 

Vem um homem que morreu enforcado, e, chegando ao batel dos mal-aventurados, disse o Arrais, tanto que chegou:

 

DIABO: Venhais embora, enforcado!

Que diz lá Garcia Moniz?

ENFORCADO: Eu te direi que ele diz:

que fui bem-aventurado

em morrer dependurado

como o tordo na buiz,

e diz que os feitos que eu fiz

me fazem canonizado.

DIABO: Entra cá, governarás

atá as portas do Inferno.

ENFORCADO: Nom é essa a nau que eu governo.

DIABO: Mando-te eu que aqui irás.

ENFORCADO: Oh! nom praza a Barrabás!

Se Garcia Moniz diz

que os que morrem como eu fiz

são livres de Satanás...

E disse que a Deus prouvera

que fora ele o enforcado;

e que fosse Deus louvado

que em bo'hora eu cá nacera;

e que o Senhor m'escolhera;

e por bem vi beleguins.

E com isto mil latins,

mui lindos, feitos de cera.

E, no passo derradeiro,

me disse nos meus ouvidos

que o lugar dos escolhidos

era a forca e o Limoeiro;

nem guardião do moesteiro

nom tinha tão santa gente

como Afonso Valente

que é agora carcereiro.

DIABO: Dava-te consolação

isso, ou algum esforço?

ENFORCADO: Com o baraço no pescoço,

mui mal presta a pregação...

E ele leva a devação

que há-de tornar a jentar...

Mas quem há-de estar no ar

avorrece-lhe o sermão.

DIABO: Entra, entra no batel,

que ao Inferno hás-de ir!

ENFORCADO: O Moniz há-de mentir?

Disse-me que com São Miguel

jentaria pão e mel

tanto que fosse enforcado.

Ora, já passei meu fado,

e já feito é o burel.

Agora não sei que é isso:

não me falou em ribeira,

nem barqueiro, nem barqueira,

senão - logo ò Paraíso.

Isto muito em seu siso.

e era santo o meu baraço...

Eu não sei que aqui faço:

que é desta glória emproviso?

DIABO: Falou-te no Purgatório?

ENFORCADO: Disse que era o Limoeiro,

e ora por ele o salteiro

e o pregão vitatório;

e que era mui notório

que àqueles deciprinados

eram horas dos finados

e missas de São Gregório.

DIABO: Quero-te desenganar:

se o que disse tomaras,

certo é que te salvaras.

Não o quiseste tomar...

- Alto! Todos a tirar,

que está em seco o batel!

- Saí vós, Frei Babriel!

Ajudai ali a botar!

 

Vêm quatro cavaleiros cantando, os quais trazem cada um a cruz de Cristo, pelo qual Senhor e acrecentamento de Sua santa fé católica morreram em poder dos mouros. Absoltos a culpa e pena per privilégio que os que assi morrem têm dos mistérios da Paixão d'Aquele por Quem padecem, outorgados por todos os Presidentes Sumos Pontífices da Madre Santa Igreja. E a cantiga que assi cantavam, quanto a palavra dela, é a seguinte:

 

CAVALEIROS: À barca, à barca segura,

barca bem guarnecida,

à barca, à barca da vida!

Senhores que trabalhais

pola vida transitória,

memória , por Deus, memória

deste temeroso cais!

À barca, à barca, mortais,

Barca bem guarnecida,

à barca, à barca da vida!

Vigiai-vos, pecadores,

que, depois da sepultura,

neste rio está a ventura

de prazeres ou dolores!

À barca, à barca, senhores,

barca mui nobrecida,

à barca, à barca da vida!

 

E passando per diante da proa do batel dos danados assi cantando, com suas espadas e escudos, disse o Arrais da perdição desta maneira:

 

DIABO: Cavaleiros, vós passais

e nom perguntais onde is?

1º CAVALEIRO: Vós, Satanás, presumis?

Atentai com quem falais!

2º CAVALEIRO: Vós que nos demandais?

Siquer conhecê-nos bem:

morremos nas Partes d'Além,

e não queirais saber mais.

DIABO: Entrai cá! Que cousa é essa?

Eu nom posso entender isto!

CAVALEIROS: Quem morre por Jesu Cristo

não vai em tal barca como essa!

 

Tornaram a prosseguir, cantando, seu caminho direito à barca da Glória, e, tanto que chegam, diz o Anjo:

 

ANJO: Ó cavaleiros de Deus,

a vós estou esperando,

que morrestes pelejando

por Cristo, Senhor dos Céus!

Sois livres de todo mal,

mártires da Santa Igreja,

que quem morre em tal peleja

merece paz eternal.

 

E assi embarcam.

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